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Ilustração: Thiko
Um dos aspectos mais dolorosos da pandemia do coronavírus, à medida que as pessoas adoecem, é a impossibilidade de contato de familiares com pacientes que dão entrada em unidades de saúde. Por causa dos protocolos de isolamento e para evitar novas contaminações, quando uma pessoa é internada com Covid-19 não são permitidas visitas. Se o momento é de medo, a aflição por notícias aumenta a ansiedade de quem está do lado de fora, torcendo pela recuperação.
Na linha de frente da força-tarefa de enfrentamento ao coronavírus, mas muitas vezes invisibilizados, estão os assistentes sociais, que assumiram, ao lado de médicos e enfermeiros, um lugar central na vida de famílias que têm alguém hospitalizado com coronavírus. Mas os profissionais enfrentam tanto o desconhecimento de quais são suas funções, por parte de familiares de pacientes, como pressões e angústia por lidar diretamente com algo tão sensível: a vida dos entes queridos de alguém.
Cabe aos assistentes sociais garantir que as famílias tenham informações para acessar seus direitos fundamentais. O processo para isso acontecer passa pela escuta atenta, acolhimento social e diálogo. No entanto, ainda há muita confusão sobre o que pode fazer um assistente social, seja por falta de conhecimento das famílias, seja pela pressão que o grande volume de pacientes tem imposto às equipes de saúde.
Uma questão que não é nova, mas, de acordo com o Conselho Regional de Serviço Social de Pernambuco (CRESS – 4a Região), vem aumentando significativamente é a pressão para que assistentes sociais forneçam informações clínicas, ou mesmo de óbitos, para famílias de pacientes com Covid 19. Por regulamentação da profissão, não é permitido que assistentes sociais repassem informações clínicas. Essa é uma atribuição apenas de médicos.
Em 31 de março, já no contexto da pandemia do coronavírus, o Conselho Federal de Serviço Social reforçou, em uma orientação à categoria profissional, que “a comunicação de óbito não se constitui atribuição ou competência profissional do/a assistente social”, assim como “não cabe informar ao/à paciente e/ou seus familiares sobre as condições clínicas de saúde, tratamentos propostos, evolução da doença e prognósticos, direitos estes que devem ser garantidos e assumidos por profissionais que tenham competência para tal”.
André França, presidente do CRESS – 4a Região, explica que o contexto da pandemia coloca desafios novos para a categoria. “No caso dos assistentes que estão trabalhando em unidades de saúde, na linha de frente, muitos, senão todos, estão sendo bombardeados diariamente com atribuições que não são nossas. Com distanciamento social, todas as dificuldades que as pessoas estão tendo para sepultar seus mortos, para ter notícias sobre seus parentes que estão hospitalizados, as pessoas tendem a buscar um meio de informação e acionam o serviço social porque, via de regra, é o profissional que acolhe, que é a porta de entrada para as instituições”, conta.
Por muito tempo, o serviço social foi confundido com caridade ou mesmo com o assistencialismo (diferente da assistência social, que é um campo da política pública). Por um lado, os assistentes sociais compreendem que não é obrigação das famílias saberem as funções do assistente social, mas o que se torna um problema é a pressão das próprias instituições de saúde, como explica França.
“A velocidade com que as coisas vêm acontecendo tem colocado para os órgãos de classe uma demanda de trabalho quase 24h por dia. Estamos recebendo diariamente comunicações de colegas, seja por email ou por canal no WhatasApp. Surgem demandas, orientações, queixas, pedidos de socorro o tempo todo”, relata.
Com a equipe trabalhando remotamente, o CRESS-PE tem encaminhado ofícios às instituições que estariam exigindo atribuições que não cabem aos assistentes sociais. Nesse meio tempo, a categoria enfrenta também as polêmicas medidas adotadas pelo Governo Federal, como o protocolo que recomenda o uso da cloroquina em pacientes com sintomas leves da Covid-19. “Nós temos uma pandemia do coronavírus, mas temos também uma pandemia de ignorância. Todas essas contradições rebatem na sociedade e as pessoas nos procuram”, diz.
