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Sem ampliar rede, Pernambuco atende mulheres e jovens vítimas de violência na mesma delegacia

Raíssa Ebrahim / 10/02/2020

Delegacia da Mulher de Plantão tem alta demanda e ainda atende crianças e adolescentes vítimas de violência (foto: Google)

Toda delegacia circunscricional (que atende regiões administrativas) deveria ser um local acolhedor e com profissionais capacitados para lidar com vítimas de violência, sobretudo crianças, adolescentes e mulheres, que requerem um atendimento específico. Na prática, o cenário em Pernambuco é bem diferente.

Enquanto as delegacias não dão conta da demanda, a rede e o atendimento em locais especializados seguem reduzidos, acumulando promessas de campanha e desamparando famílias.

A despeito dos anúncios do período eleitoral, nenhuma nova Delegacia da Mulher foi inaugurada na segunda gestão Paulo Câmara (PSB), o que significa que o plantão de Santo Amaro continua como a grande referência para encaminhamentos de diversos casos na Região Metropolitana do Recife.

O Sindicato dos Policiais Civis de Pernambuco (Sinpol) denunciou, em ofício encaminhado ao governador, que a unidade está “completamente assoberbada pelas ocorrências ordinárias da área e ainda absorve ocorrências das cidade circunvizinhas” (confira detalhes do ofício mais abaixo).

É lá que, desde 2018, crianças e adolescentes vítimas de violência têm sido atendidos, pois não há plantão no Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA), na Benfica, Zona Oeste da capital.

O resultado é, de um lado, mulheres desamparadas, principalmente em municípios de grande população e que somam altos índices de violência de gênero, como Olinda, Camaragibe e São Lourenço da Mata, que até hoje não foram contemplados com unidades especializadas. E, do outro, crianças e adolescentes violentados que não contam com um espaço para escuta e acolhimento específicos.

A reportagem também solicitou à Secretaria de Defesa Social (SDS) os municípios e meses onde foram registrados todos os feminicídios da série histórica iniciada em 2017, quando o Estado passou a utilizar o termo. Também questionamos por que esses dados não ficam abertos ao cidadão no site da pasta. No entanto, não obtivemos retorno.

A cientista social Ana Paula Portella lembra que a ideia era que as unidades especializadas fossem implementadas de maneira inicial, para chamar a atenção para o problema e criar uma via de encaminhamento que estimulasse as denúncias.

Enquanto proposta de modelo de atenção às mulheres, deveria haver um número mínimo de delegacias especializadas em regiões que pudessem atender vários municípios e agregar territórios e populações. Ao mesmo tempo, o Estado deveria dispor de programas intensivos e contínuos de capacitação das polícias Civil e Militar para que os policiais fossem capazes de atender qualquer mulher em qualquer situação.

“O ideal é que uma mulher não precise se deslocar do Ibura para Santo Amaro”, exemplifica Ana Paula.

Com o tempo, num cenário ideal, essas delegacias especializadas tenderiam a desaparecer porque os serviços de segurança seriam inteiramente capacitados. O fato é que essa garantia não existe.

No final de janeiro, a repórter que aqui escreve foi testemunha de como o sistema funciona ao passar quase quatro horas tentando conseguir atendimento numa delegacia para uma mulher negra que se sentiu ameaçada por um taxista.

A missão envolveu grade da delegacia trancada, vários pedidos de ajuda, apelos para conseguir atendimento, o acusado dividindo espaço com a vítima, bate-boca e um Boletim de Ocorrência registrado pelo escrivão que em nada atendia às questões de gênero.

A SDS argumenta que o Estado dispõe de 11 unidades especializadas. São elas: Recife (Santo Amaro), Jaboatão dos Guararapes (Prazeres), Paulista, Cabo de Santo Agostinho, Goiana, Vitória de Santo Antão, Caruaru, Surubim, Garanhuns, Afogados da Ingazeira e Petrolina. Mas que as mulheres vítimas de violência podem ser atendidas em qualquer Delegacia de Polícia (DP) circunscricional, que dispõe de profissionais capacitados.

A Marco Zero Conteúdo questionou a secretaria sobre como é feita a capacitação dos profissionais que trabalham nas DPs circunscricionais.

Perguntamos se envolve a Secretaria da Mulher, no que difere da capacitação dos profissionais que atuam em unidades especializadas, quantas pessoas foram capacitadas nos últimos quatro anos e qual a proporção desse número em relação ao total de pessoas que trabalham no atendimento em delegacias.

Perguntamos também quais são os indicadores que mostram que o atendimento capacitado está realmente sendo realizado e como é feita a avaliação da qualidade. A reportagem não obteve retorno.

Procuramos também a Secretaria da Mulher de Pernambuco em busca de informações sobre a participação da pasta nos cursos de formação. Mas fomos informados que o trabalho da secretaria é feito com patrulha Maria da Penha, Monitoramento Eletrônico e o 190 Mulher.

