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Fotos: Inácio França
Era manhã e Francisco Alírio Henrique seguia sua rotina, trabalhando desde o nascer do sol na lavoura. Primeiro, escutou o som de machadadas e um vozerio animado. Depois, viu os homens com foices, enxadas e machados, cortando todas as árvores e arrasando as roças de milho, feijão e macaxeira que encontravam pela frente. Uma hora depois, com o sol já no alto, ele demorou a entender e a reagir quando derrubaram a sua própria cerca e entraram como se fossem donos, destruindo tudo, no lote de terra em que criou os filhos. Eram muitos, usavam o uniforme da Odebrecht, e mudaram sua vida para sempre.
Com mais espantado do que raiva, reclamou, perguntou o que era tudo aquilo. Como resposta, escutou outra pergunta:
– O senhor não recebeu o comunicado, não?
Sim, havia recebido e só naquele momento entendeu o que realmente queria dizer a carta em papel timbrado entregue algumas semanas antes. O texto do informe era burocrático, nele a empresa e o Governo Federal (governo Lula) comunicavam que suas terras estavam no caminho da ferrovia Transnordestina e que seria indenizado em breve. Ele compreendeu apenas que uma linha de trem passaria ali perto, afinal as frases não falavam nada de destruição dos roçados, nem de cercas derrubadas. O papel foi amassado, jogado no lixo e a vida seguiu. Até aquela manhã quente de 2009.
Francisco e sua esposa, Inocência Conceição Hora Henrique são apenas dois entre os milhares de agricultores que viviam ou ainda vivem no caminho da Transnordestina. Construída para escoar a produção e dinamizar a economia regional, antes de ser inaugurada a ferrovia mudou – para pior – a vida dessas famílias, a maioria proprietária de pequenos lotes de terra. Francisco e Inocência, por exemplo, tinham 6 hectares. Agora, tem 4,8. Os outros foram transformados num desfiladeiro artificial. No fundo desse valão, cujas paredes de rocha chegam a sete metros de altura, os trens vão passar.
O casal mora na comunidade de Estaca, a 15 quilômetros de Ouricuri, município situado a 623 quilômetros do Recife, para onde o Marco Zero foi a convite da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) para acompanhar uma Caravana Agroecológica do Araripe. Ali, pelo menos 100 famílias passaram por experiência semelhante. Dois anos depois do início das obras, ninguém tinha recebido um tostão de indenização. Foi preciso o presidente da associação de moradores contratar um advogado em Ouricuri para acionar a Justiça Federal. As indenizações só começaram a ser pagas a partir do final de 2013. Quase todos os moradores já receberam, mas os valores foram irrisórios. Mesmo que não fossem, dificilmente pagariam a destruição de um modo de vida.
“Pode ser que o trem vá trazer alguma coisa boa para alguém. Pra nós só fez piorar tudo”. A vala escavada na rocha cortou em dois pedaços o que sobrou de seu lote, quase três hectares de um lado, dois do outro.
De um lado estão o barreiro que ele obrigou a Odebrecht a construir para substituir o antigo reservatório, destruído pelos tratores, e o terreno onde o casal pretende retomar a lavoura quando o ânimo e as chuvas voltarem.
Do outro, estão as três vacas que sobraram. “A gente tinha 15 cabeças de gado, mas não dá para criar tudo isso numa terra tão pequena e longe da água do barreiro”, explica Inocência, que se recupera de uma cirurgia no cérebro que evitou o rompimento de um aneurisma.
Do lado de lá também está o que há de mais valioso: a filha mais velha do casal e a neta nascida há apenas cinco meses. As duas moram numa casa situada a apenas 200 metros, se a vida fosse uma linha reta. “Pra chegar na casa dela, a gente tem de andar quase dois quilômetros para ir e outro tanto para voltar”, conta Francisco, explicando uma matemática absurda. É que não dá para simplesmente descer pela rocha e subir do outro lado. Não há escadas e as paredes são muito íngremes. “O único jeito é andar até o ponto em que a linha do trem corre no nível do chão e depois vir voltando até a casa dela”. Para cuidar dos animais, a caminhada é a mesma.
Os 4,8 hectares incluem a área devastada e erodida em que se transformou o terreno usada para as manobras dos caminhões. Esse trecho mais parece uma clareira às margens do precipício onde estão os trilhos e dormentes da ferrovia.
E as coisas já foram piores, muito piores.