Além disso, a categoria também tenta monitorar e acompanhar casos de contaminação e morte pelo Covid-19 de assistentes sociais . O Conselho Federal de Serviço Social está realizando uma pesquisa com profissionais para obter esse dado. Apesar de o setor público empregar muitos assistentes sociais, França explica que diversas instituições privadas também são locais de trabalho de assistentes.
No Recife, de acordo com a Prefeitura, 100 assistentes sociais estão atuando neste período nos “sete hospitais de campanha municipais e nos demais leitos abertos pela gestão municipal”. Houve também a contratação de 19 profissionais que haviam sido aprovados no concurso vigente da Secretaria de Saúde (Sesau) do Recife. Outros 47 assistentes sociais foram chamados por meio de seleções.
Já nas unidades hospitalares sob administração da Secretaria de Saúde de Pernambuco (SES-PE), há 256 assistentes sociais. Segundo a SES, foram nomeados recentemente mais seis profissionais para atuar no Agreste, na V Regional de Saúde, em Caruaru. A região tem enfrentado o aumento de casos da Covid-19 e foi apontada por analistas como possível epicentro da contaminação no estado.
Segundo a Prefeitura do Recife e a Secretaria de Saúde de Pernambuco, após contactados pela reportagem, as orientações às equipes de saúde é de que informações clínicas sejam transmitidas às famílias apenas por médicos.
“Os assistentes sociais atuam como parte da equipe multiprofissional de cada unidade e exercem atividades específicas da categoria, como acolhimento da família e viabilização de ações junto a órgãos da assistência social. A orientação da Sesau, que será reforçada, é que as informações dos óbitos sejam repassadas pelos médicos, com posterior acolhimento da família por parte da equipe de assistência social”, informou a Prefeitura do Recife, por nota.
No Recife, para os pacientes em hospitais de campanha, foi estabelecido que, uma vez por dia, um médico liga para informar às famílias sobre “a evolução clínica do paciente para um responsável familiar escolhido no ato da internação”.
De acordo com a SES-PE, também em nota, ”os serviços são orientados a seguirem as recomendações de nota técnica (nº 22/2020) sobre cuidados necessários para emissão/transmissão do boletim médico de pacientes com Covid-19. Para que a comunicação seja efetiva o boletim médico deve ser repassado de forma clara, com linguagem acessível, tom pausado e calmo.A comunicação com os familiares pode se dar pelo médico que atendeu o paciente ou por médico do time de comunicação sendo esta uma definição do serviço de saúde”.
Para as famílias, saber como podem obter notícias e com quem dialogar é fundamental neste momento. O direito à informação é o que a assistente social Renata Lopes entende como uma das principais contribuições que o serviço social tem dado para amenizar a dor e a ansiedade de famílias nesta pandemia.
Desde que foi decretado o estado de emergência devido ao coronavírus, Renata já atuou em três linhas de frente no atendimento à saúde. Ainda em março, ela estava no Hospital Regional no Agreste, em Caruaru, e pôde observar o começo da pandemia e a organização das unidades e do sistema de saúde para atender pacientes com Covid-19.
Depois, foi chamada para assumir vaga em concurso que havia realizado. Hoje, no atendimento na Policlínica Agamenon Magalhães e no hospital de campanha em Paulista, ela conta como a rotina intensa tem colocado desafios para realizar o acolhimento social das famílias e também garantir direitos sociais de pacientes. Uma das principais conquistas, segundo Renata, foi o boletim diário por telefone (realizado por médicos) nos hospitais de campanha, uma ação provocada pela atuação dos profissionais de serviço social.
“Uma conquista dos familiares, que tensionaram, e o serviço social teve participação importante. A partir da escuta qualificada, vendo que as famílias estavam ansiosas, a gente tensionou o serviço para que os médicos tivessem horário de repasse clínico. Essa demanda veio dos familiares e dialogamos com a gestão da unidade e com a equipe médica”, conta Renata.
