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Torcidas organizadas por mulheres enfrentam o machismo nas arquibancadas nordestinas

Marco Zero Conteúdo / 03/01/2023
Grupo de mulheres vestindo azul, vermelho e branco em meio a uma multidão em estádio de futebol.

Crédito: Acervo Triloucas

por Marta Alencar*

Após a derrota dos jogadores da Seleção Brasileira da Copa do Mundo no Qatar em novembro deste ano, boa parte dos brasileiros está em contagem regressiva para o Mundial feminino. O torneio será disputado entre julho e agosto de 2023 e terá sede dupla na Oceania: os jogos serão na Austrália e na Nova Zelândia. Esta será a primeira edição da Copa do Mundo Feminina com 32 seleções, mesmo número de participantes da competição masculina. Anteriormente, eram apenas 24 participantes no torneio.

No início do ano da Copa, esta reportagem decidiu ouvir e conhecer as integrantes de torcidas organizadas de clubes nordestinos para mostrar que não só no campo, mas também em arquibancadas e nos lares, reina a paixão das mulheres pelo futebol.

Do zap para as arquibancadas

No início, eram apenas 20 mulheres trocando ideias, marcando idas aos estádios e mobilizando movimentos contra jogadores agressores no WhatsApp. O grupo cresceu e hoje são mais de 123 mulheres compondo a Torcedoras Raiz, organizada do Ceará Sporting Club, a primeira torcida feminina cearense.

“Reunimo-nos para ir aos jogos pelo WhatsApp e com o passar do tempo, criamos laços e formamos um grupo. E, uma vez, surgiu a possibilidade no Clube de vir o goleiro do São Paulo, Jean, que tinha histórico de agressão contra a esposa. Na época, quando soubemos dessa possibilidade, fizemos manifestações nas redes sociais e conseguimos barrar a contratação. A partir daí, vimos que o Ceará Sporting Club tinha uma dívida com as mulheres e então decidimos criar uma torcida organizada feminina”, narra Janaína Queiroz, presidente da Raiz.

Desde 2020, a torcida tem estatuto próprio e conta com um grupo de mulheres que dividem as funções em diretoria de arquibancada, de mídia, de ações sociais e conselho fiscal. Apesar da organização e empenho das torcedoras, Janaína Queiroz lamenta que o clube não se empenha em reconhecê-las ou incluí-las em ações oficiais. “Os jogadores sabem da nossa torcida, mas a diretoria do Clube nunca teve um emparelhamento conosco, reconhecendo que somos a torcida feminina. O Ceará ainda é um clube muito fechado e machista. Até buscamos, no início, o reconhecimento da diretoria, mas percebemos que precisávamos mesmo era do reconhecimento do restante da torcida”.

A conselheira da Torcedoras Raiz, Bruna Alves menciona que a relação com a direção do Ceará é praticamente inexistente. “Eles não buscam nenhum tipo de contato ou interlocução que aproxime a torcida feminina do clube, sempre há um distanciamento, o clube parece querer manter essa distância. Praticamente eles desconhecem as ações que realizamos. É difícil até mesmo construir uma relação com os jogadores. O Ceará não sabe trabalhar com a torcida feminina, que é a primeira do estado”.

Janaína Queiroz.

Na Bahia, a Torcida Tricoloucas foi fundada em 1º de outubro de 2017 e também teve sua trajetória iniciada no WhatsApp. A torcida organizada feminina no estado é composta por 44 sócias. Apesar da ocupação em estádios e em outras ações do Esporte Clube Bahia, a presidente da torcida, Stefane Coutinho, que acompanha os jogos desde criança, lamenta que a participação feminina seja menor em eventos futebolísticos.

“O futebol é um esporte predominantemente masculino, apesar de algumas coisas estarem mudando. Hoje, conseguimos ver mais mulheres nas arquibancadas do que há uns 10, 20 anos atrás. No entanto, lidamos com preconceitos e falta de apoio. A maior parte da torcida masculina não faz questão de apoiar as mulheres que criam torcidas organizadas. A gente sente a desigualdade no campo e fora de campo no dia a dia”.

Para Janaína Marques, o reconhecimento de torcidas femininas está acontecendo, todavia a passos lentos. “O mercado se adaptou para atender as torcedoras mulheres, mas ainda há muito para ser explorado. Eu ainda percebo a figura da mulher de forma figurativa. Temos que ocupar outros espaços não só nas arquibancadas, mas dentro dos clubes, em diretorias e conselhos. As mulheres nesses espaços podem fazer a diferença no futebol de fato”, disse.

Stefane Coutinho ressalta que, apesar da relevância que o Nordeste começa a mostrar quando se fala em torcidas organizadas femininas, ainda é preciso que as mulheres assumam mais espaços e cargos de destaque em clubes. “No Nordeste, a questão das mulheres assumirem mais espaços no campo e nas arquibancadas precisa ser melhorada. Somos uma potência no país e precisamos de mais espaço e reconhecimento pelo que fazemos”.

