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Vacina para alunos de medicina do ciclo básico gera debate sobre fila de prioridades

Maria Carolina Santos / 12/03/2021

Crédito: National Cancer Institute/Unsplash

Nossos alunos da Fits serão vacinados nessa quarta, quinta e sexta. Eles vão estar com uma lista nominal dos alunos com nome, CPF e data de nascimento de todos os alunos regularmente matriculados”.

Um áudio que começava com essa mensagem circulou por grupos de WhatsApp gerando críticas e espanto. Era a coordenação da Faculdade Integrada Tiradentes (Fits), em Jaboatão dos Guararapes, convocando todos os alunos para serem vacinados contra a Covid-19 já nesta semana. Boa parte dos estudantes com menos de 20 anos. No calendário do município, a vacinação por idade está nos moradores com mais de 74 anos.

Depois que os áudios se espalharam pelas redes sociais, a Prefeitura de Jaboatão e a Fits emitiram notas para explicar a situação. A prefeitura afirmou que o áudio era equivocado. “Serão imunizados apenas os estudantes que estiverem cadastrados no município e atuando na linha de frente contra a pandemia no suporte aos usuários do sistema público de saúde do Jaboatão”, diz a nota.

A própria assessoria da prefeitura enviou para a Marco Zero o posicionamento da Fits, que, de certa forma, contraria a nota municipal. “A Faculdade Tiradentes em sua estrutura curricular possui componentes que direcionam a realização de práticas nos serviços de saúde desde o primeiro período do curso”, afirma, justificando a vacinação de todos os alunos.

Desde 2014, o currículo dos cursos de medicina prevê aulas práticas desde o primeiro período. Nos últimos dois anos de medicina, o estudante fica no regime de internato: ainda que não tenha diploma, já participa do atendimento de pacientes, com supervisão.

O Plano Nacional de Imunização (PNI) garante a vacinação de “acadêmicos em saúde e estudantes da área técnica em saúde em estágio hospitalar, atenção básica, clínicas e laboratórios”.

A Fits é uma faculdade nova em Jaboatão dos Guararapes. Foi inaugurada em 2018 com a presença do prefeito Anderson Ferreira e do então ministro da Educação, José Mendonça Filho. Por isso, ainda não tem nenhuma turma no ciclo profissional. São todos do ciclo básico, onde, sim, acontecem aulas práticas em ambiente hospitalar. A parceria da Fits para essas aulas e internato é com a Secretaria de Saúde de Jaboatão dos Guararapes e o Hospital Memorial de Jaboatão. É a única faculdade de saúde com sede no município.

Nas redes sociais, alunos da Fits do segundo período comemoraram nessa semana que conseguiram ser vacinados. Não há ilegalidade se são mesmo considerados estagiários da Secretaria Municipal de Saúde – como afirma a nota da secretaria.

O que parece haver é mais uma questão de prioridade entre prioridades. Com uma população de mais de 706 mil pessoas, Jaboatão recebeu até agora apenas 44.286 doses de vacina contra a Covid-19 (32.836 doses da CoronaVac e 11.450 doses da Oxford/AstraZeneca). Alunos jovens, muitos de outras cidades, devem ter prioridade? Ou deve haver mais prioridades dentro das prioridades?

Disputando misérias

Para um professor de medicina ouvido em reserva pela Marco Zero, estudantes que estão no internato devem ter tanta prioridade quanto os profissionais de saúde. Isso porque eles estão no dia a dia do hospital e fazem atendimento direto de pessoas doentes. Já os do ciclo básico ficam menos expostos, já que participam apenas de aulas práticas, que duram cerca de uma hora, por uma ou duas vezes na semana, em pequenos grupos.

Mas, em um mundo com mais vacinas, esses estudantes também deveriam ser incluídos. Afinal, também estão frequentando unidades de saúde, e isso no meio de uma pandemia de um vírus extremamente contagioso e grave. “O que acontece é que estamos disputando misérias. Eles deveriam sim ser vacinados. Mas e o senhor de 70 anos que está trabalhando com o público? Ele não seria de maior risco?”, questiona, lembrando também da responsabilidade do Governo do Estado em acompanhar e fiscalizar as prioridades estabelecidas pelos poderes municipais. A Marco Zero questionou o Governo do Estado sobre a vacinação de estudantes de medicina, mas não obteve resposta.

