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As mulheres empobrecidas são o alvo da nova caça às bruxas, diz Silvia Federici

Marco Zero Conteúdo / 16/10/2019

Por Vinícius Andrade, especial para a Marco Zero Conteúdo

67267359-113C-4C99-99B2-160AEA5ACF1FHoje o alvo da caça às bruxas são as mulheres empobrecidas. A ideia é defendida pela ativista e pensadora italo-estadunidense Silvia Federici, que não tarda a explicar: não se trata de uma tese, mas de uma constatação inevitável feita a partir de um olhar profundo para a história na perspectiva daquelas que a vivenciaram de modo “mais excruciante” – as mulheres e, sobretudo, as mulheres negras. Foi dessa forma que a feminista arrematou ontem (15) a sua participação no seminário “Democracia em colapso?’ (organizado pela Boitempo Editorial e o Sesc São Paulo), depois de iniciar somando outra indagação à pergunta que dá título ao evento: houve, de fato, algum momento em que o capitalismo dominante nos últimos séculos foi democrático?

Ao lado da ativista e empresária Eliane Dias e da pesquisadora e escritora Bianca Santana em conversa inspirada na sua mais recente publicação, o livro Mulheres e caça às bruxas (Boitempo,2019), Federici demonstrou a impossibilidade de separação entre a história de luta contra o capitalismo e a história das lutas feministas, antiracistas e anticoloniais. Olhar estruturalista saudado por Bianca Santana – responsável por introduzir a edição brasileira do livro – no diálogo entre elas: “A Silvia é uma das poucas autoras brancas que conheço que vê centralidade na pauta racial, (…) é uma lição para a esquerda branca brasileira”.

O exemplo principal trabalhado pela convidada na noite de ontem foi o das chamadas “Nonwhite Welfare Mothers”, mulheres negras que se organizaram e lutaram, nos anos 60 e 70 nos Estados Unidos, pelo reconhecimento e devida remuneração ao trabalho realizado em ambiente doméstico. Trabalhadoras, educadoras e lutadoras, essas mulheres foram mais tarde, nos anos 90, criminalizadas e acusadas de parasitar o Estado, ilustrando o argumento sustentado pela pesquisadora de que, a cada período de “crise” capitalista, estratégias violentas foram relançadas com a finalidade de esconder a exploração às mulheres.

Federici faz questão de salientar, aliás, o uso do termo “empobrecidas”. Se o capitalismo se esforçou, de maneira consciente, em precarizar as condições materiais de vida dessas mulheres, jamais podemos nos referir a elas como pobres, pelo contrário; temos o dever de utilizar um termo que chame atenção para as causas históricas que explicam tal pauperização. O acesso ao trabalho remunerado, o direito ao voto e  justiça reprodutiva (que envolve o direito ao aborto seguro) são discussões que possuem relação decisiva com as adversidades enfrentadas pelas mulheres empurradas para circunstâncias de pobreza.

Se ficou a cargo de Federici traçar, de certo modo, um diagnóstico e apontar algumas resistências travadas nos Estados Unidos e na Europa, Bianca Santana valorizou as lutas em curso no Brasil e as lutadoras que as movimentam, citando nominalmente Anielle Franco, do Instituto Marielle Franco, as congressistas Áurea Carolina e Talíria Petrone, Neta Serejo e Selma Dealdina da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, Deise Benedito e Suelo Carneiro, da Coalizão Negra por Direitos, entre outras ativistas em atuação no momento no país.

Responsável por conduzir a mediação do debate, Eliane Dias fez comentários pontuais, mas nem por isso menos contundentes, vocalizando também algumas perguntas do público. Um dos problemas enfatizados por ela foi o ataque às mulheres negras sob a forma de ataque aos seus filhos: “Nós dizíamos há algum tempo que talvez eles viessem pegar os nossos filhos dos nossos leitos”. A ativista lembrou do encarceramento em massa, uma maneira de “alimentar a escravidão”, processo alargado nos “governos que nós defendemos”, como advertiu Bianca Santana através de dados expressivos registrados até 2013.

Debatedoras e público participante, inspirados pela data comemorativa do dia dos professores, estiveram em sintonia a respeito do fato de que, hoje no Brasil, a criminalização da atividade docente, em projetos como o Escola sem Partido, é uma forma contemporânea de caça às bruxas, na medida em que a maioria das pessoas responsáveis pela educação em espaços formais e não-formais são mulheres, especialmente mulheres negras. Ao se referir às tentativas de apagamento das trajetórias coletivas e individuais de negros, mulheres e indígenas dos livros didáticos, Federici conclui: “Eles querem reescrever a história, porque a história é perigosa”.

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