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Histórias de vida e morte no hospital de campanha

Inácio França / 10/07/2020

Crédito: Geórgia Araújo

Durante quase três meses – exatos 85 dias – o estacionamento da Policlínica e Maternidade Barros Lima, na Zona Norte do Recife, foi ocupado pela enorme tenda onde funcionou um dos hospitais de campanha da capital pernambucana para isolamento de pacientes de covid-19. A estrutura ainda está lá, foi mantida por precaução, porém desde o dia 1º de julho o que passou a funcionar foi uma unidade para triagem, leitos para pacientes com casos suspeitos leve serem medicados ou aguardarem transferência em caso de agravamento.

Os relatórios da secretaria municipal de saúde indicam que 4.080 pessoas foram atendidas no hospital provisório. Ficaram internadas 509, das quais 147 saíram curadas e 323 foram transferidas. Trinta e nove homens e mulheres morreram. A taxa de mortalidade de 7,7% é praticamente igual a do restante do estado (7,9%).

Com a queda de números de casos em Recife, a prefeitura reduziu a estrutura. Dos 155 profissionais que trabalhavam no hospital de campanha no período mais difícil, principalmente entre o final de abril e meados de maio, apenas a metade foi mantida. Para a maioria, foi a experiência mais difícil de suas vidas.

Três desses profissionais contaram um pouco do que viram e viveram no hospital de campanha. São relatos de dor, sofrimento e ansiedade, mas também de coragem, dedicação e solidariedade. Coisas que o balanço da prefeitura é incapaz de revelar.

O enfermeiro Clóvis

A morte e a tragédia fazem parte da vida de Clóvis Henrique Barros e Silva muito antes da pandemia. Aos 54 anos, passou boa parte de sua vida profissional na sala vermelha do maior pronto-socorro de Campina Grande. Além disso, como enfermeiro intensivista, ou seja, especialista em trabalho em UTI, já enfrentou um surto de uma superbactéria em outro hospital público de Paraíba.

Por isso, não hesitou quando foi chamado para assumir a vaga que conquistou por ter passado na seleção pública realizada pela prefeitura do Recife em 2018. Ele começou na Barros Lima no dia 3 de abril, antes mesmo da inauguração oficial que só aconteceria três dias depois.

“Nessa rotina de trabalho, a gente acaba criando barreiras de defesa, senão enlouquece. Mas tem hora que é difícil de aguentar”, confessa, emendando com a lembrança dos momentos em que foi difícil suportar: “Foram três plantões seguidos. Um óbito em cada um”.

Duas dessas mortes desconcertaram toda a equipe. “A primeira foi de a de um homem que havia passado quase uma semana no isolamento, ele melhorou a ponto de receber alta clínica e voltou para casa. Quatro dias depois, deu entrada novamente no início do meu plantão. Já chegou mal, com falta de ar. Morreu no mesmo dia. Quando a família chegou, soubemos que ele estava fazendo aniversário naquele dia”.

A outra morte desconcertante foi a de um técnico de enfermagem, profissional de outro hospital público. “Simpático, boa gente, fez amizade com todos os colegas que o atendiam. Passou dois ou três dias conosco. Estável, tudo indicando que iria escapar. De repente, do nada, começou a piorar rapidamente. Foi entubado e veio a óbito. Essa noite foi difícil encontrar paz, a gente não conseguia nem olhar um para o outro”.

Para o enfermeiro Clóvis, outra grande dificuldade de trabalhar na linha de frente é manter o distanciamento social até mesmo dentro de casa. “Não quero contagiar minha mulher e filhos. Almoço e janto em horários diferentes da minha família, durmo longe de minha esposa. É duro, mas não quero que eles fiquem doentes”.

Clóvis foi um dos poucos de sua equipe de plantão que não adoeceu. “Se tive contato com o vírus, fiquei assintomático. Não é milagre, não. Ao contrário de muitos colegas, sei usar bem os equipamentos de proteção por causa dos meus anos numa UTI.”

Com a estrutura funcionando parcialmente, Clóvis continua acordando às 4h30min para sair de João Pessoa a tempo de chegar na avenida Norte antes do plantão começar. “Chegar cedo é um dos segredos, pois dá tempo de se paramentar com cuidado, revisar EPI por EPI, e iniciar o plantão com segurança. Mas agora está bem mais tranquilo, antes a gente entrava no isolamento e não podia mais sair”.

Gisléa, Dália e Clóvis contaram suas experiências na linha de frente

As psicólogas Gisléa e Dália

As equipes médica e de enfermagem foram surpreendidas com a informação de que psicólogas participariam do atendimento no hospital de campanha. Mais surpresas ainda ficaram Dália Costa e Gisléa Ferreira quando, alguns dias depois de saberem que tinham passado no concurso da prefeitura, foram avisadas por telefone que já seriam convocadas para trabalhar.

