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A primeira Noite dos Tambores Silenciosos de Olinda sem o Mestre Afonso

Maria Carolina Santos / 22/02/2019

Karen e Karina Aguiar, do Leão Coroado. Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Mestre Afonso conduzia o Maracatu Leão Coroado – o mais antigo em atividade, desde 1863 – com elegância e paciência ímpares. Não gritava, não fazia gestos bruscos. Com o apito na mão, o olhar já dizia tudo: ensinava com respeito, e era respeitado por onde fosse. Mestre Afonso também era babalorixá e responsável pela cerimônia da Noite dos Tambores Silenciosos de Olinda, que chega a 18ª edição nesta segunda (25) reunindo dez maracatus no Sítio Histórico. Em abril do ano passado, ele se encantou. Era uma noite de domingo quando teve um infarto fulminante durante um toque para Oxum.

Desde então, o terreiro dele, o São João Batista, a poucos metros do Maracatu Leão Coroado, em Nova Olinda, vive o luto obrigatório de um ano. Sem toques, sem festas, sem música. O babalorixá Amaro assumiu as funções de Mestre Afonso no terreiro e está preparando o Leão Coroado para este carnaval. Os integrantes passam três dias antes e três dias depois das obrigações religiosas de resguardo: sem bebida alcoólica e sem sexo. O babalorixá Amaro também vai conduzir a cerimônia na noite desta segunda-feira.

Para o maracatu, não foi deixado um herdeiro natural. Hoje, o maracatu é comandado por uma das filhas, Karina Aguiar, que cuida das questões administrativas e dos desfiles. “Sair nas ruas sem ele é complicado para todos nós. Estamos levando o maracatu como uma forma de sentir e estar na presença dele, em espírito. Muita gente, feito eu, busca no maracatu, na religião, esse momento de sentir ele mais próximo”, diz.

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Pela tradição religiosa do candomblé, mulheres não podem ocupar o posto de mestre de maracatu (entre os maracatus nação, apenas o Encanto do Pina tem uma mestra, Joana D’Arc). Mas é Karen, neta de mestre Afonso, quem apita os ensaios do maracatu, com a concessão dos orixás. Toda vez, antes de comandar o maracatu, os búzios são jogados e a permissão concedida.

Porém, para o carnaval – e na cerimônia desta segunda-feira – é Afonsinho, também neto do mestre, quem assumirá o apito. “Já botamos o maracatu na rua sem mestre Afonso e parecia que o tempo estava de luto junto com a gente. O baque fica pesado, é toda uma conexão espiritual do maracatu inteiro com o ambiente que ele frequentava. É algo que é maior que a minha saudade. O maracatu em si, espiritualmente falando, sente, o orixá sente muito. É como se a Terra estivesse de luto, é muito sensível”, conta Karen, que toca no batuque do Leão há seis anos. “Mas aprendo e ouço desde a barriga”, completa.

Humilde, Mestre Afonso não gostava de homenagens. Dona Janete, viúva dele, pediu apenas que os batuqueiros se vistam nos desfiles como ele se vestia. “Todo mundo de branco, com o quepe no estilo que ele usava”, conta. O maracatu não vai levar nenhuma foto do Mestre Afonso. “Ele sempre dizia que não queria que colocassem imagem dele em canto nenhum”, lembra a filha Karina.

Mestre Afonso. Foto: Eric Gomes/Secult-PE

Mestre Afonso. Foto: Eric Gomes/Secult-PE

Além de ser a abertura do carnaval para os maracatus, a Noite dos Tambores Silenciosos é acima de tudo uma noite de reverência aos egúns, os ancestrais. É um pedido, uma solicitação para que os espíritos de outros mestres concedam permissão para que os maracatus saiam às ruas na folia de momo. “E acontece sempre em segundas-feiras porque é o dia das almas”, diz Nilo Oliveira, um dos diretores da Associação dos Maracatus de Olinda (Amo). Os maracatus também vão pedir a Mestre Afonso – agora um egúm (espírito) – a permissão para saíam às ruas neste ano.

Participam da cerimônia deste ano o Maracatu Leão Coroado, Maracatu Nação Camaleão, Maracatu Nação Badia, Maracatu Nação de Luanda, Maracatu Nação Maracambuco, Maracatu Nação Pernambuco, Maracatu Nação Estrela de Olinda, Maracatu Nação Tigre e Maracatu Não Sol Brilhante.

A concentração é a partir das 18h30 nos Quatro Cantos do Sítio Histórico de Olinda. As nações seguem em cortejo pela rua e largo do Amparo até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Na chegada, a frente da igreja é lavada com perfume e cada nação de maracatu presta sua reverência entoando loas. À meia-noite, os tambores ficam em silêncio para lembrar os ancestrais. A cerimônia termina com queima de fogos.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com