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Este é um texto que nenhum jornalista quer escrever. Sobretudo alguém que acredita no jornalismo como um serviço público, como uma ferramenta de luta contra injustiças sociais. Pode parecer ingenuidade – ou deslumbramento, mas a crença de posso ajudar a transformar a realidade de alguém sempre foi minha maior motivação. É difícil admitir a derrota quando, mesmo depois da reportagem, nada muda.
Entre as histórias que acompanhei este ano, duas me tocaram profundamente. São narrativas de perdas e de desamparo. Na primeira, conhecia a realidade de violência e de racismo que oprime jovens das periferias pernambucanas, quando me aproximei dos grupos de passinho. Entre várias denúncias de repressão policial à dança, me deparei com Gustavo, um estudante de 18 que foi atingido no olho por uma bala de borracha da polícia em um encontro de passinho.
O segundo momento que me marcou este ano foi o dia do despejo de três mil pessoas do edifício Holiday, em Boa Viagem. Famílias de baixa renda foram expulsas de suas casas, da noite para o dia. Muitas entraram em total desespero porque não tinham para onde ir.
Meses depois da publicação dessas reportagens, é revoltante perceber que pouca coisa mudou na vida das pessoas que entrevistei. As injustiças permaneceram. Voltar a esses casos, numa espécie de retrospectiva de um ano tão duro quanto 2019, é renovar a crença na força do jornalismo. Talvez narrar os fatos nem sempre produza o impacto necessário para mudar os resultados do jogo. Mas, reverberar vozes de pessoas silenciadas pela sociedade continua sendo importante. E, sim, ainda tenho esperança de algum dia conseguir narrar desfechos felizes para essas histórias.
Em janeiro passado, um policial disparou um tiro de borracha que atingiu o olho de Gustavo. O estudante de 18 anos estava em um encontro da passinho com amigos, a poucos metros da sua casa. Ele perdeu o globo ocular direito. Contamos a história dele protegendo sua identidade e a dos seus parentes por segurança. (Leia aqui)
Embora o boletim de ocorrência registrado na Central de Plantões da Capital seja claro ao afirmar que Gustavo foi vítima de lesão corporal “decorrente de intervenção policial” e o diagnóstico do Hospital da Restauração declare que ele foi “atingido por bala de borracha da Polícia Militar”, até hoje o Cabo Aurino, autor do disparo, continua exercendo a função de policial.
“A Polícia Militar de Pernambuco abriu um Inquérito Policial Militar (IPM) e as apurações foram remetidas à Corregedoria Geral da SDS (secretaria de Defesa Social), que está analisando o material para definir o procedimento administrativo adequado ao caso. O servidor continua nos quadros da PMPE (Polícia Militar de Pernambuco), com garantia à ampla defesa e ao contraditório, até a conclusão do processo”, informou a secretaria de Defesa Social.
A sensação de impunidade acompanha a família de Gustavo desde o incidente. Quase um ano depois, ele ainda não se recuperou totalmente do trauma. Muito tímido, o estudante só falou comigo uma vez, depois da publicação da primeira matéria. Desde que comecei a acompanhar situação da família, Janaína, a mãe dele, se colocou com porta-voz do filho.
Janaína contou que Gustavo voltou a frequentar a escola e já sai de vez em quando com os amigos. É um avanço porque, depois do tiro, ele passou meses sem querer sair de casa. “Na semana passada, ele comemorou a conclusão do Ensino Médio”, comemora a mãe.
Ela conta que a situação financeira da família continua complicada. Ainda mais porque eles jamais receberam qualquer ajuda financeira do Estado. “Até a prótese que ele usa foi comprada com dinheiro de doações”, conta Janaína. Ela reclama que o Governo do Estado não prestou assistência à família, mesmo sendo responsável pela situação do filho. Gustavo não recebeu qualquer tipo de indenização por ter sido vítima de violência policial.
Além de acompanhar as consultas médicas periódicas do filho, Janaína também vive correndo atrás da Justiça. É uma rotina tão desgastante que não sobra energia para procurar emprego. Como o padrasto de Gustavo também não tem trabalho formal e o estudante não consegue trabalhar porque ainda está se adaptando à nova condição física, o orçamento ficou apertado. Com os custos dos remédios e ao aumento do aluguel foi preciso mudar para um imóvel mais barato.