Por ter no currículo um estágio no Hospital da Restauração, Dália encarou o chamado com mais naturalidade. Com Gisléa foi diferente, como se verá mais adiante.

“O maior receio foi levar o vírus para casa e infectar as pessoas que amo”, admite Dália, explicando que, no final de março, ainda vivia com os pais. Antes mesmo do primeiro plantão, alugou um apartamento e foi morar só aos 32 anos para proteger o pai e a mãe.

Na manhã de 27 abril, começou a trabalhar e, já no fim do plantão, começou a sentir fraqueza. Era covid-19. “Testei positivo. É claro que a contaminação não aconteceu no trabalho, não deu tempo”, explica. Os primeiros 14 dias de contrato ela passou em seu próprio isolamento. “Em compensação, quando voltei ao trabalho, estava mais segura por ter adquirido alguma imunidade, mesmo que isso ainda não seja comprovado. Acabou sendo positivo”.

As videochamadas entre os pacientes isolados e seus parentes não eram previstas para o trabalho do serviço das psicólogas e assistentes sociais, mas acabaram se tornando bem importantes na rotina do hospital de campanha. “As chamadas são fundamentais, são as visitas virtuais. Todas eram emocionantes”, garante Dália.

“Fazíamos chamadas tanto entre jovens de 18 anos e seus pais ou irmãos quanto entre idosos e seus filhos e filhas. Quando tínhamos tempo, ligávamos para vários filhos que moravam em lugares diferentes”, conta a psicóloga. O celular enviado pela prefeitura contém vários aplicativos de conversas online, mas quase todas as chamadas foram feitas com whatsapp por ser o de uso mais corrente.

Exatamente minutos antes de fazer uma videochamada aconteceu o fato que mais abalou Dália no hospital de campanha. “Eu estava atendendo a uma senhora bastante debilitada, mas percebi que ela piorou durante o atendimento. Quando a técnica de enfermagem estava tentando encontrar sua veia para colocar acesso para medicamento, ela infartou e faleceu. Presenciei tudo”, recorda Dália.

Do lado de fora do isolamento, mais emoção: uma das filhas que mora no interior do estado havia chegado com a esperança de visitar a mãe. “Ela não tinha conseguido vir no dia das mães, então a diretoria fez uma concessão e permitiu que ela visse o corpo. Foi muito triste”.

Hoje, o cotidiano está mais leve, mas, segundo Dália, os sintomas de ansiedade ainda estão muito presentes entre as pessoas que chegam para a triagem. “Isso muda o ritmo da respiração e dificulta o trabalho dos médicos que precisam fazer o diagnóstico”.

Da pesquisa para a linha de frente

Quando prestou o concurso público, Gisléa imaginava trabalhar com saúde mental em algum Centro de Atenção Psicossocial (Caps), por exemplo. Um trabalho assim viria a calhar com sua formação, pois, aos 31 anos, ela é mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A pandemia atropelou suas expectativas.

“Fiquei estatelada quando soube que teria de entrar no isolamento e ter contato direto com as pessoas doentes. Meu marido é que me acalmou”, revela. O medo inicial de contrair a doença e contaminar o marido logo cedeu e ela passou a ver a convocação como uma oportunidade. “Mesmo assim, durante o primeiro mês de trabalho esse foi o único tema em minhas sessões de terapia” diz ela, com humor e sem constrangimento.

O primeiro plantão, em 28 de abril, foi exaustivo. “Era tudo muito intenso. O isolamento estava lotado, com os 30 leitos ocupados. Do lado de fora, as famílias amedrontadas querendo informações”, relata a psicóloga. Segundo ela, inicialmente o primeiro trabalho foi construir o próprio espaço da psicologia na rotina do hospital, pois os médicos nem sabiam do atendimento psicológico.

Se a colega Dália tinha passado por um estágio hospitalar no HR, Gisléa saiu da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e foi direto para a pesquisa em Saúde Pública. “De repente, estava ali testemunhando óbitos acontecendo, assistindo a procedimentos de reanimação e vendo como médicos e enfermeiros se comunicam intensamente nos momentos críticos com todo o cuidado para que outros pacientes não percebam o que está ocorrendo”, afirma.

A cada morte, Gisléa entendia a importância do seu papel. Em meados de maio, um homem de 28 anos morreu durante seu plantão. Além de informar a morte para a mãe, teve de orientá-la e acompanhá-la no momento em que essa mulher contou à neta de oito anos que o pai havia morrido e que ninguém poderia ver o corpo.

“A psicologia pode contribuir tanto para humanizar o ato de informar um óbito quanto para que as famílias possam encontrar uma forma de viver o luto num contexto em que sequer podem se despedir da pessoa amada. Numa pandemia, o impacto na saúde mental da população é ainda maior e mais numeroso do que o da própria doença ”, concluiu.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.