Uma estudante do ciclo profissional de medicina em uma universidade pública, que denunciou a vacinação da Fits e que também preferiu não se expor nesta reportagem, reclama que “são estudantes que poderiam estar realizando suas atividades à distância, mas estão sendo priorizados na vacinação”. O MEC não autorizou que o ciclo básico funcione apenas com aulas remotas. “Entendo e concordo com o prejuízo das atividades à distância, mas também entendo que o contexto é de prejuízo generalizado. O tipo de prejuízo que esses estudantes terão não chega nem perto daqueles que trabalhadores desprotegidos terão”, afirma.

“Acho que o momento de colapso do sistema pede que o investimento das imunizações deva ser direcionado para grupos de risco. Sobretudo para grupos que não conseguimos encontrar outras formas de proteger, a exemplo de funcionários de serviços essenciais que não conseguem ficar em casa por precisar manter seu sustento. Parece uma extrapolação absurda, mas colocar estudantes do ciclo básico para vacinar em detrimento de outros grupos, no momento de colapso, acaba sendo escolher quem vive e quem morre”, disse à Marco Zero. “Não consigo me conformar com a proteção de estudantes não essenciais, sobretudo quando me lembro dos pacientes que vi quando estava tendo meu rodízio de internato na UPA. Quantos de lá não teriam se livrado se tivessem tido acesso à vacinação?”, questiona.

Frente pela vacinação dos estudantes

O que aconteceu com a Fits é um caso isolado. Estudantes que estão na linha de frente em hospitais encontram dificuldades para conseguir a imunização, mesmo estando incluídos no Plano de Imunização Nacional. Por isso, em fevereiro, diretórios acadêmicos de faculdades públicas e privadas de medicina criaram a Frente dos Estudantes de Medicina da Região Metropolitana do Recife pela Vacinação.

Em uma pesquisa com 3.938 estudantes de medicina de todas as Instituições de Ensino Superior da Região Metropolitana do Recife, de todos os períodos, a quase totalidade dos estudantes (95,86%) afirmou ainda não ter recebido nenhuma dose da vacina contra a Covid-19. Ao mesmo tempo em que 71,56% dos estudantes disseram já ter tido contato com casos suspeitos ou confirmados da Covid-19 durante estágios curriculares na rede de saúde. Para os alunos que estão no período de internato, o percentual de exposição à Covid-19 foi de 98,28%.

A pesquisa é divulgada aqui em na Marco Zero em primeiro mão, mas os dados são de fevereiro, quando foi realizada a coleta, e não inclui a vacinação desta semana.

Os dados servem para avaliar o panorama de vacinação dos estudantes de medicina. “Com esses dados, esperamos embasar melhor uma articulação com gestores de saúde e com a sociedade em geral. Afinal, não é só quem é formado que é exposto ao risco da doença. Não é só quem tem diploma. Nós que ainda não somos formados estamos nos mesmos ambientes que os formados estão. Apenas pelo fato de terem um diploma, um registro em conselho de saúde, eles tinham direito e a gente não estava tendo. Profissionais de emergência foram vacinados e estudantes no mesmo local, com o mesmo risco, não tiveram direito a imunização. Uma parte muito pequena dos estudantes conseguiu a vacinação. Isso contraria o princípio de equidade do SUS”, afirma Letícia Rodrigues, integrante da Frente dos Estudantes de Medicina da Região Metropolitana do Recife pela Vacinação.

Para a Frente, é necessário também ter prioridades entre os estudantes. “Na Covid-19 quem está mais exposto ou quem tem mais risco de complicar são os que devem ser priorizados. Defendemos sim que a equidade seja seguida, começando com quem tem mais risco e está mais exposto. Então, dentro do curso de medicina a gente defende que os estudantes que devem ser primeiramente vacinados são os estudantes em ambientes de maior exposição, como os que estão rodando nas emergências, principalmente os do internato. Deve começar por eles”, diz.

Letícia também reforça a necessidade de mais vacinas. “É muitíssimo importante lembrar sempre que, como sociedade, não podemos fechar os olhos para as irresponsabilidades do Governo Federal frente à pandemia. Precisamos cobrar a compra de mais vacinas, precisamos cobrar uma postura de respeito de quem governa o país. A atual situação nacional é precária, é uma imensa falta de responsabilidade que, cada vez mais, vem colaborando com a catástrofe humanitária que se tornou a pandemia no país”, diz.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com