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Vereadores do Recife aprovam 513 emendas e 228 artigos do Plano Diretor em apenas uma sessão

Inácio França / 17/12/2020

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

O vereador Amaro Cipriano, o “Maguari” (PP), havia acabado de votar favoravelmente a uma das emendas do Plano Diretor na sessão plenária online da Câmara Municipal do Recife, quinta-feira (17), quando escutou um sermão de outro vereador, Marco di Bria (PSB), que havia esquecido o microfone aberto enquanto gravava um áudio pelo celular: “Maguari, você votou sim pela emenda, era pra ter votado não”.

O microfone de Bria foi cortado logo em seguida. Um minuto depois, Maguari pediu a palavra novamente e, obedecendo ao comando, pediu a alteração do próprio voto.

Se ainda havia alguma dúvida, a interferência de Marcos di Bria expôs o rolo compressor da gestão Geraldo Julio para aprovar um Plano Diretor que poderá verticalizar ainda mais a cidade e tornar vulneráveis as comunidades das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis).

Assim como Maguari, poucos eram os vereadores que pareciam saber o que estava sendo votado. Repetidas vezes vereadores como Júnior Bocão (Cidadania), Chico Kiko (PP), Antônio Luiz Neto (PSB) e Luiz Eustáquio (PSB) interromperam a sessão para perguntar qual emenda ou qual assunto estava em pauta.

Eustáquio, por exemplo, chegou a reclamar que não tinha sido chamado para votar, mas foi corrigido pelo presidente da Câmara, Eduardo Marques (PSB): “O senhor foi chamado, votou e seu voto foi computado”. Eustáquio demorou a cair em si: “E foi? Essa foi aquela mesma votação? Já tava querendo votar de novo”.

Pouco antes, quando as emendas propostas por Michelle Collins (PP) estavam sendo votadas conjuntamente, a vereadora Ana Lúcia (Republicanos) declarou que votava contra as mesmas, com exceção “da emenda que protege o patrimônio cultural e histórico religioso”. Collins abriu o microfone e explicou que todas as suas 10 emendas daquele bloco tratavam do mesmo tema. Ana Lúcia então se corrigiu e declarou ser favorável a todas elas.

Menos de um dia de “análise”

Não foi à toa que os vereadores sequer conheciam o conteúdo daquilo que foi aprovado ou rejeitado: o relatório da comissão especial da Câmara que analisou a proposta de Plano Diretor enviada pela Prefeitura só foi protocolado na mesa diretora na Câmara às 17h da quarta-feira, dia 16. Às 10h do dia seguinte, o plenário online – que chegou a ter a presença de 32 vereadores – começou a discutir e votar as 513 emendas apresentadas para os 228 artigos do Plano.

A medida que as webcams e microfones iam sendo abertos, era possível ver as condições em que muitos desses políticos aprovaram uma legislação que irá determinar por uma década os rumos da expansão urbana da cidade. Alguns vereadores davam seus votos caminhando por shopping centers, outros dirigiam seus carros e ainda havia aqueles que estavam em restaurantes ou mesmo cercado por filhos e netos.

Crédito: Beto Figueiroa/EQUIPA Mandato Ivan Moraes

A reunião prolongou-se por quase sete horas em razão de um pedido do vereador Ivan Moraes (PSOL). Ao contrário de Michelle Collins e Jayme Asfora (Cidadania) que aceitaram ter suas emendas apreciadas em bloco, Moraes invocou o artigo 272 do regimento e insistiu para que a maior parte das 47 emendas que apresentou e escolheu como destaques para discussão em plenário fossem lidas e votadas individualmente. Todas as emendas dos três parlamentares foram derrotadas. Mesmo assim, Ivan e Asfora, ao fim de cada votação, pediam para justificar seus respectivos votos.

“Faço questão de declarar as razões do meu voto porque nosso mandato tem compromisso com as comunidades e os setores da sociedade civil que nos procuraram para que defendêssemos suas propostas. E é preciso deixar claro o que esse plenário está aprovando ou rejeitando”, explicou Moraes. Perto do final da votação, ele revelou ter proposto na comissão 123 emendas e obtido êxito em incluir 11 delas no relatório, “mas em plenário não foi possível aprovar nenhuma emenda que contrariasse o relatório da comissão ou derrubar emendas já incorporadas pelo relator”.

