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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
É um cenário de miséria. Estacas fincadas na maré se espalham às centenas. Só não são mais numerosas do que o lixo que se acumula na lama e flutua nas águas da bacia do Pina. Por trás, encrustadas na encosta de terra, algumas poucas casas de alvenaria, com uma estreita passagem na frente, feita de tábuas improvisadas sobre as águas. Entre ratazanas, fios desencapados, água suja e muito lixo, algumas poucas famílias sobrevivem entre o que restou das palafitas do que era a comunidade Entre Pontes, devastada em um incêndio que ocorreu há pouco mais de um mês.
Quem ainda está ali, está à espera. Os que tinham um barraco receberam R$ 1,5 mil da Prefeitura do Recife e entraram no auxílio moradia, que subiu de R$ 200 para R$ 300. Além disso, as famílias das casas de alvenaria vão receber um valor definido pelo que está construído.
Enquanto esperam que a prefeitura deposite o dinheiro combinado — segundo a prefeitura, o pagamento começa sexta-feira (10) — os que ficaram vão sendo submetidos a condições ainda mais miseráveis do que antes do incêndio. Há apenas um ponto de água da Compesa. Uma única torneira, compartilhada por todos. A energia elétrica vem de uma única casa e é distribuída ao longo de vários metros de fios velhos e perigosos.
Com as chuvas quase incessantes de maio e junho, as casas estão com goteiras, infiltrações e, em algumas delas, a barreira que fica imediatamente atrás, já no terreno do Clube Líbano, se tornou uma ameaça. “A Defesa Civil veio aqui e condenou minha casa. O meu muro está todo rachado no meio”, diz Mickeline Edilene do Nascimento, 28 anos, conhecida como Kelly e uma espécie de porta-voz dos que ficaram.
A família dela ocupa metade das casas que ainda estão ocupadas. Ela conta que veio morar na casa ainda bebê, trazida pelos pais, José Aldson João do Nascimento, 53 anos, e Misolene Edilene da Costa, 64 anos. Os dois deixaram a comunidade do Bode para ir morar na Entre Pontes. Viveram da maré, com a pesca e a mariscagem. Hoje, se preparam para deixar o local. “Sou nascido e criado na beira da maré. A gente vive da pesca, vai morar onde? vou ficar por aqui mesmo na Beira Rio (comunidade que fica depois do shopping RioMar) ou no Bode”, diz José Aldson, que parou de pescar após crises de epilepsia.
Morando com o companheiro e as duas filhas na casa ao lado dos pais, Kelly conta que vai receber R$ 32 mil pela casa. “Teve morador que pegou só 6 mil, nas casas de um cômodo só de alvenaria”, diz.
A prefeitura afirma que 42 famílias ainda moram na estreita faixa de areia da área das palafitas. Mas quando a Marco Zero foi lá, na segunda-feira, não havia mais de uma dúzia de famílias. Quase todos já receberam o auxílio de R$ 1,5 mil da prefeitura. “Paguei minhas dívidas e pensão para o meu filho. Fico aqui preso para ninguém retirar nossas coisas. De noite vem gente aqui tentar saquear, levar as telhas”, conta Laelson Botelho, 36 anos, que mora lá há cinco anos.
Os moradores que ainda estão no local não reconhecem o número total de 187 famílias, divulgado pela prefeitura. “Aqui moravam 39 famílias. Pegaram nome de pessoas que nunca sequer moraram aqui, nunca tiveram barraco aqui. Se 20 famílias moravam na parte queimada era muito”, reclama Laelson.
Uma parte das palafitas que queimaram no incêndio pertenciam a pessoas que não moravam ali, mas usavam os barracos como ponto de apoio para pescar ou catar mariscos. Não era o caso de André Severino, 26 anos, que vivia em um dos barracos destruídos pelo fogo. A mãe e o padrasto se abrigavam perto, debaixo do viaduto Capitão Temudo. Sem ter para onde ir após o incêndio, acabou se juntando a eles.
“Nesse tempo de frio e chuva é muito difícil. Tem que dividir os lençóis. Não recebi nenhum colchão de doação, nada”, lamenta André. Ele também ainda não recebeu a ajuda de R$ 1,5 mil nem o auxílio moradia. “A Defesa Civil veio aqui e pegou meu nome e CPF. Disseram que iam me chamar”, diz André, que há dois anos se abrigava nas palafitas. Ele acredita que não recebeu ainda os valores por que está sem documentos. “Queimou tudo. Essa semana vou atrás disso”, conta.
Com o acúmulo de tragédias no Recife, as doações desapareceram. Após o incêndio foram muitas. E causaram inclusive desavenças na comunidade. “Tinha casa que tinha cesta básica até o teto, outros ficaram sem nada. Os moradores fixos mesmo estão aqui sem água e quase sem energia”, diz Kelly, que já acertou a compra de um terreno na maré de Barra de Jangada, em Jaboatão dos Guararapes. “Estou só esperando a prefeitura liberar o dinheiro para me mudar”.
Não há dúvidas de que, estando como está, a Entre Pontes é um ambiente insalubre, incompatível com uma vida digna. Mas os moradores não queriam sair dali, que tem uma localização privilegiada para quem vive do mar. E também para o mercado imobiliário.
