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Terra das heroínas de Tejucupapo, Goiana tem pela primeira vez mulheres disputando a prefeitura

Marco Zero Conteúdo / 05/11/2020

Roberta Maracajá e Kátia Cunha. Crédito: Giovanna Carneiro/MZ Conteúdo

Por Giovanna Carneiro / especial para a Marco Zero Conteúdo

As eleições municipais deste ano terão um caráter histórico para a cidade de Goiana. Pela primeira vez, a disputa pela prefeitura do município localizado no extremo norte da Região Metropolitana do Recife contará com candidatas mulheres. Após 180 anos e 43 mandatos masculinos, o surgimento de duas chapas compostas só por mulheres é resultado da construção de uma política mais inclusiva e de um movimento social que busca equidade de gênero em todas as instâncias de poder.

A cidade das heroínas de Tejucupapo, onde ocorreu a primeira batalha do Brasil protagonizada por mulheres, ainda em 1646, só agora poderá ter a primeira representante feminina no Poder Executivo. As chapas do PSOL, composta por Kátia Cunha e Roberta Maracajá, e do PCdoB, com Olga Sena e Danyelle Sena, são o prenúncio de uma mudança que promoveria uma retratação histórica com as goianenses.

A motivação para Kátia Cunha disputar a prefeitura surgiu de uma visita ao município onde nasceu para intervir em uma situação que estava atormentando os feirantes: a retirada e realocação, por parte da prefeitura, dos bancos da feira que ficam na área central da cidade.

Na visita, a professora e codeputada estadual no mandato coletivo Juntas se deparou com problemas maiores da gestão. “Eu não podia ficar inerte, eu tinha que vir pra cá disputar essa eleição, trazer uma forma nova de fazer política e abrir as portas da prefeitura para que o povo tenha acesso e possa estabelecer diálogo com a câmara municipal. Eu quero mostrar que a nossa prioridade é o povo e que a gente pode construir a política de outra forma”.

Kátia Cunha é candidata a prefeita pelo PSOL ao lado de Roberta Maracajá, atriz e advogada, que participa de uma campanha política pela primeira vez e já sente a hostilidade dos homens, que tentam dificultar a sua candidatura. “Nas ruas, a gente se sente muito mais à vontade quando se dirige para um grupo de mulheres. Os homens são mais hostis com a gente, e isso acontece em qualquer departamento. Quando fizemos a nossa carreata precisamos nos dirigir ao Batalhão da Polícia e os policiais foram super hostis com a gente, eles não queriam aceitar o nosso ofício e alegaram que a data do protocolo estava errada quando estava tudo dentro da lei”.

A candidata do PSOL cita várias formas usadas para silenciar, deslegitimar e fragilizar sua campanha. Ela reclama por não serem convidadas para as entrevistas e debates, não terem seus nomes divulgados nas enquetes de intenção de voto ou recorrentemente ser anunciado que só existem três candidaturas disputando as eleições, quando na verdade são quatro. “Nós estamos num esforço sobrenatural de comunicar às pessoas de Goiana e dos distritos que a gente existe”, afirma Kátia.

Sabendo da importância da comunicação no processo político, Kátia chama atenção para um fato que tem influência direta nas eleições. “O candidato a prefeito pelo PSL é apoiado pelo atual prefeito, que é dono de uma rádio e usa os próprios programas para favorecer a candidatura dele, ou seja, a gente acaba ficando atrás nesse contexto”. A candidata se refere a Osvaldo Rabelo Filho, atual prefeito da cidade que está afastado do cargo por motivos de saúde desde 2018. Ele é dono da Rádio Goiana FM, uma difusora que tem audiência relevante no município.

O avanço dos votos no candidato pelo partido PSL – Eduardo Honório – que é o prefeito em exercício na cidade -, de acordo com as enquetes que estão sendo feitas nas redes sociais virtuais, preocupa as candidatas do PSOL, pois sua eleição significa um governo conservador para Goiana.