Asfora, que não foi reeleito e sairá da Câmara no final do mês, foi incisivo: “Em meus oito anos de mandato, esse é o dia mais vergonhoso que presenciei na Câmara. A sociedade e a cidade irão pagar o preço da verticalização em bairros já estrangulados pelos engarrafamentos, pela falta de saneamento. E quem votou a favor desse relatório também tem seu preço, pois não sabem em quê estão votando, mas sabem quem encomendou a aprovação deste Plano Diretor”.

Oposição governista

A base aliada a Geraldo Julio garantiu a vitória da proposta governista em todas as questões, com o mínimo de 24 e o máximo de 27 votos. A oposição contava sempre com quatro votos certos: além de Ivan Moraes e Asfora, Aline Mariano (PP) e Jairo Brito (PT). O outro petista, João da Costa, que por ser ex-prefeito poderia contribuir com o debate, não apareceu.

Curiosamente, o líder da oposição Renato Antunes (PSC), bolsonarista assumido, se absteve nas votações de todas as emendas. Mais estranho foi o comportamento do vice-líder da bancada oposicionista, que apoiou a proposta governista praticamente em todas as questões.

A posição dúbia da dupla acabou gerando a destituição informal de ambos dos respectivos postos. Aline Mariano e Jayme Asfora passaram a declarar seus votos afirmando “seguir a orientação do líder Ivan Moraes”, numa clara provocação a Antunes e Régis, que não foi reeleito.

O que foi aprovado

O Plano Diretor encaminhado pela prefeitura e aprovado na Câmara em uma única sessão abre as portas para aumentar a verticalização da cidade e possibilitar o avanço das empreiteiras e imobiliárias tanto sobre as comunidades protegidas pela legislação das Zeis quanto nas Unidades de Conservação da Natureza (UCNs) do município.

A segunda votação, prevista para segunda-feira, dia 21, deverá ser uma mera formalidade, sem direito à discussão de emendas.

Essas são algumas das propostas aprovadas:

  • O Plano permitirá construções nas UCNs, autorizando que um mero decreto do prefeito aumente o potencial construtivo dessas áreas. Também diz que se a prefeitura não fizer seu dever de casa e não regulamentar o uso das áreas, valem as regras das áreas não protegidas vizinhas.
  • 16 áreas da cidade (entre elas Bairro do Recife, Jiquiá/Zepelin, Santo Amaro/Vila Naval, Tacaruna, Aeroclube, Várzea, Parque dos Manguezais, Boa Vista, Parque Capibaribe) poderão ter coeficientes de construção superiores ao estabelecido no Plano Diretor.
  • Retirada da lei dos 12 bairros do conceito de Zona de Desenvolvimento Sustentável. Na prática, extingue muitos dos efeitos da Lei dos 12 Bairros, que restringe a verticalização nessas áreas da cidade.
  • Os imóveis localizados em Zeis e vizinhos (limítrofes) aos eixos de transporte público – vias radiais e perimetrais – poderão adotar os parâmetros de construção das Zonas de Reestruturação Urbana (ZRU), adjacentes, ou seja, abre a possibilidade de “invasão” das comunidades das Zeis pela especulação imobiliária.
  • Sem estudo urbanístico algum, a Câmara abriu a possibilidade a construção de prédios mais altos (40 andares) vizinhos às Zonas de Preservação do Patrimônio Histórico, no Centro da Cidade.
  • Mais uma vez, sem qualquer tipo de estudo ou planejamento urbanístico, a Câmara abriu no Plano Diretor a possibilidade de prédios de até 40 andares em bairros que já sofrem com a saturação do trânsito (Espinheiro, Torre, Madalena e Casa Amarela) ou com infraestrutura de saneamento precária (Água Fria e Afogados).
  • Novamente, sem qualquer tipo de estudo de impacto, a Câmara multiplicou por dois os parâmetros urbanísticos de bairros como Várzea, Cordeiro, Iputinga, Barro, IPSEP, Campo Grande, Água Fria e Cajueiro.
Confira a repercussão da aprovação do Plano Diretor pela Câmara do Recife

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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.