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Crédito: Hélia Scheppa/SEI
Pernambuco é o único Estado do Brasil com tendência de crescimento na média móvel de mortes. Já são seis dias consecutivos de alta. Com mais 73 óbitos por covid-19 confirmados, são 14.279 vidas pernambucanas perdidas desde o início da pandemia. No último sábado, 1º de maio, as UTIs bateram recorde no número de pessoas internadas com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), com 1.596 doentes. A taxa de ocupação das UTIs públicas é de 96% nesta terça-feira (4).
As mortes divulgadas nos boletins diários não necessariamente aconteceram naquela data, e sim foram contabilizadas naquele dia.
Apesar dos dados assustadores e do sofrimento que parece não ter fim, o Governo de Pernambuco autorizou a ampliação do horário do comércio no fim de semana de Dia das Mães. Lojas de shoppings, de bairros e do Centro do Recife poderão funcionar das 8h às 20h, na sexta, dia 7 de maio, e no sábado (8), e das 8h às 18h, no domingo (9). Curiosamente, a portaria publicada na terça-feira, 4 de maio, que modifica o decreto do próprio governador, não foi assinada por Paulo Câmara, mas sim pelos secretários do Desenvolvimento Econômico, Geraldo Julio, e da Saúde, André Longo.
O anúncio ajuda a entender como chegamos a essa situação? Para onde vamos caso novas medidas restritivas não sejam tomadas? Essas foram as duas perguntas que fizemos a três dos nossos mais frequentes entrevistados, entre os especialistas que estão acompanhando de perto a evolução da covid-19 no estado e com quem mantemos contato constante na cobertura da pandemia, desde março de 2020.
Não foi um ou outro fator isoladamente o grande responsável. Também não foi por uma questão somente estadual. O cenário federal dificulta a condução local, com destaque para o negacionismo e o ritmo extremamente lento da aquisição de vacinas. Porém, olhando especificamente para a gestão da pandemia em Pernambuco, fica cada vez mais evidente que muitas das medidas adotadas foram tardias, insuficientes ou incompletas.
Especialistas vêm repetindo isso à exaustão e, desde o ano passado, chamando a atenção também para a negligência das políticas públicas de assistência social. Além disso, parte da população e do comércio normalizou a crise e nem mesmo o adoecimento ou a perda de pessoas próximas parece suficiente para induzir uma mudança de mentalidade. Afinal, está quase tudo aberto, as ruas estão lotadas, o transporte público abarrotado.
Enquanto o pano de fundo da pandemia permanecer inalterado, com o vírus circulando livremente e sem que haja políticas de assistência de impacto, o sofrimento deve se prolongar até que a vacinação seja massificada, o que não deve acontecer no curto ou médio prazo. Precisar até onde vamos chegar é uma pergunta ainda sem respostas, mas o passado e o presente são capazes, junto com o exemplo de outros países, são capazes de apontar tendências.
Professor e epidemiologista do Instituto para Redução de Riscos e Danos de Pernambuco (Irrdpe)
A resposta parece ter várias componentes, vou citar um “4-dimensional”, ou seja, 4 componentes:
1. No início da pandemia, não conseguimos isolar e bloquear o vírus no momento inicial de infecção no Estado. Se tivéssemos bloqueado os surtos iniciais com lockdowns nos locais demarcados, seguramente teríamos reduzido o contágio e estaríamos em patamares mais confortáveis. E seguiríamos refazendo isso a cada novo surto como fizeram os países mais bem sucedidos no combate à covid-19 atualmente em todo o mundo.
2. Desse modo, o “Risco COVID” em Pernambuco subiu no início da pandemia e nunca desceu, em momento algum. Assim, o laudo do “paciente Pernambuco” é: sempre exposto a risco alto constante, o “paciente Pernambuco” segue piorando pois sofre incrementalmente da mesma doença.
3. A população parece não ter adquirido consciência situacional do estado pandêmico em momento algum. As cidades não foram sinalizadas exaustivamente para “induzir” esse estado, o que é fundamental, como fizeram outros locais como Reino Unido, Alemanha, Vietnã. Oscilações diárias dos números da infecção, características de covid-19, podem induzir a pensamentos de melhoras momentâneas, desconstruindo a consciência situacional a todo momento.