“Nas eleições presidenciais, Haddad, candidato da esquerda, teve mais de 60% dos votos aqui na cidade, enquanto o atual presidente teve pouco mais de 30% dos votos. A gente está tentando dizer às pessoas que essas eleições, mesmo tendo um caráter municipal, têm uma influência federal também. Eleger um candidato do PSL, da mesma ideologia do presidente fascista que governa o nosso país, é praticamente garantir que esse cenário se reverta nas eleições de 2022”, afirmou Kátia Cunha.

A disputa pela Prefeitura de Goiana conta com quatro chapas: Edval Soares e Walter, pelo partido Cidadania; Eduardo Honório e Fernando Veloso, pelo PSL; Kátia Cunha e Roberta Maracajá, pelo PSOL; Olga Sena e Danyelle Sena, pelo PCdoB. Edval Soares já foi eleito prefeito da cidade em 2004 e disputou as eleições em 2016 quando perdeu para Osvaldo Rabelo Filho. Atualmente, Goiana é governada pelo vice-prefeito e candidato nas eleições pelo PSL, Eduardo Honório. Tanto Edval quanto Osvaldinho – como é conhecido na cidade – compõem um grupo de políticos com lugares cativos na disputa pela prefeitura. Osvaldinho, por exemplo, já está em seu quarto mandato como prefeito.

Única vereadora quer ser primeira prefeita

Outra candidata já conhecida pelos goianenses é Olga Sena. Única mulher a ocupar uma cadeira na Câmara dos Vereadores, Olga conhece muito bem a necessidade da participação feminina nos cargos públicos da cidade. “As políticas públicas precisam ter a mulher como referência e estando presente no âmbito político a gente vê que os homens não têm preocupação em defender os direitos das mulheres. Por isso, eu decidi que era a minha hora de partir para o Poder Executivo”, afirmou a candidata.

Filha de Alcides Sena, político influente na cidade, que já atuou como vice-prefeito e vereador de Goiana, Olga não imaginava seguir uma carreira política como o pai até que foi incentivada pelos irmãos. Em seu segundo mandato como vereadora na cidade, Olga afirma ter recebido diversos convites para compor chapas como vice-prefeita, mas preferiu recusar e arriscar uma candidatura própria. “A nossa chapa, composta por duas mulheres, não é bem recebida por muitos políticos da cidade porque muito se especulava que eu deveria ser candidata a vice-prefeita para angariar votos. Foi então que eu comecei a me questionar: por que ser vice? O lugar da mulher é onde ela quiser e eu quero ser prefeita dessa cidade”, afirma.

Crédito: Giovanna Carneiro/MZ Conteúdo

De acordo com a vereadora, estabelecer diálogo com os outros vereadores e com o prefeito a fim de implantar políticas públicas para as mulheres goianenses não é uma tarefa fácil. E como única mulher na câmara, o seu esforço precisa ser ainda maior. “O mundo político é muito machista e você precisa se impor e mostrar a força que tem. Quando eles (os vereadores) faziam um cumprimento e diziam ‘bom dia a todos os vereadores’, eles não estavam me cumprimentando. Eu precisei exigir que os vereadores me tratassem como vereadora, que é o correto”, afirmou a candidata.

A falta de assistência e de políticas públicas voltadas para as mulheres é reflexo de uma câmara majoritariamente masculina, que não está preocupada em determinar ações de equidade de gênero nem de inclusão das mulheres no mercado de trabalho ou na vida política. Com pouco mais de 80 mil habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), Goiana não conta com nenhuma creche pública e apenas um órgão para tratar das necessidades das mulheres do município: a Coordenadoria da Mulher.

Arrecadação versus serviço público

Um dos questionamentos fortemente levantados pelas duas chapas femininas é a precarização do serviço público em um contexto econômico de grande valorização. “Ao chegar aqui encontrei uma cidade com todos os direitos humanos violados, do direito ao saneamento básico, à água potável, ao serviço de saúde, escolas abandonadas e sucateadas. É uma equação que não bate. Por que uma cidade que tem tanto dinheiro continua desse jeito?”, pontua Kátia Cunha.