Por quase três anos, o casal teve de suportar uma rotina bem diferente daquela vivida por camponeses. Praticamente todos os dias, as rochas na sua propriedade e na vizinhança eram dinamitadas. Meia hora antes da explosão, o som estridente de uma sirene sinalizava quando todos deviam correr para bem longe. Sem os jipes ou caminhões a serviço dos operários, Francisco e Inocência literalmente corriam quase um quilômetro. Quando voltavam, o cenário que encontravam era sempre o mesmo: telhas quebradas, paredes rachadas, louça destruída, galinhas apavoradas ou mortas.
Naquela época, Inocência e o filho caçula dormiam todos os dias na casa da cunhada, às margens da BR-316, a dois quilômetros de distância. Francisco permanecia em casa para evitar o furto dos seus poucos pertences.
“A gente comia cuscuz, carne e poeira. Era poeira no almoço e poeira na janta”, recorda a mulher. Além das explosões, o movimento de veículos e enormes tratores na frente da casa não cessava por causa do tal pátio de manobras da empreiteira.
Não dava para plantar nada, viviam do bolsa-família. Um ano depois, com o trecho que atravessa Ouricuri pronto, Francisco e Inocência tentam retomar a vida, esperando mais chuvas para retomar o plantio. Como a construtora e o empreendimento sequer providenciaram a reconstrução da casa, toda a indenização recebida foi gasta para erguer uma nova, ao lado da anterior, que permanece em pé. “A gente não derrubou a casa velha por causa das lembranças”, afirma Francisco. Quanto Francisco e Inocência receberam de indenização por tudo isso? R$ 4.300,00. Dos quais, R$ 950,00 foram pagos ao advogado a título de honorários.
Sem ter como lutar contra o dilaceramento de suas terras pela Transnordestina, a comunidade se uniu para, ao menos, amenizar as perdas e os sofrimentos individuais. Acelerar o pagamento das indenizações por via judicial foi apenas mais uma entre as várias causas que mobilizaram os agricultores. A que gerou mais tensão foi garantir o maior número possível de “passagens” para veículos em pequenos túneis sob a ferrovia. Por economia, a empreiteira tentou reduzir como pôde a quantidade de passagens, ignorando quase que completamente o traçado das estradas de terra que ligavam as propriedades da própria comunidade e entre as comunidades vizinhas.
Segundo João Henrique, presidente da Associação de Moradores da Comunidade do Sítio Estaca e irmão mais velho de Francisco, os planos originais previam apenas uma passagem para a área, situada entre Ouricuri e a divisa com Parnamirim. “Do jeito que eles queriam, as pessoas iam ter de andar até quatro quilômetros para ir de um lado para o outro, mas como a gente lutou e fez muito barulho, hoje dá no máximo uns dois quilômetros”. A questão do número de passagens saiu da mesa de negociação e transformou-se em luta escancarada quando os seguranças da Odebrecht proibiram o ônibus escolar atravessar o canteiro de obras para pegar as crianças “do outro lado”. Dezenas de estudantes ficaram sem aula: foi a gota d’água que fez transbordar a paciência dos agricultores.
João Henrique lembra os acontecimentos daquele dia sem esconder o orgulho: “Peguei a moto e passei nas casas de todo mundo. Em meia hora, tinha umas 50 motos bloqueando a entrada dos caminhões”. No meio do bate-boca, um dos dois vigias armados falou demais. “Eu disse que a gente podia botar mais umas 100 pessoas ali na frente, aí o segurança rebateu dizendo que o revólver dele tinha seis revólveres, que ele podia morrer, mas levava seis com ele”. Como o motim foi na clareira aberta bem na frente da casa de Francisco, João percebeu que podia engrossar o tom: “Eu disse ‘você está dentro da terra da minha família, saía agora. Aqui você não fica’, ele saiu reclamando, mas chamou a PM. Pior para ele: quando a viatura chegou, o cabo da polícia nos deu razão”.
Os seguranças então deram lugar à assistente-social enviada pela construtora no mesmo dia. Ela pediu alguns dias de prazo e assumiu o compromisso de que uma passagem seria construída no local onde o ônibus escolar costumava passar, a um quilômetro dali. As obras começaram no dia prometido, o que rendeu uma comemoração com sanfoneiro e muita festa.
Saiba mais:
Quando ficar pronta, a Transnordestina terá 1.728 quilômetros de extensão, cruzando os sertões do Piauí , Ceará e Pernambuco para ligar os portos de Suape, de Pecém e a área de fruticultura irrigada do cerrado piauiense. O custo total da obra deverá ultrapassar os R$ 6,7 bilhões. As cadeias econômicas da produção de frutas para exportação e do gesso deverão ser as maiores beneficiadas, pois a ferrovia reduzirá os custos do escoamento da produção em velocidade maior do que a atual.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.