Em nota, a SDS disse que o governo do Estado “tem projetos para ampliar o número de delegacias até 2022” e que estuda os locais para saber “de acordo com a demanda reprimida e população, que áreas mais se beneficiaram dessas unidades”.

O ofício protocolado ao governador Paulo Câmara pelo Sinpol, em janeiro, cobrou a implantação de delegacias da mulher em Olinda, São Lourenço da Mata e Camaragibe e uma solução para o plantão do DPCA.

Para o sindicato – que tem travado uma queda de braço pela valorização da categoria no Estado -, a atual configuração de atendimento é “absurda e desumana”.

Coordenadora do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), a cientista social Edna Jatobá chama a atenção para o fato de os feminicídios estarem acontecendo em Pernambuco num cenário de muitas especificidades, com mais crueldade e tortura, o que reforça a urgência por um atendimento decente.

A capacitação de profissionais só funciona se for feita desde a realização das abordagens até as investigações, junto com um trabalho de prevenção. “Temos uma polícia com pouca formação”, critica Edna, que frisa que tudo isso tem a ver com a tarefa de diminuir a revitimização.

“Podemos até ter policiais formados, mas, se o ambiente for hostil, não vai adiantar”, diz ela, lembrando que as práticas de hostilidade e exposição da mulher continuam como constantes.

Promessa de Damares ainda no papel

Do lado federal, também há promessas não cumpridas. No final de 2019, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, anunciou, em solenidade no Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher, que o Governo Bolsonaro investiria em capacitações para que todas as delegacias do Brasil tivessem serviço especializado no atendimento à mulher vítima de violência. Até hoje, nada saiu do papel.

A reportagem cobrou o ministério sobre o início do projeto, que deveria ser em janeiro, o orçamento e a origem da verba, a ementa das capacitações, o número e as áreas de profissionais a serem qualificados, assim como as datas da chegada do projeto a Pernambuco.

A resposta foi curta: “Informamos que o projeto encontra-se em fase de elaboração, com previsão de início no segundo semestre de 2020”.

Crianças e adolescentes expostos e desamparados

Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA), na Benfica, está sem plantão (foto: Google)

Em setembro de 2018, a Secretaria de Defesa Social, chefiada por Antônio de Pádua, emitiu uma portaria (nº 5398) para que o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência passasse a ser realizado na Delegacia da Mulher de Plantão de Santo Amaro. Dentre as motivações, estava a falta de efetivo.

Antes disso, o plantão acontecia na Central de Plantão da capital, em Campo Grande, na Zona Norte, depois que o plantão do DPCA foi extinto. Somente depois de provocações da sociedade civil é que a SDS resolveu levar o atendimento para Santo Amaro.

Natuch Lira, advogado do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social, relata que a mudança fez os problemas diminuírem, mas o cenário segue longe do ideal.

Ele ainda cita outra questão: com a Lei da Escuta Qualificada, o atendimento de crianças e adolescentes deveria ser unificado com o Judiciário, evitando que eles tivessem que passar novamente por um depoimento na Justiça, muitas vezes anos depois do registro da ocorrência. Segundo Natuch, a legislação não vem sendo cumprida.

“Os relatos de problemas de atendimento não são só dos conselhos tutelares, mas das famílias, que precisam de atendimento no plantão, procuram a delegacia na Benfica e ficam perdidas sem saber para aonde ir. O sentimento é de desamparo e acaba dificultando o registro da denúncia”, avalia o advogado.

Na opinião de Natuch, todo esse cenário mostra o descompromisso do Estado com a política de proteção à criança e ao adolescente. Ele detalha que, em 2007, foi elaborado e aprovado o Plano Decenal de Enfrentamento da Violência Sexual em Pernambuco. Nele havia a previsão de criação de outras delegacias, em outras regiões do Estado, vinculadas ao DPCA.

De lá pra cá, fora Recife, apenas Jaboatão dos Guararapes e Paulista contam com delegacias especializadas.

Quanto ao encaminhamento de crianças e adolescentes à Delegacia da Mulher de Santo Amaro, a SDS argumenta que a publicação da portaria deveu-se à “necessidade de atendimento por equipe especializada na atenção a esse público”, evitando que “compartilhassem o mesmo ambiente que adultos levados à Central de Plantão da PCPE”. E defende que, na unidade, as “equipes estão capacitadas para a Escuta Especializada, procedimento previsto em lei que visa à proteção da intimidade e evita a revitimização das crianças e dos adolescentes”.

“Se faz urgente que o governo do Estado reative o plantão do DPCA. Acredito que os órgãos de controle também precisam se posicionar perante essa denúncia para que sejam tomadas as devidas providências”, apela Deila Martins, coordenadora-executiva do Gajop.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com