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Um rio aberto com as próprias mãos

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

O sábado amanheceu chovendo forte. Mesmo assim, por volta das 6h30min, os organizadores do projeto Águas Potiguara já estavam no ponto de encontro combinado na aldeia do Alto Tambá, na Baía da Traição/PB, para cumprir uma rotina que começou há exatos três anos. Desde 21 de janeiro de 2021, um grupo cada vez maior de indígenas da etnia potiguara se reúne aos sábados para trabalhar na revitalização do Rio do Aterro.

O Águas Potiguara é um projeto localizado nas aldeias Forte e Alto do Tambá, na Baía da Traição (PB) e tem como objetivo limpar os rios do Território Indígena Potiguara. O projeto começou pelo rio do Aterro, afluente do rio Sinimbu e que corta as duas aldeias.

Aos poucos, a chuva foi diminuindo e os voluntários chegando ao ponto do rio onde a limpeza havia parado na semana anterior. Por volta das 9h, com o sol já forte, 12 pessoas estavam com as ferramentas na mão, iniciando o duro trabalho de revitalização. Com facões, enxadas e cavadeiras retas, os voluntários precisam de força para cortar, arrancar e remover blocos formados por uma mistura de raízes de aningas (planta que cresce às margens de rios, em solos cobertos com água), terra e matéria orgânica que se entranharam no leito ao longo do tempo.

A cada sábado, a limpeza do rio avança um pouco. No dia em que a equipe da Marco Zero visitou o projeto, ainda em 2023, foram pouco mais de sete metros conquistados. Parece pouco, mas é que o grupo chegou na parte mais difícil de trabalhar, onde os sedimentos estão mais consolidados e a vegetação mais densa. Mesmo assim, ao completar três anos, já foram recuperados mais de 3,5 quilômetros, faltando cerca de um quilômetro para liberar todo o rio.

Apesar da dureza do trabalho, o ambiente durante a limpeza é leve, divertido e, como eles fazem questão de dizer, familiar. A conversa rola solta e as risadas podem ser ouvidas de longe. “A maioria trabalha durante a semana. Às vezes tem até uma jornada dupla. Trabalha, faz universidade, faz outra coisa, mas o sábado é sagrado”, lembra Ivson Antônio Souza e Silva, um dos participantes mais assíduos. “Eu costumo dizer que o Águas, hoje, é uma família. É uma família que a gente já colocou no dia a dia como uma rotina”, complementa Cristina Potiguara, que participa do projeto desde o início.

Cristina contribui com uma parte muito importante da rotina dos sábados pela manhã. “Enquanto os meninos estão lá trabalhando, a gente fica preparando a comida. Esse trabalho aqui, a gente sabe, que é um trabalho que requer bastante energia, esforço e, principalmente, força vontade”. O almoço, feito com ingredientes doados pelas famílias dos próprios voluntários, é servido no final da manhã, quando o sol forte determina o fim dos trabalhos. Além de repor as energias, a refeição feita ali mesmo, em uma sombra próxima ao rio, é um momento de troca de brincadeiras e afetos. É quando o sentido de “família” do Águas Potiguara fica mais evidente.

Essa ideia de construção coletiva, com cada uma contribuindo como pode, norteia todo o projeto. “Para gente, cada sábado é um desafio. A gente consegue ter apoio de alguns parceiros que disponibilizam alimentação, ferramentas… Mas é um desafio no sentido de dizer assim: ‘olha, hoje eu vou contribuir com mais alguns metros de abertura do rio’. Quando estou lá me sinto bem. É gratificante estar ali, com todos reunidos num pensamento só”, explica Gessé Viana da Silva, que é pedagogo com especialização em educação indígena.

A ideia de limpar o rio do Aterro nasceu em um momento muito difícil para a comunidade. “Durante a pandemia de covid-19, a gente se fechou para o mundo. A gente começou a discutir muito a questão ambiental, a gestão territorial. Vimos que a gente precisava cuidar do nosso rio”, lembra Poran Potiguara, uma das lideranças do projeto e que hoje trabalha na ONG The Nature Conservancy, em Belém (PA).

“O rio é o território. É o responsável pela existência e pela fertilidade do território.”

Gessé Viana da Silva

Na hora de tirar a ideia do papel, o grupo foi procurar o apoio das autoridades municipais. “Na conversa com alguns candidatos a vereador, a prefeito, perguntávamos qual era a proposta deles para o rio da comunidade”, conta Poran. Mas aí a gente se deu conta de que não tínhamos que esperar por ninguém. Que a gente tinha que fazer o negócio acontecer. Então, decidimos abrir o rio no ano seguinte. Combinamos isso novembro, dezembro. Em 21 de janeiro de 2021 fizemos a primeira ação de limpeza”.