4. A imunização por vacinação não conseguiu atingir velocidade e abrangência em todo o território do Estado e do País, por mais esforços de todos e, por isso, baixa imunização coletiva não consegue garantir diminuição da infecção na população e seguimos piorando em óbitos e infectados.
Estamos a cada dia caminhando (bolinhas são dias medidos, a azul o último dia medido) para um cenário de risco cada vez maior (zona vermelha) em relação à taxa de ataque apesar da taxa de contágio e lá ficando. Ou seja, “adotando” a doença.
Pernambuco segue “liderando a macabra corrida”, quando comparado a outros países, incluindo Índia, em novos óbitos por milhão de habitante, só perdendo para o Brasil no qual está inserido.
Médica sanitarista e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
Pernambuco chegou a esta situação que estamos hoje diminuindo a capacidade de análise e boa intervenção diante da complexidade da pandemia. Para podermos analisar a amplitude e a nossa capacidade – nossa aqui formada por movimentos, universidades, gestores, movimento sociais, jornalistas, profissionais de direitos humanos, comunidade e pessoas que estão nos territórios -, tinha-se que discutir um modelo, um referencial metodológico estratégico de uma intervenção participativa e coletiva, que não tivemos no estado diante de tamanha complexidade.
Alguns aspectos foram desconsiderados ou relativizados, no sentido de medidas tardias ou que, de fato, não aconteceram. Então sob os aspectos biomoleculares e clínicos, pensamos pouco numa estratégia coletiva com universidades e centros de pesquisa; com a possibilidade de um fazer conjunto, de ampliar capacidade de testagem e de vigilância genômica, com as variantes agora; ampliar capacidade em torno de pensar reinfecções após a vacina.
Outra questão negligenciada foi a capacidade de enxergar o panorama epidemiológico, que tem que ser diário e deveria ter sido feito também com um Comitê Científico ampliado. Pensar a pandemia em Pernambuco exige pensar junto a um cenário de enormes desigualdades, com iniquidade e muita vulnerabilidade social.
Não basta a inauguração de leitos hospitalares e de UTI em unidades provisórias. A rede regionalizada e de atenção à saúde para esse enfrentamento precisa considerar a expansão e qualificação da atenção primária, assegurar o acesso regulado à atenção especializada de forma regional. Ampliar a oferta de serviços hospitalares, sim. Mas tendo a noção de que essa inauguração não diminui a transmissão viral. Não é possível fazer isso sem uma boa vigilância à saúde e epidemiológica a partir das pessoas e dos territórios. Acho que isso também faltou.
Claro que temos que falar que o financiamento, o pacto federativo foi muito fragilizado com esse Governo Federal genocida. Mas algumas ações seriam possíveis a partir de uma intervenção do próprio Estado em articulação com municípios, movimentos e universidades, como falei no início. Seria importantíssimo que tivéssemos pensado nisso, inclusive para estimular e apoiar a participação e o controle social com o SUS, proteger os trabalhadores da saúde e de todas as áreas mais vulneráveis no sentido do trabalho.
Faltou também a dimensão do fortalecimento do sistema de proteção social. Poderíamos ter pensado em promover desenvolvimento com bem-estar, preservar e fortalecer políticas de seguridade social, emprego e renda e proteção aos trabalhadores. É claro, isso é fortemente nacional, mas algumas medidas poderiam ter sido pensadas aqui, como as de segurança alimentar e nutricional e considerando também a dimensão político cultural da pandemia.
Por fim, as populações vulnerabilizadas e os direitos humanos no Estado também foram negligenciados, numa perspectiva de pensar o envelhecimento, o cuidado, as pessoas com condições crônicas, os impactos da pandemia na vida das mulheres, a redução desses impactos negativos na população negra, LGBTQIA+, em situação de rua, indígena, quilombolas, na atenção à população migrante, de refugiados, pessoas privadas de liberdade e Pessoas com Deficiência. A saúde mental também tem sido bastante negligenciada.