Há mais ou menos dez anos os moradores das palafitas começaram a ouvir falar que seriam expulsos porque um prédio iria ser erguido no terreno do Clube Líbano. Em 2011, o clube firmou contrato com a construtora Conic para reformar o espaço e construir um empresarial. Esse projeto nunca saiu do papel. No final do ano passado, foi divulgado que o Clube Líbano havia rescindido contrato com a Conic e fechado com a Moura Dubeux.
A partir daí tudo começou a caminhar com celeridade. Em março, a construtora já anunciava as vendas de um prédio residencial – e não mais comercial, como no projeto da Conic – com 297 apartamentos, entre 40 e 47 metros quadrados cada, com preços a partir de R$ 367 mil. O Edifício Líbano também terá um mini mercado, piscina na cobertura e, segundo as imagens do futuro empreendimento, nem sinal de palafitas à frente.
Nos vídeos publicados no final de março nas redes sociais da Moura Dubeux, a arquiteta Mara Costa fala dos três pilares do projeto: o edifício em si, a reforma do Clube Líbano e uma “área pública que vai ser construída. Essa área, por si, só ela tem algumas funções”, enquanto ela fala, aparecem imagens de uma marina. Nas projeções do edifício, foi colocado um deck no lugar das palafitas.
Poucas horas após o incêndio a prefeitura do Recife já anunciava a ajuda de R$1,5 mil e a inclusão dos moradores no auxílio moradia. Para quem ainda está por lá, não há dúvidas de que o incêndio foi criminoso, para acelerar e facilitar a negociação da saída deles. O incêndio os deixou sem poder de negociação.
As primeiras informações, contudo, davam conta de que o fogo começou por conta da explosão acidental de um botijão de gás. “Mas foi muito estranho. Teve a explosão e depois teve outra, e outra, e outra. Como pode? Tinha quatro ou cinco botijões ali?” questiona André Severino, que estava nas palafitas na hora do incêndio. “Teve gente que só saiu com a roupa do corpo”, lembra Maria da Penha, 58 anos, casada com um morador.
“Eu queria que investigassem esse incêndio. Foi coisa de segundos para se alastrar. Qualquer incêndio que tem em um apartamento, tem perícia. Aqui os bombeiros vieram só para apagar o fogo, não teve perícia nenhuma. O que fizeram foi enviar a Rocam para cá, dizendo que tem tráfico, que o fogo foi culpa do tráfico. Mas foi para amedrontar a gente, para a gente sair daqui. Aqui eu não tenho medo dos bandidos, mas da polícia”, acusou Laelson. “Eu não queria sair daqui. Me acostumei. Trabalho com delivery e pesca, aqui é 10 mil vezes melhor que Joana Bezerra. Mas a Moura Dubeux está praticamente obrigando a gente a sair”, lamenta.
Em nota, a Polícia Civil de Pernambuco afirmou que as investigações estão sob a responsabilidade da Delegacia de Boa Viagem e que “todas as providências necessárias para o esclarecimento do fato foram tomadas”. A Marco Zero questionou se foi feita perícia no local pela Polícia Científica, mas não obteve resposta. “Mais detalhes sobre as investigações não podem ser repassados para não atrapalhar o curso das diligências”, termina a nota da polícia.
Já a prefeitura do Recife afirmou, em nota, que começou hoje (08) a operação de retirada dos materiais das palafitas, que está sendo feita por trabalhadores da Diretoria de Limpeza Urbana do Recife. A área não deve voltar a ser usada para moradia. Na nota, a prefeitura afirma que no pequeno espaço da já quase encerrada comunidade Entre Pontes “vai construir, em diálogo com a comunidade e a associação de moradores, um projeto de urbanização que prevê um espaço de convivência na localidade, que envolva economia criativa, educação, cultura e geração de emprego e renda, reforçando a vocação econômica pesqueira da área”.
“A Prefeitura do Recife informa que todas as 187 famílias da comunidade do Pina vítima de incêndio receberam, ainda no mês de maio, o auxílio-pecúnia no valor de R$ 1.500,00. Todas elas foram incluídas no programa de auxílio-moradia e, a partir deste mês de junho, deverão receber o benefício, que será ampliado em 50%, subindo de R$ 200 para R$ 300.
Com o pagamento da pecúnia, as pessoas que viviam em palafitas deixaram o local e retiraram seus pertences. Elas foram morar em casas de parentes e amigos. Com isso, desde o início desta quarta-feira (8), em comum acordo com os moradores, trabalhadores da Diretoria de Limpeza Urbana do Recife iniciaram a operação de retirada dos materiais das palafitas.
Permanecem na comunidade apenas 42 famílias que moram em casas de alvenaria. Esses moradores, que também foram beneficiados com R$ 1.500,00 e o auxílio-moradia, começam a receber, a partir da próxima sexta-feira (10), as indenizações pelas benfeitorias realizadas nos imóveis, baseada nos laudos técnicos emitidos pela Autarquia de Urbanização do Recife (URB). Após o pagamento, essas moradias serão demolidas e as pessoas serão direcionadas para casas de parentes.
Por fim, a Prefeitura do Recife reitera que, finda a etapa de pagamento das indenizações, vai construir, em diálogo com a comunidade e a associação de moradores, um projeto de urbanização que prevê um espaço de convivência na localidade, que envolva economia criativa, educação, cultura e geração de emprego e renda, reforçando a vocação econômica pesqueira da área.”
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org