De pai para filho

Indigenas Potiguaras: Poran, Cristina, Ivson, Ailton e a neta

Poran, Cristina, Ivson e Seu Aílton, ao lado da neta: o conhecimento ancestral é uma das bases do projeto. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

O projeto nasce a partir de uma perspectiva ambiental e territorial, mas também do resgate de uma memória coletiva, alimentada pelas histórias contadas e recontadas pelos mais velhos. “É um projeto genuinamente indígena, nascido dentro do território potiguara e totalmente voluntário”, conta com orgulho Aílton Silva Lima, pai de Poran, tio de Cristina e que, aos 57 anos, é um dos mais experientes do grupo. Essa experiência é muito respeitada pela turma mais nova. A contribuição dos “anciões”, o conhecimento ancestral, é um dos pilares do Águas Potiguara. “O projeto nasce inspirado no pessoal que já fazia a limpeza. Eles limpavam uns duzentos, trezentos metros, temporariamente, a cada dois anos, três anos. Mantinham o rio aberto para não alagar o local onde plantam até hoje”, conta Poran.

Para Cristina, devolver a vida por completo ao rio passou a ser uma missão de sua geração. “É a nossa devolutiva enquanto juventude. Nós que estamos saindo da universidade, que estamos na universidade, a gente pode até ter a teoria. Mas a prática está com os anciões. São eles que guiam toda essa juventude na abertura do rio. Nada estaria acontecendo se não fosse a presença deles. Por isso é tão importante esse diálogo e essa comunicação que existe entre nós jovens e os anciãos.”

Como um rio morre?

Trecho do rio do Aterro, coberto por aningas, antes de ser recuperado pelo Águas Potiguara. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

A morte do rio do Aterro foi lenta e gradual, fruto de um processo de urbanização desordenado e de mudanças culturais que afastaram as pessoas do curso d’água que cortava a comunidade. Difícil saber exatamente quando a destruição começou, mas os relatos dos moradores mais antigos sugerem que o processo de assoreamento se acentuou, há cerca de três décadas, após uma dragagem que não respeitou a sinuosidade do rio e praticamente destruiu a mata ciliar.

O certo é que, aos poucos, as pessoas foram se afastando do rio. Um dos fatores desse afastamento, que parece ser consenso entre os moradores mais antigos, foi a chegada da água encanada, por volta do final dos anos 1990. “Água encanada facilita a vida do morador e, então, a gente esquece um pouco o rio e foca nas coisas que tem que fazer no quintal mesmo”, explica Aílton que, na infância tinha a casa abastecida por latas d’água trazidas do Aterro.

Poran é um dos que concordam que a dragagem teve um papel fundamental, mas acrescenta outros fatores que interferiram no processo. “Um rio que era sinuoso, que tinha seus meandros, ele passou a ser reto. Junto com isso, o povo foi deixando de plantar na margem. Então, foi deixando de cuidar também, porque o plantar na margem do rio gerava um cuidado, principalmente, o cuidado com as enchentes. As chuvas torrenciais poderiam fazer você perder toda a sua plantação. Você tinha que manter o canal aberto para a água descer. Você deixou de plantar, deixou de fazer o uso social do banho, de pegar frutas, de pegar água, de lavar roupa… Aí o rio começou a ser esquecido”.

Com o tempo e o abandono, as aningas começaram a crescer descontroladamente formando blocos de lama e raízes emaranhadas. Aos poucos, o rio do Aterro estava literalmente aterrado.

A dimensão ambiental

Não basta apenas abrir o caminho para a água. Para o rio continuar vivo é preciso restabelecer o equilíbrio da natureza em seu entorno. Por isso, o pessoal do Águas Potiguara iniciou um projeto para recuperar a mata ciliar. “No momento, estamos construindo o nosso viveiro de mudas. Estamos com várias mudas de jenipapo, ipê, copaíba, pau-brasil e entre outras. Iremos realizar o plantio assim que o período de chuvas começar”, conta Fernanda Soraggi que, entre outras coisas, foi responsável pela comunicação do projeto até mudar-se para Belém (PA) no final do ano passado.

