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Foto de Maria Helena e sua filha Laura em frente a um fogão rústico de tijolos aparentes, com o forno à direita, fechado por uma porta quadrada de ferro preto onde se vê puxadores. Maria Helena é uma mulher branca de meia idade, cabelos pretos lisos cortados acima dos ombros, usando uma camiseta preta onde se lê de maneira incompleta uma frase que começa com “sem cuidado não…”, e calça jeans. A menina Laura é branca, com pele mais clara do que a mãe, cabelos castanhos lisos e usa um vestido rosa com pequenas flores azuis estampadas. As duas estão sorrindo. Elas estão em uma cozinha simples, de parede branca coberta por telhas de barro. |Pelas frestas do telhado passa a luz do sol.

Crédito: Inês Campelo/Marco Zero

Soluções coletivas transformam destinos e comunidades

Na contramão do neoliberalismo, famílias agricultoras da Paraíba compartilham recursos e equipamentos

Inácio França / 25/06/2024

Crédito: Inês Campelo/Marco Zero

Solânea (PB) – Maria Helena passou fome na infância, só aprendeu a ler e escrever na adolescência. Hoje ela é uma liderança ativa entre as 100 famílias que vivem nos sítios Bom Sucesso, Goiana, Palma e Cacimba da Várzea, em Solânea, no interior da Paraíba, a 145 quilômetros de João Pessoa.

Mas a história que vamos contar aqui não é a da superação ou das conquistas individuais dessa agricultora de 41 anos. Este relato é sobre solidariedade, ajuda mútua, trabalho coletivo e decisões compartilhadas por toda a comunidade.

O que Maria Helena viveu na infância faz parte do imaginário popular sobre as secas do Nordeste, alimentado pela literatura regionalista, pela música popular e mantido, até hoje, por reportagens repletas de clichês dos telejornais das emissoras do eixo Rio-São Paulo. O que acontece em sua vida adulta surpreende quem não acompanha o que a sociedade civil e os movimentos sociais realizam na região há três décadas.

Seus pais tentavam sustentar cinco filhos com as diárias do trabalho nas lavouras de sisal e nas pequenas fábricas de beneficiamento da planta, produzindo os fios utilizados na indústria têxtil. Era um trabalho, além de temporário e mal pago, bastante perigoso, pois era comum as máquinas que extraíam as fibras deceparem as mãos ou braços dos trabalhadores.

Helena, a filha do meio, ficava em casa cuidando das irmãs menores, enquanto os mais velhos acompanhavam os pais. Não havia água no barraco de taipa onde a família vivia de favor, então ela cresceu sem noções básicas de higiene. A comida, mesmo nos tempos em que havia trabalho, se resumia a feijão ralo e farinha.

Só aos 12 anos entrou na escola, mas fazia as lições nas folhas de papel que os colegas arrancavam dos próprios cadernos para ajudá-la. Cartilha, papel e lápis eram artigos de luxo para quem faltava tudo. “Foi nessa época que entendi que minha vida podia ser diferente”, diz a agricultora.

Helena hoje é dona do próprio sítio, adquirida no início dos anos 2000 por meio de um programa de acesso à terra do governo Fernando Henrique Cardoso, onde produz verduras, legumes e frutas. Cria caprinos e, com sua moto 50 cilindradas, entrega às clientes os bolos que assa no forno do fogão ecológico. Ela se desdobra para que o casal de filhos, o adolescente Guilherme, de 14 anos, e a menina Laura, de 7 anos, se dediquem apenas a estudar.

“Nada disso eu consegui sozinha. Na comunidade a gente se ajuda o tempo todo, principalmente as mulheres, a gente compartilha tudo”, resume Maria Helena.

A poupança da comunidade

As cisternas – uma armazena água para consumo da família e a outra para animais e irrigação – foram construídas graças aos projetos da Articulação do Semiárido (ASA) trazidos pela organização não governamental AS-PTA, que atua na região há 31 anos e faz parte da Rede de Assistência Técnica e Extensão Rural Nordeste (Rede Ater NE). Também foi essa instituição que viabilizou o sistema de tratamento que permite o reúso da água do banheiro e da cozinha.

Já a tela para cobrir o viveiro de mudas e aplacar a luz do sol, o alambrado de arame para o cercado dos animais e o fogão ecológico – a menina dos olhos de Helena – foram viabilizados graças à participação nos fundos rotativos solidários, uma espécie de poupança comunitária originada na Paraíba no início dos anos 1980, quando agricultores e agricultoras apoiados pelos voluntários católicos das Comunidades Eclesiais de Base juntavam dinheiro ou trocavam bens, principalmente animais, para resolver problemas imediatos.