Na região, há também coletivos femininos de futebol: o Alvinegras 1931, movimento feminista de Torcedoras do Botafogo da Paraíba; Coletivo Torcedoras do Leão, do Fortaleza Esporte Clube; a Loucas pelo ECV, que é do Esporte Clube Vitória, também de Salvador; e o Movimento Coralinas, do Santa Cruz Futebol Clube, do Recife.

Quem quiser se tornar sócia da Torcedoras Raiz e/ou Tricoloucas poderá entrar em contato com as torcidas pelas páginas oficiais no Instagram e preencher um formulário de cadastro, além de pagar uma mensalidade para a manutenção, eventos das torcidas e ter acesso a descontos em produtos.

Expectativa para a Copa

Janaína, Stefane e Bruna estão na contagem regressiva para a Copa do Mundo Feminina. “Espero que o Brasil ganhe! Sei que ainda temos muito o que melhorar no esporte, mas nossas jogadoras vêm se destacando cada vez mais. Elas merecem ganhar”, disse Janaína Queiroz.

Stefane afirma que, enquanto a Copa não começa, as Tricoloucas estão se organizando para torcer pelas jogadoras. Bruna Alves também está na expectativa, mas queixa-se que as jogadoras não sejam tão valorizadas como a seleção masculina. Por exemplo, a jogadora Marta, que já foi eleita a melhor do mundo por seis vezes, recebe 340 mil euros, o que corresponde a R$1.495.000,00 por temporada. O salário de Marta é equivalente a 1% do salário do jogador Neymar. O que é contraditório, pois Marta tem mais tempo de profissão e mais conquistas do que o atacante.

“As condições de salário são muito aquém do que um homem ganha. Há uma desigualdade muito grande em relação à visibilidade, à valorização e às competições. É difícil até mesmo para as árbitras. Ainda há muita falta de reconhecimento”, queixa-se Bruna.

Apesar das desigualdades, Bruna destaca as jogadoras da seleção que tanto admira: “Ludmila da Silva tem uma força, sabe se colocar em campo, tem jogadas diferenciadas. Para mim é uma das melhores jogadoras. A Marta, por todas suas conquistas. E a Formiga também, que mesmo não atuando mais na seleção atualmente, é, sem dúvidas, uma das melhores volantes do Brasil de todos os tempos”.

Antes da Copa do Mundo Feminina, a Seleção Brasileira Feminina participará da oitava edição do Torneio She Believes Cup, que é organizada pela USSoccer e contará também com as seleções do Japão, Canadá, e as anfitriãs, os Estados Unidos. Os duelos serão disputados no período de data FIFA, entre os dias 13 a 22 de fevereiro.

Futebol é coisa de mulher, sim!

O futebol comumente é pensado como um esporte feito para um público predominantemente masculino, tanto em campo quanto nas arquibancadas. Ao menos no Brasil essa visão estereotipada e machista tem um contexto histórico: da Era Vargas até 1983, as mulheres não eram permitidas à prática de esportes considerados masculinos ou incompatíveis com as condições de sua natureza, segundo Decreto-Lei 3.199 de 14 de abril de 1941.

O decreto-lei sancionado por Getúlio Vargas foi responsável por atrasar diretamente o desenvolvimento do futebol feminino. Apesar da revogação em 1979, o futebol feminino só conseguiu ser regulamentado em 1983. Apesar das proibições nesse período, aconteceram incontáveis jogos amadores femininos em diversas regiões do país e competições clandestinas.

Em 1988 foi lançada a Seleção Brasileira feminina. Formada, principalmente, por jogadoras do Radar, do Rio de Janeiro, e do Clube Atlético Juventus, de São Paulo. A primeira competição feminina organizada pela FIFA foi o Torneio Internacional de Futebol Feminino em Guangdong, na China, em 1988, preliminar ao primeiro Mundial oficial que aconteceria em 1991. Mas até hoje mesmo com avanços nos direitos, as mulheres que almejam ser jogadoras lidam com a diferença de salários e de premiações, além de preconceitos e a falta de reconhecimento em comparação com os jogadores homens.

Convém acrescentar que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) criou um regulamento determinando que todas as equipes da primeira divisão do Campeonato Brasileiro Masculino tenham um time feminino adulto e, pelo menos, uma categoria de base. Medida que se baseou na postura inicial da Confederação Sul-Americana de Futebol Conmebol), que impôs a necessidade de ter esses times femininos para os clubes estarem habilitados a participar da Libertadores e Copa Sul-Americana.

Árbitras fazem história

Desde a Copa de 1930, a Fifa nunca havia escalado mulheres para qualquer função da arbitragem nos jogos do Mundial, embora a primeira mulher árbitra no mundo tenha estreado na década de 1970, a brasileira Léa Campos. Em 2022, a francesa Stéphanie Frappart, a brasileira Neuza Back e a mexicana Karen Medina fizeram história como as primeiras mulheres a comandar um jogo da Copa do Mundo masculina de futebol. O que é considerado um fato histórico.

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Se o leitor ou leitora quiser conhecer um pouco mais da questão histórica da relação das mulheres com o futebol, a historiadora Giovana Capucim e Silva lançou em 2017 um livro chamado “Mulheres Impedidas: A proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo”, publicado pelo selo Drible de Letra, da editora Multifoco.

*Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e doutoranda pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

AUTOR
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