O viveiro fica na sede do projeto, na principal rua da aldeia Alto do Tambá. Como tudo no Águas Potiguara, a sede foi instalada em uma casa recuperada com o trabalho coletivo e voluntário. Hoje, além do viveiro de mudas, o local é usado para eventos culturais, reuniões e apoio. Segundo Poran, que é engenheiro florestal, a ideia é fazer uma casa de sementes e um viveiro com capacidade de 5 mil mudas a cada seis meses, 10 mil mudas anuais. “Então, nosso grupo agora também tem essa missão. A gente sabe que essa é a segunda parte da recuperação do rio, reflorestar a mata ciliar. É um processo que leva anos, décadas. Porque a mata praticamente não existe”.

Mesmo sem ter sido concluído e ainda sem a mata ciliar, o projeto já começa a ter impacto no meio ambiente. “A medida que a gente foi abrindo, que a gente voltava no ano seguinte, a gente começou a ver espécies de peixes que a gente não tinha visto antes, que mesmo na infância a gente já achava difícil encontrar”, comemora Poran.

Os mais jovens do projeto têm um exemplo e uma inspiração quando o assunto é ecologia. Francisco Balbino Neto, mas conhecido como seu Cedinha, tem 64 anos e trabalha com agricultura familiar em uma propriedade de cerca de oito hectares cortada pelo rio do Aterro, em um trecho que já foi aberto logo no início do projeto. A forma equilibra como a família se relaciona com a terra, o rio e a natureza acabou se tornando uma espécie de modelo de convivência com o meio ambiente.

A propriedade é dividida, basicamente, em três partes. Uma delas é o “paú”, uma área mais próxima do rio que fica alagada durante o período de inverno. Quando seca, no verão, é usada para a agricultura. A outra, que eles chamam de “arisco”, é o terreno que fica seco o ano todo e que vira roça durante o inverno. A terceira parte, orgulho de seu Cedinha, é a área em que a mata nativa, cada vez mais rara, foi recuperada e preservada pela família.

Fernando Duarte Balbino é filho de Seu Cedinha e parceiro do pai na lida com a terra. Para ele, o que é feito na propriedade da família é um exemplo de que se pode plantar e preservar ao mesmo tempo. “Estamos deixando um legado para nossos filhos e para toda a comunidade”. Fernando conta que sempre esteve ligado à natureza mas que seu Cedinha não. “Pai era de caçar, pescar… Com o tempo e a experiência foi criando consciência. Hoje ele é mais do que eu”.

Tanto seu Cedinha quanto Fernando estão entre os mais atuantes no projeto de limpeza do Rio do Aterro. No dia em que a equipe da Marco Zero visitou o projeto, os dois passaram a manhã dentro d’água. Fernando, com um facão, cortando as raízes de aningasentrelaçadas com lama e o pai ajudando a colocar o material cortado para fora do leito do rio.

Seu Cedinha não falta a um sábado de limpeza. Ele sonha em voltar a ver o rio do Aterro como era no seu tempo de criança. Todo mundo tomando banho, todo mundo pulando dentro do rio. A água não era suja nem nada e a gente bebia água do rio mesmo. Fomos criados com água do rio. E agora nem pode nem tomar água do rio. Ninguém sabe nem onde é o rio”.

A dimensão social

Para Cristina, o projeto precisa mostrar às famílias como elas podem produzir a partir dos recursos oferecidos pela natureza. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

O rio do Aterro era parte importante na dinâmica das comunidades que nasceram em seu entorno. “Precisamos devolver o uso coletivo do rio. Mostrar para as famílias como elas podem produzir a agricultura familiar, tirando sua subsistência a partir desses recursos que são oferecidos pela própria natureza”, explica Cristina que é mestra em antropologia social. Segundo ela, o projeto pretende trabalhar com roçados coletivos e com agrofloresta, mostrando a importância do uso social e familiar tanto dos rios quanto dos espaços de produção.

A agricultura pode ser o primeiro passo para resgatar o papel central que o rio tinha nas aldeias. Aílton lembra que antigamente o rio tinha divisões. “Tinha os horários do banho, tinha a parte das mulheres, tinha o lugar de lavar roupa, tinha um local onde se podia pegar água. Então era, assim, cheio de regras distribuídas ao longo do rio”.

Mas o rio também tinha outra importante função social: o lazer. Gerações, inclusive a dos idealizadores do Águas Potiguara, tomaram muito banho, pescaram e brincaram por lá. “A gente percebeu que as crianças de hoje não sabem sequer como era a infância no nosso tempo. Isso gerou um incômodo e a gente viu que precisava fazer alguma coisa”, relembra Cristina. “Queria ver meus filhos pulando dentro da água, todos felizes”, resume seu Cedinha, ao falar de sua preocupação com a limpeza do rio do Aterro.