Hoje, a ideia está tão enraizada entre os camponeses da serra da Borborema, vale do Curimataú e no Brejo paraibano que se tornou uma estratégia de desenvolvimento local. Na década de 2010, os fundos chegaram a ser apoiados financeiramente por bancos públicos federais, como atesta a professora de Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Alicia Ferreira Gonçalves, em um trabalho acadêmico para o mestrado profissional em Gestão Pública para o Desenvolvimento do Nordeste da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

O fundo rotativo funciona assim: os vizinhos e vizinhas (no caso da região onde Helena, são as mulheres que costumam tomar a iniciativa e fazer a gestão dos recursos, como se verá na próxima reportagem desta série) percebem que a maioria dos sítios está precisando, por exemplo, de novas cercas de arame para os galinheiros. Então, cada família passa a contribuir com um valor que, em geral, varia de R$ 25 a R$ 50 mensais. “A cada quatro meses dá para comprar uma cerca de arame. Aí só para quando todo mundo recebeu a sua”, explica Helena, que é uma das gestoras do fundo rotativo da Associação de Pequenos Produtores de Bom Sucesso, Palma e Goiana.

A foto retrata uma reunião em ambiente interno. As pessoas estão sentadas em cadeiras dispostas em um semicírculo. Algumas cadeiras são de plástico e outras de metal. Todos estão voltados para o centro, onde uma pessoa parece estar fazendo uma apresentação ou discurso. O ambiente tem um aspecto rústico, com piso de concreto aparente. Na parede ao fundo, há um grande mapa pendurado. Duas portas são visíveis: uma está aberta, revelando outra sala ou área externa, e a outra está fechada. Um quadro verde de giz também está pendurado em uma das paredes, próximo a uma máquina separadora de sementes.

Destino dos recursos é decidido em reuniões na sede da associação comunitária

Crédito: Inês Campelo/Marco Zero

A outra administradora do fundo é Verônica de Macena Santos, que também é diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Solânea. Segundo ela, atualmente 30 famílias estão participando do fundo rotativo da comunidade, mas todas já receberam a tela de arame. O objetivo agora é garantir um fogão ecológico para cada uma delas.

Para esse fundo, a AS-PTA conseguiu financiar cinco telas e os quatro primeiros fogões feitos com tijolos refratários que mantêm o calor no interior do fogão e evitam o uso de lenha, possibilitando que dois ou três gravetos para cozinhar uma refeição completa.

Especialista em Ciências Agrárias, Nirley Lira é a integrante da equipe da AS-PTA que assessora a comunidade liderada por Verônica e Helena. “Entendemos os fundos como um processo que vai além da garantia do acesso à tecnologia, mas como um instrumento de organização social e de soluções comunitárias de um modo de vida”, explica. Ela diz que há fundos que já existem há mais de 30 anos, como os dos municípios de Lagoa Seca e Queimadas, que financiam até óculos de grau e pagam exames de imagens sofisticados para os participantes.

Quem decide o que será pago e para quem são as famílias que integram o fundo. Em Solânea, as reuniões costumam acontecer a cada dois meses. “Na maioria das vezes, quem recebe o item primeiro não é quem pagou mais, é quem precisa mais”, arremata Verônica.

Ovelhas, máquinas e mutirões

Há outros mecanismos para adquirir equipamentos e animais para a comunidade que mantém o nome “fundo rotativo”, mas possuem lógica ligeiramente diferente do mecanismo de poupança ou consórcio. É Maria Helena quem explica como se garante ovelhas e carneiros para todas as famílias: “a associação compra uma ovelha e entrega para quem estiver mais necessitado naquele momento. Quem recebe tem a tarefa de cuidar bem do bicho, bota pra cruzar, tudo certinho, mas a pessoa só passa a ser realmente dona do animal quando ela dá a primeira cria fêmea, que é repassada para outra família”.

Quem receber a nova ovelhinha terá as mesmas obrigações e também terá que aguardar a próxima fêmea nascer, porém, enquanto isso pode usar à vontade o leite produzido. Mesmo depois que o agricultor ou agricultora assume a propriedade do animal, é comum doar leite, queijo e manteiga para as famílias mais pobres, principalmente àquelas com muitos filhos.

Outro objeto de desejo de quem vive da agricultura na serra da Borborema são as máquinas ensiladeiras, trituradoras que transformam plantas forrageiras em silagem, ou seja, alimento para os animais – bovinos, caprinos ou ovinos – que fica armazenado para ser consumido durante os meses de estiagem. O problema é o preço. Uma ensiladeira pode custar de R$ 4 mil a R$ 10 mil. Para efeitos de comparação, o fogão ecológico sai por R$ 750.

A solução encontrada foi fazer a gestão coletiva do equipamento, afinal, tanto pelo preço quanto pelos gastos com manutenção, não vale a pena cada um ter sua própria máquina. “Quando conseguimos juntar o dinheiro, a associação fez a compra e as famílias podem usar na época da colheita do milho que vai virar forragem. Geralmente, a máquina fica uma semana em cada sítio. Quem estiver usando paga o transporte e o combustível”, detalha Verônica Santos.

