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Convém não subestimar uma mulher que mesmo sob a acusação, fartamente comprovada, de ter plagiado 65 textos de 42 autores diferentes e ser condenada por uso indevido da marca da revista da qual tinha sido demitida, conseguiu convencer 1.078.666 pessoas a elegê-la como uma paladina da ética e da honestidade. E, mesmo novata, ganhou no grito a função de líder do governo no Congresso, praticamente impondo seu nome ao recém-eleito Jair Bolsonaro.
Essas razões me motivaram a acompanhar a palestra da deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) para empresários na sede da Associação Comercial de Pernambuco, uma daquelas bonitas construções que emolduram a praça Rio Branco, vulgo Marco Zero.
Foi bom ter ido. Nos últimos dias, depois de vê-la em ação quebrando o pau publicamente com seu correligionário Major Olímpio, tive a sensação que a deputada iniciou a reelaboração de sua imagem e vai tentar o malabarismo de descolar-se do governo cuja liderança exerce no parlamento. Durante sua passagem pelo Recife, Joice deu claros sinais de que, sim, minha hipótese tem fundamento.
Uma entrevista coletiva pouco concorrida – além da Marco Zero Conteúdo, estavam lá apenas repórteres dos três jornais locais – antecedeu à palestra. A deputada chegou com 47 minutos de atraso. Estava comendo frutos do mar, no Pina, com a cúpula da Associação e alguns parlamentares de “partidos variados”.
E ela chegou chegando, dispensou formalidades e cumprimentou a todos em voz alta. Sem cerimônia, decidiu os lugares da mesa, definiu que responderia a um máximo de oito perguntas, porque havia muita gente à espera no andar de baixo. E só trataria ao tema da palestra, “A nova previdência”. Outros assuntos – talvez estivesse se referindo ao seu arranca-rabo com o senador Olímpio – poderiam ser abordados depois.
Logo no início da entrevista, o telefone tocou. “É a imprensa. ‘Alô, estou numa coletiva, ligue depois, obrigado’. É o dia todo assim, vocês jornalistas me ligando”.
Joice não é seguidora de Olavo de Carvalho, mas a julgar pela postura na entrevista, ela também tenta convencer os interlocutores que a Terra não gira em torno do Sol. Para Joice, a Terra gira em torno de Joice. O Sol também. A Reforma da Previdência, essa então, se sair, será por causa de Joice e de mais ninguém, afinal está dedicada a articular nos bastidores com os líderes, enquanto os demais estão brigando no plenário. Essa é a ideia que ela tenta vender indo de capital em capital, viagens que ela chama de “Caravana da Previdência”.
Nessa peregrinação, ela diz que vira “uma pedinte, eu peço para que os brasileiros se juntem para pressionar os deputados a votarem pela Reforma, a votarem pelo Brasil. Deixei para vir ao Nordeste em junho porque esse é um mês importante para os nordestinos”. O que uma coisa tem a ver com a outra, eu não sei. Também não perguntei.
No Nordeste, Joice adota uma curiosa tática para convencer os governadores a colocarem suas bancadas a favor da reforma: ela os constrange, chamando ora de hipócritas, ora de demagogos. Mais uma vez, deixei de perguntar como esse tipo de pressão tão contundente poderia funcionar. Deixei passar, nunca fui um grande entrevistador.
Arrisco: ela joga para sua plateia de milhões de seguidores nas redes sociais, não para construir pontes ou um bom ambiente para diálogo. Vai ver foi por isso que não havia encontro com Paulo Câmara em sua agenda recifense.
Quando a entrevista estava perto de terminar, perguntei se, depois da palestra, poderíamos conversar separadamente, pois meu interesse era abordar essa mudança da Joice incendiária para uma Joice mais articuladora, mais conciliadora. “Sim, vamos, no final podemos conversar, sim”. Minutos depois, eu iria me arrepender de ter tocado nesse assunto.
Diante de uma plateia de, aproximadamente, 150 pessoas, Joice Hasselmann fez o que faz melhor: vendeu o produto Joice Hasselmann, que, em breve, estará disponível em nova embalagem.
De uma empresária, ou melhor, da filha de um empresário, ela recebeu flores e a frase de efeito: “Se a nova previdência não for aprovada, nem a divina providência salva o Brasil”. Pelo jeito, diante do derretimento de um presidente que mal sabe se comportar em público, a Reforma substituiu Bolsonaro na condição de novo “mito” para quem acredita em milagres, salvadores da pátria e soluções fáceis e definitivas.
