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Crédito: Thiago Silva/Assessoria Marcos Xukuru
Quase dois anos após as últimas eleições municipais, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) confirmou em plenário, nesta segunda-feira, 1 de agosto, o indeferimento do registro e a inelegibilidade do cacique Marcos Xukuru (Republicanos) até 2024. Marcos Luidson de Araújo foi o candidato mais votado em 2020 em Pesqueira, no Agreste de Pernambuco, a 203 quilômetros do Recife, com 51% dos votos válidos (17.654 votos), derrotando Maria José (DEM), que tentava a reeleição. Quebrando uma forte tradição oligárquica, foi a primeira vez que um indígena ganhou a disputa.
O cacique, porém, ficou impedido de assumir o cargo por causa de uma condenação sofrida em 2015 na Justiça Federal pela prática de crime contra o patrimônio privado, por incêndio a residência particular provocado em 2003, depois de ele ter sofrido um atentado e quase ter sido morto num dos episódios da histórica disputa por terras no território indígena (relembre o caso no final de matéria). Por maioria dos votos, o TSE entendeu que Marcos, liderança xukuru há mais de duas décadas e referência internacional na luta indígena, fica inelegível com base na Lei de Inelegibilidade (LC nº 64/1990).
O TSE também determinou a convocação de novas eleições para prefeito e vice-prefeito do município. A data do novo pleito ainda não foi divulgada. Atualmente Marcos, chamado também de Marquinhos, exerce o cargo de secretário de Governo da prefeitura de Pesqueira, cujo prefeito interino é o presidente da Câmara de Vereadores, Sebastião Leite da Silva Neto, mais conhecido como Bal de Mimoso (Republicanos).
Em vídeo, o cacique comenta a decisão do TSE e diz que respeita o resultado:
“Minha vida sempre foi pautada por muita luta”, lembrou a liderança em entrevista à rádio Nova Líder FM nesta terça, 2, pela manhã, reforçando que seu trabalho por Pesqueira continua independente de cargo ou função. “Independente de qualquer situação, sou filho dessa cidade e, se for necessário, dou minha vida para defender o que acredito”, disse.
Na campanha eleitoral de 2020 a candidatura dele sofreu forte pressão da oposição, que montou uma coligação com nada menos do que 11 partidos (DEM, Progressistas, PSB, Pros, MDB, PCdoB, Podemos, PSD, PSDB, PTC e Patriotas), reunindo inclusive antigos desafetos políticos na cidade, na tentativa de derrotá-lo. “Pesqueira não vai ser comandada por um índio” foi uma das tantas afirmações preconceituosas que Marcos ouviu durante a corrida, que, segundo ele, espalhou bastante fake news e disparos em massa no WhatsApp. O cacique avaliou o cenário na época como perseguição política.
A maioria dos ministros do tribunal superior, ficando vencido o presidente Edson Fachin, acompanhou o voto do relator, ministro Sérgio Banhos, que referendou a decisão do TRE-PE. Desde o início, a defesa do cacique sustentou duas teses centrais: a de que o crime de incêndio, por estar inserido entre os delitos contra a incolumidade pública, não atrairia a inelegibilidade descrita na lei e a de que o prazo de inelegibilidade deveria ser contado a partir da decisão condenatória em segundo grau, e não do cumprimento integral da pena, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da proporcionalidade.
A incolumidade pública significa evitar o perigo ou risco coletivo, tem relação com a garantia de bem-estar e segurança de pessoas indeterminadas ou de bens diante de situações que possam causar ameaça de danos.
Mas, para o relator, o crime de incêndio, por estar inserido no capítulo do Código Penal que trata dos crimes contra a incolumidade pública, não se afasta da esfera dos delitos praticados contra o patrimônio.
O próprio Marcos junto com sua equipe jurídica considera o caso “atípico” e “complexo”, uma vez que, dos oito casos anteriores ao dele, houve divergências na própria corte e algumas regras do processo mudaram de 2020 para cá. O advogado do caso na época, Guilherme Xukuru, hoje secretário de Articulação Institucional de Pesqueira, lembra ainda que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já considerou o cacique como vítima.
