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Ataques e pragmatismo tornam eleição imprevisível no Recife

João Campos e Marília Arraes.

Foram duas semanas tão vertiginosas que ficou difícil acompanhar a movimentação entre os candidatos à Prefeitura do Recife. Enquanto Marília Arraes (PT) acusava João Campos (PSB) de espalhar fake news, a campanha dele se aproveitava de um suposto áudio vazado do deputado federal Túlio Gadelha (PDT) denunciando “rachadinha”. Choveram denúncias de uso da máquina pública, com comissionados e terceirizados fazendo campanha no horário de trabalho. Panfletos e cartazes apócrifos invadiram o Recife com mensagens contra o PT e Marília. Nos grupos de WhatsApp, viralizou o jingle paródia que chama João Campos de “mijão”. De um primeiro turno de guerra fria, o segundo descambou para ataques virulentos na briga pelos 340 mil votos que a direita obteve nas urnas.

São dois candidatos com mais semelhanças que diferenças. Não só compartilham a mesma família – são primos de segundo grau -, mas ambos se posicionam no campo progressista da política e foram eleitos para a Câmara Federal com votações recordes: ele o mais votado, ela em segundo lugar. Para se distinguirem e conquistarem o eleitor conservador – que se dividiu entre as muitas opções do primeiro turno – ambos fizeram alianças questionáveis. Nesta segunda campanha curta e intensa, a escolha de ambos foi a mesma: o ataque.

Para o doutor em ciência política e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) Rodrigo Lins há diferenças gritantes entre os turnos. “No primeiro, João Campos fez o que nós chamamos de campanha de trincheira, ou seja, ele evitou atacar para não ser atacado já que praticamente estava garantido no 2º turno, e conseguiu ser mais propositivo. Já Marília Arraes teve que brigar com os outros candidatos. Depois que ela ficou à frente nas pesquisas, os papéis inverteram”, explica.

O “vale tudo” adotado pela campanha de João Campos chegou a ser comparado com a metodologia da extrema-direita que saiu vitoriosa das urnas em 2018. Especialmente ao acusar Marília de ser contra a Bíblia, numa distorção dos fatos para atrair o eleitor evangélico conservador. Contudo, cientistas políticos não acreditam que a ideologia típica do bolsonarismo tenha vencido nas eleições municipais do Recife.

O cientista político Alexandre Lins avalia que a grande novidade de Bolsonaro foi o uso do Whatsapp na campanha. “Em relação a campanhas de ódio e propagação de fake news, o próprio PT usou desse expediente em outras disputas. O que temos no Recife é o embate de duas candidaturas de esquerda que tentam se consolidar como lideranças jogando no desgaste do outro”, analisa.

Enquanto a chapa encabeçada pelo PSB e PDT aposta no antipetismo, a candidatura PT-Psol mira no sentimento de exaustão que há em relação aos governos socialistas. A desaprovação da gestão Geraldo Júlio (62% de acordo com a última pesquisa Ibope), segundo os cientistas políticos, tende a ter maior impacto sobre a conquista do voto.

“O eleitor sabe, embora não conscientemente, que quadros nacionais de um partido não interferem na administração da cidade. Essa tentativa da campanha de João Campos de colar em Marília Arraes a figura de José Dirceu [ex-ministro petista] não tem muito efeito. Já quando ela traz Geraldo Júlio para ser defendido pelo seu adversário tem um impacto maior”, afirma Rodrigo Lins.

João Campos acompanhado do governador Paulo Câmara e do prefeito Geraldo Júlio no ato após a divulgação do resultado do primeiro turno. Credito: Divulgação

Já Alexandre Lins atenta para uma mudança de comportamento do eleitorado de classe média. “Tem me chamado a atenção setores da classe média muito avessos ao PT, que há dois anos votaram em Bolsonaro, tendendo a votar no PT agora. Isso se dá porque tem um desgaste muito forte do PSB. A própria figura de João Campos, que foi fabricada pelo grupo, traz essa ideia da perpetuação de um único grupo no poder”, avalia.

Para a socióloga Betânia Ávila, pesquisadora do SOS Corpo – Instituto feminista para a democracia, a candidatura de João Campos não pode nem ser considerada como de esquerda. “Independentemente das alianças que o PSB está fazendo, mas pela própria campanha dele. Não vejo no discurso dele uma análise social e política de enfrentamento às desigualdades sociais, por uma cidade mais justa. É uma campanha que explora um discurso conservador e em conformidade com a gestão do estado a serviço da manutenção do sistema”, diz.

Já a campanha de Marília se apresenta problemática pelas alianças com a direita. “Mas se colocam como parte da forma como a democracia representativa se apresenta hoje. Estamos em uma fase especialmente complexa, com uma fragilização da democracia burguesa. As coalizões com a direita podem ser necessárias, mas, do ponto de vista teórico, se aliar a que tem dentro de si visões e interesses antagônicos é algo indesejável. As coalizões com a direita depois cobram seu preço”, afirma a socióloga.