A Associação de Pequenos Produtores de Bom Sucesso, Palma e Goiana também tem um separador de sementes que fica no salão da sede da entidade. Quem precisa selecionar as melhores sementes de milho e feijão, por exemplo, vai até lá para usar o equipamento.

Na sede, porém num espaço à parte, também fica o banco de sementes crioulas. Na Borborema, esses grãos tradicionais usadas há várias gerações pelos agricultores da região, são chamados de “sementes da paixão”. Segundo Verônica, o banco é alimentado por toda a comunidade e também pode ser usado por qualquer um que, por alguma razão, venha a perder sua colheita.

A foto mostra uma caixa de plástico preta cheia de mandioca descascada. Há mandiocas longas, algumas amareladas e outras amontoadas no chão, ao lado da casca, à esquerda da foto. A caixa está no chão em um ambiente que parece ser interno, com pisos de concreto e paredes com algumas manchas ou descolorações. A iluminação sugere que pode ser um espaço interior com luz natural vindo de fora do quadro.

"Farinhada" é o mutirão mais tradicional no Vale do Curimataú

Crédito: Inês Campelo/Marco Zero

Os bancos de sementes mantidos pelas organizações comunitárias no semiárido preserva a biodiversidade da agricultura na região e reduz o risco de uma praga destruir toda a produção, pois evita a adoção de apenas um único tipo de planta, como ocorre na monocultura. A pesquisadora Ghislaine Duque, da Universidade Federal de Campina Grande, identificou 26 variedades de feijão cultivadas no Vale do Curimataú, por exemplo.

Outra prática comum é o mutirão. Vizinhos se juntam para consertar cercas, instalar telas, limpar o terreno, fazer colheita e qualquer outra atividade que seja pesada demais para a família fazer sozinha. Durante a pandemia, praticamente não houve mutirões, mas bastou a vacina chegar para que eles fossem retomados.

Quando a equipe da Marco Zero chegou ao Videl, outra comunidade em Solânea, dezenas de pessoas tinham acabado de concluir a “farinhada”, um mutirão tradicional em que a vizinhança se junta para o descascar a mandioca que será usada para fazer farinha. A tarefa é penosa, mas se torna menos cansativa com conversa, música e um lanche reforçado no final.

Nova economia?

Não é fácil calcular com exatidão quantos fundos rotativos estão em funcionamento na Paraíba, pois como a iniciativa é comunitária, espontânea, muitas vezes um fundo começa com apenas cinco famílias e demora a ser percebido pelos técnicos agrícolas ou pelos integrantes do Polo Borborema, uma articulação de sindicatos rurais e 150 associações comunitárias de 13 municípios. De acordo com Adriana Galvão, da coordenação da AS-PTA, atualmente a organização acompanha de perto 54 fundos ativos, mas esse número já chegou a 111.

Antes da pandemia, a equipe da Cooperativa da Borborema (CoopBorborema), mantida pelos sindicatos do Polo, identificou 201 grupos com mais de 3 mil beneficiários. No entanto, Adriana explica que, com a pandemia, muitas iniciativas foram desmobilizadas por causa dos cortes no Bolsa Família, durante o governo Bolsonaro, e também por causa da pandemia. “Foi justamente na pandemia que voltamos esforços para reanimá-los como um processo de enfrentamento e a promoção de auto-organização”.

O interesse do poder público pelos fundos rotativos é escasso. Iniciativas como a do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) que, em 2005, no primeiro governo Lula, destinou quase R$ 6 milhões para apoiar 60 fundos rotativos solidários no Nordeste são raras e dependem de pressão política. Naquela ocasião, quem tomou a iniciativa nem foi o banco público, mas sim a sociedade civil a partir do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, Articulação no Semi-Árido Nordestino (ASA), Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional.

Para o agrônomo e mestre em Agroecologia Luciano Silveira, do núcleo gestor da Rede Ater NE, a ampliação do alcance e dos resultados dos fundos rotativos solidários depende do reconhecimento e do estímulo por parte dos governos estaduais e Federal. “Esse modo de vida com gestão coletiva é capaz de criar uma nova economia na região, onde os sistemas de produção e de consumo estariam mais próximos, mais territorializados, na contramão da globalização”, afirma Silveira. Para ele, a essa proximidade implica em consumo de alimentos saudáveis, em contraposição aos ultraprocessados, com desdobramentos na saúde da população.

“Os fundos são um bom exemplo de que a valorização do tecido social, e não apenas a adoção de tecnologias alternativas, explica a resiliência do semiárido diante dos impactos das mudanças climáticas globais”, afirma o agrônomo.

Foto de Luciano Silveira, homem branco, de meia-idade, de fartos cabelos grisalhos, diante de uma estante de livros com lombadas coloridas.

Silveira vê novo modelo econômico, mais solidário, surgindo no semiárido

Crédito: Acervo AS-PTA
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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.