Joice não explicou o que seria a tal “Nova Previdência”, não apresentou dados, não aprofundou informações. Longe disso. Sua lógica, sempre numa linguagem clara e bastante cênica, típica de uma youtuber, é bater com ênfase na mesma tecla, sem argumentos.
O primeiro 1/3 de sua fala de 45 minutos foi dedicado a pedir que os endinheirados presentes pressionassem seus deputados, o governador e a opinião pública. Segundo ela, isso está dando “super certo, porque quando comecei a Caravana da Previdência, apenas 30% do povo brasileiro aprovavam a reforma, agora são 60%”. Diz ela que há pesquisas sendo feitas todos os dias sobre o tema. Só não disse quem faz.
Nesse trecho, ela escancarou como converteu o gabinete da liderança do governo numa central de produção de memes: “Quando um deputado é atacado em seu estado por declarar apoio à reforma, nossa equipe produz peças adaptadas para a linguagem da região do deputado atacado. São 12 ou 15 peças por dia. Tudo isso para combater as fake news da oposição contra a reforma”.
É bom lembrar que no dicionário dos aliados de Bolsonaro, fake news é tudo aquilo que nega ou desmente o discurso ou a versão oficial que o governo tenta impor.
Nos 15 minutos seguintes, a deputada dedicou-se a reelaborar sua imagem. Foi aí que me arrependi: “Quem diria que eu, a maior incendiária da política, iria atuar como articuladora, como a bombeira do Brasil”, disse ela. Para quem tem tanta prática em plagiar, o que é aproveitar um adjetivozinho?
Depois de autointitulada Madrinha da Lava Jato, ela começa a vestir a fantasia de Bombeira do Brasil. Se a reforma sair, seja do jeito que for, não duvido que ela mande costurar uma faixa de A Mãe da Nova Previdência.
Seu esforço, garante, é para buscar votos suficientes para aprovar a reforma. “Converso com todo mundo, sete deputados do PT já me prometeram de pés juntos que vão votar a favor”. No Paraná, em maio, ela havia dito que seriam oito petistas. Diálogo ela só não tem com as “maluquinhas do PSOL e com um ou outro petista, mas dá para conversar com alguns, tirando aqueles que não sabem nem matemática básica”.
Raiva mesmo ela tem de Maria do Rosário (PT-RS), aquela que não merecia ser estuprada por Bolsonaro. “Juro que, às vezes, tenho de contar até 10 pra não dar uns tapas nela, mas nesse tempo na Câmara eu aprendi que tenho um botão ‘fofo’, que me faz deixar passar umas coisas”.
Perto de encerrar, Joice fez pouco caso de uma das teses preferidas do seu chefe: o conflito velha política x nova política. “Eu mesma falei tanto disso. Aí, chego lá e tem tanta gente que se elegeu com o mesmo discurso que eu e tá pensando na mesma coisa: cargos e esquemas. E tem gente que tem oito mandatos e faz tudo certo. Malandro tem em todo canto”.
É evidente que se referiu aos colegas do próprio partido, o PSL.
Por essas e outras, é tratada como traidora pela bancada governista. E, na oposição ou no centrão, poucos confiam nela, conforme garantiram dois deputados pernambucanos para quem telefonei antes de escrever esse texto. Esses parlamentares me contaram que, na Câmara Federal, sua tática é afastar-se dos outros líderes indicados pelo presidente – todos bastante queimados – e colar em Rodrigo Maia (DEM).
O cheiro de estragado de Bolsonaro também deve estar incomodando suas narinas. Tanto que, ao final da palestra, ela convidou os empresários a ingressarem no novo movimento que está criando, o Movimento Bom Brasil, “que é apartidário, não é ideológico, não é favor de Bolsonaro, não é da Joice, não é do PSL. É pelo Brasil”.
Vou usar suas próprias palavras para descrever o que ela define como um movimento político: “É um grupo de whatsapp onde eu vou municiar vocês com tudo o que é preciso saber sobre os temas importantes do País. Eu me proponho a fazer chegar no celular de vocês material quente, engraçado, gostoso, divertido, tudo papinha, tudo mastigadinho”. Juro que foi essa explicação.
Se isso não for uma evidência de que a líder do governo pretende distanciar-se do desgastado governo que ela representa, então alguém ajude a explicar o que é.
Finalmente, o microfone foi aberto para perguntas da plateia. Quando escutei o primeiro interlocutor dizer que ela traduzia os anseios do povo brasileiro, percebi que era hora de ir embora. Dispensei a entrevista exclusiva e saí sem dizer adeus, com uma certeza: convém não subestimar.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.