Uma outra característica da pandemia é provocar a insegurança das pessoas no que diz respeito à qualidade da informação. Sendo uma doença nova, da qual se sabe pouco até agora, só quem tem contato direto com as famílias que chegam nos hospitais sabe o efeito que as fake news tem tido. “O serviço social contribui nessa pandemia principalmente com a democratização da informação, do acesso à informação”, diz Renata, que enxerga no serviço social, neste momento, o papel também de informar as pessoas sobre o que é verdade ou não sobre a doença.
Isso porque uma das consequências de uma fake news, segundo ela conta, pode ser uma família não entender a necessidade do isolamento social. O que parece distante, então, vira realidade. “Não só sobre a questão do boletim, mas também tenho percebido, tanto em Caruaru, como em Paulista, como é uma doença que tem uma carga pesada no imaginário social. Por conta do contexto de fake news e da dificuldade de acesso a informações de qualidade, muitas pessoas ficam na negativa da suspeita ou do diagnóstico dos familiares internados”, conta.
Escutamos assistentes sociais que estão trabalhando na linha de frente, integrando as equipes de saúde no enfrentamento à pandemia do coronavírus, para entender, na perspectiva dos trabalhadores, como vem sendo o atendimento às famílias e o desempenho do trabalho com segurança também para os profissionais.Confira abaixo os relatos:
“Nossa rotina de trabalho tem sido muito exaustiva. A gente tem tido demanda completamente diferente e ao mesmo tempo, contraditoriamente, muito parecida. Porque o volume de trabalho é maior e muito mais intenso. Isso porque atualmente os serviço social tem sido a porta de entrada das famílias nos serviços de saúde. É por intermédio do serviço social que as famílias conseguem acesso aos repasses. A gente não faz repasse médico, clínico, mas somos nós que identificamos a rede de apoio daquele paciente, somos nós que identificamos a rotina familiar, a sócio-economia, somos nós que viabilizamos algumas demandas em relação a informações, a documentos. Tem sido uma rotina completamente alterada. Além de tudo, a nossa intervenção sempre se dava com atendimento direto ao usuário, mas com o contexto de pandemia e a prioridade do atendimento ser remoto, então a gente está tendo que articular os serviços de forma remota. A gente atende presencialmente, mas a prioridade é o atendimento por telefone ou WhatasApp.
Infelizmente tem uma demanda muito grande de óbitos, então o serviço social também orienta as famílias em relação ao funeral, auxílio funeral, por exemplo. Temos tido também um trabalho muito importante no sentido de subsidiar as equipes profissionais, médicos, enfermeiros que estão lá dentro para compreender a realidade dessas pessoas, as particularidades das famílias”. Rafaela Ribeiro, assistente social
“A gente chega no trabalho, no plantão de 12 horas, e nos atualizamos sobre as novas admissões, altas e óbitos para organizar o nosso plantão. O novo e o particular nisso é que ao mesmo tempo que estamos nos organizando o fluxo não para, o telefone não para, as pessoas sempre estão chegando lá. No caso, as famílias, porque é com elas que o nosso trabalho se dá agora, não mais com o usuário. Nesse contexto a gente está se adaptando, se reinventando junto com o trabalho remoto. Como somos porta de entrada do usuário, aqueles famílias estão o tempo todo nos buscando. Faz parte da nossa rotina receber ligação de familiares querendo saber sobre o quadro clínico, mas aí informamos que não é atribuição nossa. Mas como eles tem contato com a gente, somos essa referência.
A gente ocupa um lugar central nessa ponte entre equipe, família e outros profissionais. Quando a equipe médica precisa também falar com a família, isso mostra nossa importância para o funcionamento desse fluxo. Isso se dá ao longo do dia, seja para as novas admissões que acontecem o dia todo, seja para as altas, que é um momento muito especial, seja para os óbitos. Por mais que a gente não comunique o óbito, a gente vai dar orientações para aquela família sobre os direitos. Nós estamos com essa família exatamente o tempo todo.
Um desafio é prestar uma escuta qualificada para a família que precisa muito de qualquer informação, um atendimento de qualidade centrado nessa perspectiva de garantia de direitos mesmo com esse fluxo intenso. É um desafio imenso e falar em nome dessa categoria é uma honra e uma responsabilidade”. Nicoly Carvalho, assistente social também faz parte da gestão do CRESS-PE
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.