As estratégias de campanha

O publicitário e professor de marketing político da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Fernando Fontanella lembra que as eleições no Recife costumavam ser acirradas e agressivas. Mas o tempo de campanha no segundo turno era maior, o que dava espaço para a construção de alguma narrativa. Com tempo reduzido, não há mais esse espaço. “O recurso das mensagens apócrifas foi muito usado por Jarbas Vasconcelos e Marco Maciel, por exemplo. Mas essa campanha surpreende porque estão escalonando muito rápido”, diz o professor, que não vê muita semelhança com as campanhas da extrema direita. “O que caracteriza campanhas como as de Bolsonaro e de Trump não é tanto o uso das fake news, mas como mexem com os diferentes grupos de eleitores. Atuam com precisão, com uma inteligência de marketing que sabe como usar determinado conteúdo para determinado grupo”, diz.

Talvez o eleitorado esteja hoje mal acostumado porque as últimas eleições no Recife e em Pernambuco foram baseadas na ideia do “outsider da política” e do “gestor”, como foram vendidos Paulo Câmara e Geraldo Júlio. Agora, é política pura. “São políticos de berço, e inclusive da mesma família. Mas não é tanto uma campanha nos nomes deles, mas de como eles são agregadores de grupos políticos. As campanhas trazem um argumento emocional, o do “nós contra eles”, em um nível até de ‘gréia’, apelando para ataques mesquinhos”, comenta Fontanella.

É uma campanha que ele define como “Casos de família”, em referência ao programa de lavagem de roupa suja na televisão. “A baixaria chama atenção. Você sabe que não é certo, mas quando você vê é delicioso, é a sensação de ver a vida como ela é. Do ponto de vista do usuário de internet, ver um vídeo de um minuto com propostas é chato. Mas se é algo que choca, você vai dizer ‘nossa, que horror’, mas vai compartilhar. O que preocupa é isso a longo prazo”, diz Fontanella.

Ele considera dois pontos negativos nessa prática. “Um, obviamente, é o prejuízo político. O outro é que a estratégia de marketing político perde a inteligência. Não há a estratégia de se contar uma história, construir uma candidatura. É apenas tática, você fica no nível da trollagem. E quando essas candidaturas são eleitas, não há uma comunicação política, só eleitoral. Tudo é a curto prazo, com um argumento efêmero que perde o próprio propósito. É uma estratégia que se desgasta e se esvazia de sentido”, analisa.

A disputa pelo voto evangélico

A religião entrou forte nesta disputa pela Prefeitura do Recife. Nos dois palanques, há representantes das igrejas mais tradicionais e das neopentecostais, o que mostra a importância tanto para Marília quanto para João de angariar esses votos. No caso do socialista, a aposta tem sido no viés ideológico, já a petista apela para o pragmatismo.

Marília ao lado de Anderson Ferreira no anúncio do apoio do prefeito reeleito de Jaboatão à candidatura petista no segundo turno do Recife. Crédito: PH Reinaux/Divulgação

“Não acredito que a estratégia dos panfletos apócrifos contra Marília surtam efeito sério na candidatura dela. O voto evangélico não caminha em bloco para um lado ou para outro, é difícil cravar. O que a petista tem passado é por uma miríade de ataques coordenados e entre eles está essa questão religiosa”, diz o cientista político Alexandre Lins.

O pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Joanildo Burity, que trabalha com foco em religião e política, afirma que a disputa pelo voto evangélico não é uma novidade no Brasil e acontece há décadas. “A novidade é que a voz dos evangélicos foi hackeada por um grupo ultraconservador e os setores mais à esquerda das igrejas viraram inimigos. Do ponto de vista eleitoral, o discurso religioso tem se apresentado com um nível bastante baixo. São usados expedientes que manipulam elementos da fé para desqualificar os adversários. Na eleição do Recife, a maior expressão disso acho que são os panfletos contra Marília, apresentando ela como uma pessoa hostil à religião e com frases retiradas de contexto”, diz.

Para Burity, usar o argumento de que a fé ou a falta de fé é um critério para julgar o quanto alguém merece um voto é algo polêmico até no meio evangélico. “Historicamente, esse argumento não funcionava muito bem, mas hoje é algo que vem sendo utilizado, assim como a identidade racial e a questão de gênero. O que os estrategistas têm que levar em consideração é que os evangélicos não seguem cegamente as lideranças. E nessas eleições há uma divisão, os dois têm apoios de blocos importante. Mas, por exemplo, a posição dos Ferreira (o prefeito reeleito de Jaboatão Anderson Ferreira anunciou apoio a Marília) não tem tanto a ver com ideologia. Está muito mais relacionada a como eles querem se demarcar contra o governo do PSB”, avalia.

Assim como a disputa de forma ampla, o voto evangélico segue dividido. “Nenhum dos dois terá todo o eleitorado evangélico para si. Quem terá a maior parte, só saberemos domingo”, diz Burity.

As pesquisas do Ibope e do Datafolha nesta semana mostram os dois candidatos com percentuais bastante próximos, com cada um à frente em um instituto de pesquisa. É uma eleição que está sendo disputada voto a voto, até o último minuto. Vai ser uma contagem de votos com emoção, como há tempos não se via na capital.

AUTORES
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Kleber Nunes

Jornalista formado pela Unicap e mestrando em jornalismo pela UFPB. Atuou como repórter no Diario de Pernambuco e Folha de Pernambuco. Foi trainee e correspondente da Folha de S.Paulo, correspondente do Estadão, colaborador do UOL e da Veja, além de assessor de imprensa. Vamos contar novas histórias? Manda a tua para klebernunes.marcozero@gmail.com

Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org