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Luta de classes no carnaval do Poço da Panela

Inácio França / 12/02/2020

Embate entre barraqueiras e "diretores" dos Barba (crédito: Inácio França)

Quando o artista plástico Iramaraí Freitas chegou ao Largo do Poço da Panela, para participar da assembleia que decidiria os rumos da troça carnavalesca Os Barba, no início da noite de segunda-feira, foi surpreendido pela jovem Dara Sualen, de 24 anos, que conhece desde criança:

– Estou
muito triste porque você está do lado de seu Luís.

– Não
estou entendendo. Qual lado? Os Barba tem
lados?

Dara, que nunca leu Karl Marx ou Lênin, antecipava o episódio que, dali a minutos, poderia ilustrar um imaginário ensaio marxista sobre a luta de classes no carnaval de rua.

Antes da assembleia começar, a divisão era bem nítida. Na calçada da igreja, dezenas de mulheres – a maioria negra – e dois ou três homens. Era a “comunidade”. A poucos metros, encostados aos poucos carros estacionados e com garrafas long neck nas mãos, meia dúzia de homens brancos de meia idade e apenas uma mulher, também branca, conversavam numa postura reservada. Eram “os ricos”.

Quando
a assembleia começou, exatamente às 20h03min, não havia mais
motivos para duvidar da existência de facções diferentes no seio
da troça mais cult do
Poço da Panela, capaz de arrastar milhares de pessoas no
sábado pré-carnaval.

Com ares de síndico de condomínio, o empresário Luís Nunes, o seu Luís citado por Dara, avisou que era hora de começar a reunião. Antes de abordar o principal assunto a ser tratado, ou seja, como os barraqueiros e barraqueiras da comunidade iriam trabalhar durante o desfile da troça, Luís decidiu fazer “breves considerações”. Em 12 minutos, discorreu sobre a origem dos Barba em 2002 e como, ao longo dos anos, ele e um grupo de amigos assumiu a responsabilidade de tomar as providências para viabilizar a saída da agremiação.

Às 20h15min, a tensão começou a ganhar forma. Luís lembrou de um bate-boca com um dos seguranças contratados pelas barraqueiras por causa de desacertos no valor acertado para o trabalho. Nesse ponto, Thamirys Rosa, de 25 anos, representantes, porta-voz e “organizadora” dos ambulantes, tentou tomar a palavra. Ela queria dar outra versão ao incidente descrito por Luís. Não conseguiu. O empresário não permitiu:


Estou falando. Ainda não está no seu tempo de fala.

Aparentemente, Tamíres resignou-se, mas avisou que, depois dele, falaria o que tivesse para falar.

A moral de Naná

As breves considerações prolongaram-se por mais alguns minutos e teriam continuado se Luís apresentasse o conteúdo da planilha de prestação de contas. A entrada em cena de outro personagem mudou o rumo da reunião.

Evaldo
Moura, o Naná da Kombi, personagem querido no bairro por ter feito
durante anos o transporte escolar gratuito levando as crianças da
comunidade à escola mais próxima. Com status
de ser um dos fundadores do bloco, Naná tinha
jurado que não participaria da conversa para não se aborrecer. No
entanto, foi enfático ao
tomar a palavra de Luís:

-Meu
velho, ninguém aqui quer saber de porra de papel. Você bota o que
quiser nesse papel. O pessoal da comunidade quer saber de trabalhar e
tirar um dinheirinho no dia da troça. O pessoal não quer saber das
porras de food truck que vocês trazem, não. Só isso. Os
Barba
é do povo, é da
comunidade, Os Barba não
tem diretoria, não.

Não
parou por aí. A frase acima é só um resumo de como o baixinho
Naná, com menos de 1,60m, agigantou-se e inflamou os ânimos.

A muito custo, Luís retomou a palavra para expor uma proposta que escancarou as relações de poder que pareciam se desenhar no Poço da Panela.

A
frase seguinte, digna de um diretor ou de um gerente, parecia
desmentir aquilo que Naná havia acabado de dizer sobre o quesito
“diretoria”:

– Vou dizer como a comunidade vai trabalhar. Com o dinheiro da contribuição dos barraqueiros, vamos contratar o serviço de segurança de Lulu, Fábio, sargento Carlão e o pessoal dele. Quem quiser contribuir e trabalhar como barraqueiro pode entrar na fila aqui e dar o nome…

O poder dividido

Não conseguiu completar o argumento. Com apoio da plateia feminina, Thamirys assumiu a condução dos trabalhos para não largar mais:

– Não vai ser desse jeito não. Vai ser do nosso jeito. A comunidade não vai mais pagar a segurança do bloco, da orquestra e dos ricos que vem brincar aqui. A partir de agora, a gente vai pagar menos para contratar menos seguranças, só para garantir que a gente trabalhe. O que o senhor vai fazer com o dinheiro do leilão de camisas, da Pitu e da Ekaut, os barraqueiros não querem nem saber.

As barraqueiras e barraqueiros já tinham tomado antes a decisão sobre o que lhes dizia respeito, afinal a insatisfação vinha se acumulando ao longo dos anos. Os homens brancos, de classe média, que correm atrás dos patrocínios e enviam os ofícios para Celpe, prefeitura e Polícia Militar, passaram a tomar, cada vez mais, decisões solitárias. Numa delas, em 2019 contrataram um grupo de seguranças que liberaram a entrada de vendedores de fora da comunidade, trataram mal os locais, quebraram tampas de isopor. Pior: o dinheiro que pagou tais seguranças veio das contribuições dos próprios moradores e moradoras que trabalharam vendendo bebida na folia.

Após escutar o que foi dito por Thamirys e ratificados aos gritos pelas demais mulheres presentes, Luís saiu-se com essa:


Boa proposta para ser analisada.

Mais uma vez, não conseguiu ir adiante. As mulheres barraqueiras conseguiram impor o modelo que queriam.

Após a assembleia, Iramaraí insistia que aquilo que tinha ocorrido na frente da igreja de Nossa Senhora da Saúde não tinha nada a ver com luta de classes. “Foi só desrespeito com as pessoas que estão se sacrificando há anos para botar o bloco na rua. Os Barba virou um monstro e os barraqueiros não tem organização para segurar a onda”.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.