A dimensão do sagrado

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Um marco no projeto foi o dia em que apareceu uma jararaca durante a limpeza do rio. Na época, por volta de setembro de 2022, o projeto ainda era uma coisa muito fechada no grupo interno. “A gente não se preocupava muito em ter rede social, íamos sem EPI (Equipamento de Proteção Individual)”, lembra Poran.

Foi quando Fernando, que estava na função de cortar as raízes, partiu acidentalmente a cobra no meio. “Ficou todo mundo assustado. Se uma jararaca picasse alguém? Poderia atrofiar músculos ou até mesmo matar. Naquele dia, a gente decidiu que iríamos fazer uma campanha na rede social para comprar EPIs. A gente decidiu que iria criar um Instagram e que precisava de um nome para o projeto”. Foi aí que surgiu o Águas Potiguara.

Segundo Poran, essa campanha de comprar EPIS levou o projeto a outro patamar. “Tornou o nosso projeto muito reconhecido. Na mídia local mesmo saiu reportagem na televisão, entrevista para rádio e todo mundo começou a disseminar o projeto”.

O curioso é que o episódio da jararaca também despertou o grupo para a dimensão do “sagrado espiritual” que o Águas Potiguara carregava. “Consultamos um pajé nosso para tentar entender o porquê da cobra. E aí a gente descobriu que a cobra foi um presente do sagrado e do rio. A dona do rio, que para nós é a mãe d’água, a sereia, ela nos deu o presente que foi a cobra. A gente foi entender que a cobra ali foi só o simbólico. Descobrimos que a cobra significa mudança. E de fato mudamos”, lembra Poran.

Desde então, as pessoas que tocam o projeto passaram a ter o entendimento de que, à medida que o rio estava fechado, assoreado, ele estava morrendo e o sagrado estava ficando enfraquecido também. Gessé, por exemplo, entende que trabalhar com o rio não é só abrir o canal, não é só replantar, mas é também fortalecer o sagrado. “Que é um sagrado cultural, muito lógico e parte da nossa realidade”.

Seu Aílton manda um recado para os céticos: “Pouca gente vai acessar porque, talvez, não acredite. Tem muitas pessoas céticas. Mas quem minimamente enxerga o mundo espiritual, verá que é um mundo que existe”.

“Nem todo mundo vai conseguir sentir, nem todo mundo vai conseguir entender, mas existe na minha concepção, naquilo que eu vivo e naquilo que eu tenho procurado entender de cada dimensão”, complementa Gessé.

O resgate da identidade

No resgate da identidade potiguara, Gessé passou a usar o cocar característico feito de palha de carnaúba. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

O trabalho de revitalização do rio, da forma como vem sendo feito, acaba sendo também o resgate da história e da identidade potiguara. Um resgate que se manifesta no sentimento de pertencimento que começa a crescer entre os jovens, na redescoberta de símbolos ancestrais, das pinturas, do artesanato, da forma de ver o mundo, tanto o material quanto o sagrado.

Em três anos, o Águas Potiguara tomou uma dimensão maior do que qualquer um dos fundadores poderia imaginar naqueles dias de pandemia. Agora, eles já pensam em voos maiores no futuro. Futuro que Seu Ailton fala com brilho nos olhos. “Não é só essa parte aqui no Rio do Aterro. É fazer em todo território potiguara. Mas, para isso, temos que ter também condições. É um trabalho árduo. A gente precisa de parceria, precisa de ajuda. Eu tenho certeza que é um projeto de larga a escala. Pode-se dizer que não é um projeto só pra hoje. É um projeto duradouro, um projeto que visa o futuro das próximas gerações. Para que eles possam cuidar também e ser multiplicadores como Águas Potiguara está sendo hoje”.

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AUTORES
Foto Inês Campelo
Inês Campelo

Formada em Jornalismo pela Unicap. Apaixonada pela fotografia, campo que atua profissionalmente desde 1999. Atualmente é freelancer e editora de imagens do Marco Zero.

Foto Sérgio Miguel Buarque
Sérgio Miguel Buarque

Sérgio Miguel Buarque é Coordenador Executivo da Marco Zero Conteúdo. Formado em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco, trabalhou no Diario de Pernambuco entre 1998 e 2014. Começou a carreira como repórter da editoria de Esportes onde, em 2002, passou a ser editor-assistente. Ocupou ainda os cargos de editor-executivo (2007 a 2014) e de editor de Política (2004 a 2007). Em 2011, concluiu o curso Master em Jornalismo Digital pelo Instituto Internacional de Ciências Sociais.