De acordo com dados do IBGE divulgados em 2019, Goiana tem a quinta maior arrecadação fiscal por Produto Interno Bruto (PIB) de Pernambuco.

PIB per capita da cidade de Goiana / Fonte: site do IBGE

A arrecadação deu um salto em 2015 com o anúncio da inauguração da fábrica da Jeep na cidade e continua em ascensão. “Há alguns anos, Goiana teve um boom com a chegada das fábricas que vieram pra cá e a cidade ficou conhecida como ‘a cidade das oportunidades’. Junto com esse boom deveria vir emprego, oportunidade, mas o que chegou foi o aumento da criminalidade, porque falta capacitação para que os jovens exerçam o seu potencial e, por isso, os cidadãos goianenses acabam perdendo espaço no mercado de trabalho para trabalhadores de cidade vizinhas como Paulista, Igarassu, Condado”, afirma Danyelle Sena, advogada e candidata a vice-prefeita ao lado de Olga Sena.

O descaso com a educação da população é um fator determinante para o desenvolvimento da cidade e outra prioridade para as candidaturas de Kátia e Olga. De acordo com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica divulgado em 2019 pelo IBGE, Goiana apresenta uma grande falha neste setor. O município ocupa a 166ª posição no ranking da educação básica das cidades do Nordeste, com o índice 4,0, mais de três pontos abaixo do município de Bonito, líder do ranking com 7,3 pontos.

Para Roberta Maracajá, a falta de investimento na educação faz parte de um plano maior que tem como objetivo alienar a população e afastá-la do debate político. “Para a realidade política de Goiana é muito mais cômodo deixar o povo afastado do cenário político do que colocar eles dentro da própria política, porque, se eles mantêm o povo afastado da política é muito mais fácil oferecer cinquenta reais de quatro em quatro anos para garantir um voto do que politizar esse povo”, afirma.

Política assistencialista e o voto de gratidão

Se olharmos para a lista de prefeitos eleitos nas últimas décadas em Goiana, observaremos que há uma repetição de sobrenomes como Rabelo e Gadêlha, e isso é fruto do poder político e da influência que algumas famílias exercem no município. A política assistencialista e o voto por retribuição de favores é algo culturalmente naturalizado na cidade e isso compromete a ascensão de novos políticos e novas gestões.

O calçamento da rua, a reforma da estrada, o pagamento de salário em dia, o transporte para levar um paciente para realizar um tratamento na capital e até mesmo a coleta do lixo das ruas são justificativas para o voto de alguns eleitores goianenses. Esse comportamento é fruto de uma cultura que foi perpetuada por gerações e que segue influenciando o resultado das eleições municipais por décadas.

“A gente ainda tem aqui na cidade uma política assistencialista, uma política que não consegue olhar para Goiana com o potencial que ela tem. É inadmissível que um cidadão tenha que sair de Goiana, uma cidade que é a quinta economia de Pernambuco, para conseguir uma consulta médica, porque ele paga imposto e o município arrecada o suficiente para prestar um serviço de saúde de qualidade. Goiana tem recurso, mas o que falta é gestão pública”, declara Danyelle Sena.

O surgimento da candidatura de duas chapas compostas por mulheres é o início de uma mudança que pode transformar o jogo político da cidade e findar uma cultura que prejudica as transformações sociais, sobretudo a equidade de gênero. É preciso incentivar outras mulheres a compor os cargos políticos de Goiana e acabar com o imaginário de que para ter poder institucional na cidade é preciso ser um homem de sobrenome conhecido e família abastada.

Em 1646, a cidade de Goiana protagonizou a vitória de quatro líderes mulheres: Maria Camarão, Maria Quitéria, Maria Clara e Joaquina. Juntas e munidas com temperos e utensílios domésticos expulsaram os invasores holandeses de suas terras e garantiram a segurança do seu território e do seu povo. Mais de três séculos depois, quatro mulheres tentam retirar os homens do poder, mas desta vez vivendo em um regime democrático, onde a única arma capaz de promover uma mudança social justa é o voto e a consciência política de cada cidadão goianense.

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