Junto com isso aqui dito, medidas tardias de quarentena regional, distanciamento físico, medidas para o transporte público, proteção individual e coletiva, feiras livres. Foram tardias e insuficientes, aconteceram de forma incompleta e a gente já sabe disso. Há mais de um ano, dizemos a mesma coisa.
O que vivemos hoje no Brasil e em Pernambuco é um desastre humanitário sem dúvida nenhuma. Se não fizermos esse enfrentamento a partir de agora, com todas essas medidas articuladas, com recomendações aos gestores, os gestores com capacidade de escuta, de pactuação, de instituir um outro movimento aqui e agora, não vamos construir nenhum futuro que aponte algum grau de felicidade, de possibilidade de bem-estar.
Nesse apontamento para o futuro, é importante tratarmos a pandemia por covid-19 não como uma excepcionalidade. Essas ameaças envolvendo agentes biológicos similares ao Sars-CoV-2, ou de outras origens, químicas ou desastres ambientais, têm se sobreposto, combinando pandemias, epidemias, desastres e crises humanitárias simultaneamente, que já vivíamos no Estado. Cada uma dessas novas situações não vem substituir todas as outras afecções e infecções que já tínhamos antes.
Temos exemplos das situações de saúde pública agudas ou crônicas em Pernambuco, como dengue, zika, microcefalia, HIV/Aids, arboviroses, ameaças da febre amarela e todas as outras que a população pernambucana vem sofrendo. Também violência doméstica e contra a mulher. Enfim, acho que essas situações persistem junto com a epidemia de covid-19.
Médico infectologista do Hospital Oswaldo Cruz, do Hospital do Idoso e da Clínica do Homem do Recife e mestrando em saúde pública pela Fiocruz
Acredito que Pernambuco chegou a essa situação por uma série de fatores. Nossos índices de isolamento vêm caindo muito, já é bem perceptível, com os relatos de aglomeração e muita gente na rua sem usar máscara. A flexibilização das medidas por parte do Governo Estadual têm uma importância nisso. A gente já vinha com uma quantidade de casos muito alta e muitos pacientes internados em UTI e, ainda assim, houve flexibilização. Então a partir do momento em que temos uma flexibilização num contexto com tantos casos circulantes, as chances da doença se espalhar ainda mais são muito altas.
A situação é muito por conta dessa flexibilização precoce e também um pouco de falta de colaboração da população. Por mais que os governos federal, estaduais e municipais coloquem que há restaurantes, bares, templos religiosos e shoppings abertos, a população não precisa ir. Claro que, quando há uma legislação autorizando, é muito mais difícil esperar um posicionamento da população. Nós enquanto cidadãos estamos largados nessa pandemia, por conta principalmente da condução a nível federal, e precisamos entender quais são as situações de maior risco. Usar máscara, de preferência PFF2, priorizar ambientes abertos e bem ventilados, evitar espaços fechados.
Porque, dessa forma, conseguimos reduzir a transmissão com uma estratégia individual. O ideal seria que as estratégias fossem coletivas, como fechamento de espaços e ampliação das restrições, estivessem funcionando, porque aí não precisaríamos apelar tanto para as individuais, porque a pandemia demanda ambas. Se abrimos mão das estratégias coletivas, com as individuais sozinhas fica difícil controlar a pandemia.
Por mais que estejamos vendo um aumento da vacinação, chegando agora em torno dos 15% da população vacinada com a primeira dose, ainda é muito pouco e distante de uma possibilidade de conseguir proteger a população. Precisamos de medidas restritivas, que a população assuma o papel que lhe cabe na condução da pandemia e acelerar ainda mais o processo de vacinação.
Em relação aonde vamos chegar, não sei se dá para fazer uma previsão. Minha preocupação é que o sistema de saúde está colapsado, na casa de 2 mil novos casos por dia, o que demanda internamentos e resultado em óbitos mais para a frente. A grande preocupação é piorar muito a nossa situação e ter mais pacientes em fila de UTI, ontem tínhamos na casa de 80 pacientes em fila. Já vivemos um momento muito crítico no Estado e me preocupa a ausência de medidas restritivas, porque estamos vendo que a população está levando a vida normalmente, as ruas estão cheias.
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Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com