Quanto à contagem do prazo de inelegibilidade, Sérgio Banhos recordou, no plenário, que, no final de 2020, o então presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, suspendeu a análise de pedido de reversão da inelegibilidade para aguardar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6630. Essa ação discutiu a aplicação do prazo que uma pessoa pode ficar inelegível a partir de sentenças condenatórias.
Em março deste ano, o STF confirmou que se torna inelegível quem for condenado em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena.
O relator lembrou que a pena final do cacique foi fixada em quatro anos de reclusão em regime aberto, punibilidade que foi extinta por indulto concedido pela então presidente da República Dilma Rousseff em 18 de julho de 2016. Assim, a exemplo do TRE pernambucano, o relator entendeu que essa é a data em que começa a contar a inelegibilidade de oito anos, que se encerra em julho de 2024.
O ano era 1998. O líder Xikão Xukuru, com 48 anos, era assassinado com seis tiros numa emboscada na porta da casa da irmã, em Pesqueira, a mando de posseiros, no mais violento episódio daquele conflito pelo direito indígena à terra. Marcos, um de seus sete filhos com Dona Zenilda, tinha apenas 18 anos, mas já havia sido designado pelos encantados para ser o sucessor do pai e liderança do povo xukuru do Ororubá.
Desde cedo, ele acompanhou a luta de Xikão, que teve papel fundamental na formulação das garantias indígenas da Constituição de 1988 e também participou dos processos de demarcação e retomada de terras.
Essa não foi a primeira vez que o filho de Xikão sofreu perseguição na cidade. Em 2003, ele foi alvo de uma emboscada. Dois indígenas foram mortos na ocasião. Ferido, o Cacique Marcos conseguiu, com ajuda, sobreviver e fugir se jogando por debaixo do caminhão que ele dirigia e depois correndo a pé entre arames farpados. Com o envolvimento de fazendeiros em mais uma disputa de terra, o ataque foi feito por José Lourival Frazão, conhecido por Louro, do povo xukuru de Cimbres, liderado pelo cacique Biá, também de Pesqueira.
O conflito se desdobrou e terminou com dois indígenas de Cimbres alvejados e veículos e imóveis danificados, saqueados e destruídos, incluindo os de propriedade de Biá e Louro. Como resultado, em 2015, a Justiça condenou Marquinhos Xukuru a 10 anos e quatro meses de prisão por incêndio e dano e por induzir outras pessoas à execução do crime. A pena ainda foi majorada por crime continuado. Além do cacique, outros xukuru foram condenados.
Como publicou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), na época, a investigação e o processo judicial foram questionados por antropólogos e entidades de defesa dos direitos humanos. Os advogados dos xukuru questionaram o cerceamento de direito de defesa e o tamanho das penas, consideradas exageradas. No caso da condenação do cacique, a sentença foi publicada antes de se juntar ao processo os depoimentos de importantes testemunhas de defesa: o deputado federal Fernando Ferro (PT) e a subprocuradora geral da República na época, Raquel Dodge.
O histórico recente dos xukuru também foi marcado por grandes conquistas. A Associação Xukuru, que representa quase 12 mil pessoas de 24 aldeias, teve, em 2020, em meio a tantos retrocessos na política indigenista, a notícia do depósito, por parte do governo brasileiro, de uma indenização de US$ 1 milhão.
A indenização foi uma reparação após condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no início de 2018, por violar direitos à propriedade coletiva e à garantia e proteção judicial dos indígenas. A lentidão e o descaso do governo federal abriram espaço para o descumprimento de demarcação de terras e o acirramento de conflitos.
Essa foi a primeira vez que o Brasil foi condenado por uma corte internacional por violar direitos indígenas. O caso foi denunciado na CIDH em 2002.
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Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com