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Crédito: Amanda Oliveira
A pandemia do Covid-19 tem feito
acionar discursos que clamam pela valorização da ciência, do jornalismo e de
outras coisas gestadas pela Modernidade. Não são poucos os (bons) argumentos
que têm associado a necessidade de resgatar esses valores, em particular no
Brasil e noutros países em que a extrema-direita negacionista chegou ao poder.
Cabe, no entanto, uma reflexão sobre como e para quem a retomada ou respeito a
esses campos de atuação podem e devem acontecer. Mas eu também acho que, nessa
crise toda, há também uma outra demanda a ser contemplada, que é entender,
também espiritualmente, tanto a crise quanto suas possíveis soluções táticas em
um contexto de herança colonial como o nosso.
É verdade que a pandemia do novo
coronavírus exige ainda mais que a linguagem jornalística seja usada e esteja
bem presente, desmistificando os mitos de toda espécie que empestam o cenário.
Mas também é verdade que parte do descrédito daqueles protagonistas que
poderiam estar ajudando mais (com estruturas de informação eficientes e em
rede) foi criado por eles mesmos, numa busca obtusa por influência política e
econômica na vida nacional – ou simplesmente por verbas publicitárias. Ainda
que os principais grupos de comunicação do país tenham resolvido voltar a fazer
um jornalismo sério, praticaram nos últimos 30 anos o jornalismo de interesse
público a depender de cada ocasião.
E foi nessa pisada que os
jornalões deterioraram o principal capital do jornalismo, de seus protagonistas
e de suas empresas: a credibilidade. E aí, quando se perde a confiança, é
difícil voltar a confiar depois de passada a crise.
O mesmo se pode dizer da ciência,
em cuja agenda de universalização do ocidentalismo, negou as chamadas
epistemologias do Sul global. Essa agenda esteve, e ainda está, em franca
articulação com os projetos de colonização e com a agenda da exploração – em
particular da exploração capitalista. Então, se precisamos resguardar a
necessidade e urgência dos conhecimentos científicos que salvam vidas, na mesma
medida precisamos reconhecer o divórcio crescente entre o desenvolvimento dos
conhecimentos científicos e técnicos, por um lado, e a cultura comum, por outro
– coisa que se expressou na história da manufatura e da fábrica automática, no
decorrer do capitalismo industrial, mas que também acontece agora com a
emergência do capitalismo de vigilância.
Aliás, a pandemia descortina não
somente a insuficiência interior do neoliberalismo para lidar com crises como
essas. Aponta mais além: a aparência não-econômica do Covid-19 (uma decorrência de um processo natural já elucidado por
biólogos do Scripps Research
Institute e que virou artigo na revista Nature) e de outras crises ambientais
que estão na agenda do amanhã, já sugerem e justificam a intensificação da
invasão de privacidade, de autoritarismos estatais, e da
apropriação de recursos públicos para sanar os apuros do sistema financeiro.
É preciso encontrar outras
gramáticas, mas também outro cotidiano.
Eu sigo torcendo para que a
iminência do fim do mundo seja o início real de outro nível de combate global
em que não prevaleça esse jornalismo de interesse público a depender da
ocasião; tão pouco uma crença acrítica e ahistórica na ciência e o associado
apagamento de povos e de seus conhecimentos.
No presente brasileiro de
genocídio em curso, esses povos – das matas, das ruas e dos morros –, já
acionaram o instrumento
conceitual operativo que organiza de forma constante e confiável os meios de
defender sua sobrevivência física e cultural. Tal modelo associativo se
desenvolveu no país e se atualiza como ideia-força há quatro séculos, e já assumiu
as formas de rede de irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros,
centros, tendas, afoxés, escolas de samba e gafieiras. A essa práxis, Abdias
Nascimento deu o nome de quilombismo.
Como escreveu um amigo meu um dia desses, é um fio instável e que muitas vezes reflete uma memória coletiva, sua solidariedade ancestral, que sempre se manteve mais ou menos ativa, no difícil trabalho de
proteger-se do Estado e do mercado – como já o fez no passado, como faz
agora e como o fará mais à frente. Essa ideia-força nem sempre aparece
no noticiário. Parece difícil desconsiderar o papel que o quilombismo pode ter associado às tecnopolíticas de cuidado, mais do que nunca necessárias no contexto atual.
Também
parece difícil não considerar a necessidade de lidar com a morte, a peste, a
cura e a doença, bem como com a natureza e suas expressões no cotidiano e não
apenas episodicamente. É curioso que o discurso de diversas autoridades no
Brasil e noutros países seja de enfrentamento do vírus,
de guerra ao vírus – também uma herança dos modos
de pensar Modernos, essa de declarar guerras… O vírus não quer guerra com
ninguém.
Mas ele suscita, isso sim, uma necessária reflexão de como eliminar o desperdício de comida, de recursos energéticos, de relações, de tempo. Ele deveria nos indicar a repensar nossa disposição para o cuidado coletivo e a atenção real que damos aos mais velhos e às crianças. Mais além: a pandemia do Covid-19 exige a disposição para considerar necessário a ideia de renda básica aos mais pobres. Há uma reinvenção do cotidiano nos convocando todos os dias, assim como acontece de as idéias também nos chamarem para a ação.
São
todas feridas que não cuidamos e que requerem cura sistêmica, não uma guerra –
por mais que a metáfora possa parecer útil. Que apontam, também para a morte –
o que muda, forçosamente, a perspectiva das coisas. É nesse sentido que evoco
outro rastro não ocidental: o poder de cura de Omolu, a divindade que cuida das
pestes e das curas no sistema espiritual Yorubano. Um dos itans sobre esse
Orixá relata como ele precisou se esconder entre palhas para que não vissem as
feridas da peste que portava e das quais tinha vergonha. Até então Omolu, que
era velho, estava recolhido e em silêncio, em meio à festa que os outros Orixás
faziam, na qual dançavam e se divertiam.
Iansã,
rainha dos raios e trovoadas, apiedou-se do senhor das pestes e lançou um
feitiço na forma de vento, que levantou as palhas que escondiam as chagas de
Omolu e as fez explodirem no alto, em forma de pipoca. Omolu deixa de ser velho
e revelou ali sua face jovem e bela, Obaluaiyê. O itan nos serve como uma
referência para entender a necessidade do recolhimento (muito além da
quarentena), que sirva a uma mirada interior, direcionada a nossos cotidianos,
para que possamos sarar tantas chagas em nosso corpo social e que incluem a dificuldade Moderna de compreensão holística, a
arrogância, as desigualdades crônicas, a indiferença.
Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.