“O pai dele não me ajuda com nada. E até agora não conseguimos nem o benefício por invalidez para Gustavo porque o INSS alegou que ele é muito jovem. Não sei o que fazer”, lamenta Janaína.
Até agora o processo que cobra uma indenização para Gustavo pelos danos físicos, no qual o Estado é réu, ainda está em tramitação. Isso desde fevereiro passado. A família também procurou a Justiça para pedir o ressarcimento pela prótese do olho, que custou R$ 1,4 mil, mas o reembolso foi negado. “Só compramos porque era um tratamento urgente e recebemos doações”, argumenta.
A cada consulta de manutenção da prótese, a família paga R$ 100. O serviço deveria ser fornecido gratuitamente pelo Altino Ventura, mas o hospital parou de fornecer as próteses por causa de uma dívida da secretaria de Saúde com a instituição, que comprometeu o fornecimento do material. Ou seja, o Estado que feriu Gustavo, também negou a ele o tratamento de saúde. “Qual é o crime de dançar com os amigos? Era apenas isso que meu filho estava fazendo. O governo tirou o olho do meu filho e nunca nos deu nenhum apoio”, reclama Janaína.
“A situação dos moradores é cada vez mais difícil”, desabafa José Rufino, síndico do Edifício Holiday, em Boa Viagem. O gigante que abrigava mais de três mil pessoas foi desocupado em março deste ano por riscos de desabamento e de incêndios. As famílias, majoritariamente de baixa renda, foram expulsas dos seus imóveis sem garantias de retorno, nem qualquer ajuda para custear um aluguel provisório.
Na época, a prefeitura ofereceu apenas 120 vagas em um abrigo municipal. Um quantitativo quase insignificante diante da demanda que a desmobilização do prédio causou. (Leia mais sobre o Holiday).
Quase dez meses depois, muitos dos moradores do Holiday estão em situação de total desamparo. É o caso de Marlene Aparecida da Silva, 58 anos, que tinha apartamento próprio no Holiday, mas está morando em um barraco na favela do Entra-a-Pulso, em Boa Viagem. “A prefeitura não me deu nada. Tive que vender uma geladeira e uma armário pra dar entrada no barraco”, lamenta. O aluguel do barraco custa R$ 300, isso sem água e sem energia elétrica. É exatamente o que ela ganha com as faxinas, fora R$ 89 do benefício básico do Bolsa Família.
“Tenho depressão. Depois que saí de casa piorou”, conta Marlene, que vive sozinha. Ela lembra que quando a prefeitura chegou para retirar os moradores foram feitos cadastros para identificar a situação de um. “No meu caso só serviu pra eles me obrigarem a ir no Caps (Centro de Atenção Psicossocial) todos os dias, porque descobriram que eu tomava remédio para depressão e vivia só”, avalia.
“Por se tratar de um imóvel privado e que está sendo interditado, mas não condenado, a prefeitura do Recife não oferece auxílio moradia”, informou por nota a prefeitura. A prefeitura também informou que “forneceu caminhões para a realização das mudanças dos moradores e seus pertences, atendimento de saúde e encaminhamento social, quando necessário, inclusive com vagas em abrigo público municipal.”
A administração pública diz que o auxílio só é concedido em casos de incêndios, deslizamentos ou enchentes, ou ainda quando a residência está comprometida e precisa ser demolida. “No caso do Edifício Holiday, a interdição não significa que o imóvel está condenado. Após os reparos, que devem ser realizados pelo condomínio e que devolvam a segurança aos moradores, eles poderão voltar às residências.”
Acontece que, até agora, o condomínio do Holiday não conseguiu a verba necessária para concluir as reformas exigidas pelo poder público para que os moradores possam retornar aos apartamentos. Os reparos estão avaliados em R$ 1 milhão. O condomínio não tem perspectiva de conseguir esse valor, mesmo depois de realizar campanhas de doação na internet. “Enquanto isso, as famílias continuam sem casas”, lamenta o síndico. “O governo arrancou a gente feito cachorro e não ajudou em nada. Deixaram o cidadão no meio da rua”, desabafa Marlene.
Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).