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Um ano após a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, sua mãe Mirtes Renata convoca organizações e entidades para realizar atos por todo o Brasil. Ela cobra justiça e zelo pela vida de crianças negras. As mobilizações ocorrem nesta terça-feira, 2 de junho, em diversas cidades além do Recife, entre elas Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal
No Recife, o ato Justiça por Miguel iniciará às 14h em frente ao Palácio da Justiça, centro da cidade e seguirá, em caminhada, até as Torres Gêmeas, prédio de luxo de onde Miguel caiu e também residência da ex-primeira-dama de Tamandaré e ré no caso da morte da criança, Sarí Corte Real.
Em meio a dor de sofrer a ausência do único filho, Mirtes Renata faz questão de continuar mobilizada para alcançar um direito que lhe traria um mínimo de conforto: a punição daquela que seria responsável pelo abandono que resultou na morte de Miguel.
Passados 365 dias do delito, Sarí Corte Real, ré no caso que a responsabiliza por abandono de incapaz com resultado em morte, segue aguardando o julgamento e o desfecho do caso. De acordo com a advogada Maria Clara D’Ávila, do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop), que presta assistência jurídica à Mirtes Renata, o processo ainda está no momento de reunião de provas e oitivas de testemunhas.
A mobilização em memória de um ano da morte do menino Miguel acontece menos de um mês depois do ato que pedia a anulação do depoimento de uma testemunha do caso, que foi ouvida sem a presença dos advogados de Mirtes. No dia 20 de maio, a família da criança e movimentos sociais se reuniram em frente ao Centro Integrado da Criança e do Adolescente, no bairro da Boa Vista, centro do Recife e exigiram uma resposta do Ministério Público de Pernambuco.
“Não basta a dor da morte do meu filho eu ainda tenho que estar nessa situação: clamando por justiça. A gente fez campanha nas redes sociais, mas também teve que se arriscar e vir às ruas no meio de uma pandemia para pedir celeridade no judiciário para o caso Miguel. É uma situação bem difícil, mas a gente tem que ‘tá’ cobrando, porque se não for dessa forma eles não agem”, declarou Mirtes Renata, na ocasião.
A morte de Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, na terça 2 de junho de 2020, expõs sem retoques a brutalidade do racismo por trás das desigualdades no Brasil. A criança caiu do nono andar das Torres Gêmeas, no bairro de São José, centro do Recife, quando procurava a mãe, a trabalhadora doméstica Mirtes Renata Souza, que passeava com os cachorros da patroa Sarí Gaspar Côrte Real, esposa de Sérgio Hacker, na época, prefeito de Tamandaré.
É fundamental lembrar que, em junho de 2020, o Brasil já vivia a pandemia do coronavírus. No período, muitas trabalhadoras e trabalhadores estavam em casa e a orientação das autoridades sanitárias era que, apenas as pessoas do serviço essencial circulassem.
Mirtes e Miguel deveriam estar em sua casa, protegidos e com o salário integral da mãe garantido. Nesse período, a própria Mirtes e sua mãe, Marta, já tinham sido contaminadas pelo coronavírus enquanto trabalhavam na casa da família. Sarí deixou a criança entrar no elevador sozinha.
Miguel foi sepultado no dia 4. Até então, Mirtes não havia visto as imagens que mostram a criança sozinha no elevador. Sérgio e Sarí, chegaram a ir ao velório da criança, mas foram expulsos.
“Se fosse eu, meu rosto estaria estampado, como já vi vários casos na televisão. Meu nome estaria estampado e meu rosto estaria em todas as mídias. Mas o dela não pode estar na mídia, não pode ser divulgado”, disse Mirtes, em entrevista divulgada na TV Globo após sepultar o único filho.
Desde o início da cobertura do caso, a Marco Zero publicou o nome de Sarí, o que não aconteceu em outros veículos. Uma nota oficial da Polícia Civil “justificava” que o nome não foi revelado aos jornalistas porque, desde que a Lei 13.869, ou lei do Abuso de Autoridade, entrou em vigor, os nomes dos suspeitos de crimes em investigação deixaram de ser informados.
O jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea e professor universitário Paulo Victor Melo não tem dúvidas que a tentativa de manter o nome ausente do noticiário aponta para dois aspectos da sociedade. “O primeiro é o viés do racismo estrutural que obriga uma trabalhadora negra a levar seu filho para o trabalho, expondo ambos à pandemia, quando devia estar protegida em casa. Segundo, é a relação íntima que existe entre a mídia o poder politico e econômico”, afirma.
Sarí chegou a ser presa e foi libertada após pagar fiança de R$ 20 mil para responder em liberdade por homicídio culposo (quando não há intenção de matar), segundo o delegado Ramon Teixeira, responsável pelo caso.
E se a criança que caiu do nono andar das Torres Gêmeas fosse o filho da patroa que estivesse sob os cuidados da empregada? O nome da trabalhadora doméstica seria protegido pela Polícia Civil e a ela seria dada a oportunidade de pagar fiança compatível à sua renda e responder em liberdade?
No dia 6 de junho, publicamos uma matéria que mostrava o contrário do tratamento recebido por Sarí. Dias antes de começar o isolamento social por conta da pandemia publicamos uma reportagem sobre Wilson Xavier. Ele passou praticamente um ano preso por suspeita de participar do assalto à imobiliária Jairo Rocha, em Boa Viagem, em 2018.
Wilson foi indiciado em inquérito conduzido pelo delegado Ramon Teixeira, o mesmo que viria a ser responsável pelas investigações sobre a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva. Contra Wilson e outro réu, Bruno Nunes de Andrade, preso por 9 meses, só havia os reconhecimentos feitos meses depois do crime por algumas das vítimas, parte deles modificados em Juízo.
A questão mais grave do inquérito, segundo a defesa dos réus, é que o assalto foi todo filmado pelo circuito interno de câmeras da imobiliária Jairo Rocha e, apesar das negativas de Wilson e de Bruno sobre a participação no crime, as imagens não foram examinadas e periciadas para comprovar a compatibilidade dos rostos dos assaltantes com os dos acusados.
A família de Wilson e os advogados dele e de Bruno acusam os policiais comandados pelo delegado Teixeira de mentirem para os suspeitos no ato da condução de cada um deles para a delegacia, o primeiro detido em casa e o segundo no trabalho.
Embora estivessem sendo acusados do assalto, os policiais disseram a Wilson que havia uma denúncia de abusos de idosos e crianças e a Bruno que o caso se relacionava à Lei Maria da Penha, que prevê penas para violência doméstica contra as mulheres.
A indignação pela morte de Miguel Otávio, 5 anos, foi levada às ruas do Centro do Recife, na tarde do dia 5. Em sintonia, as palavras de quem estava presente ecoavam por meio de uma reivindicação: justiça por Miguel. Após mais de dois meses de pandemia, os gritos de ordem tomaram o espaço do silêncio, em tempos de isolamento social e comércio majoritariamente fechado.
Mirtes não participou do ato, mas foi representada pela família que estava vestida com camisas estampadas com o rosto de Miguel. Flores e cartazes foram colocados na calçada em frente à portaria do prédio de luxo.
Baixada a poeira da cobertura jornalística dos primeiros fatos, na manhã da segunda-feira, 29 de junho, a Delegacia de Santo Amaro abriu as portas mais cedo para receber Sarí Corte Real, pouco antes das 6h, o delegado Ramon Teixeira estava a postos para colher o depoimento da acusada de homicídio culposo – quando não há intenção de matar – na morte de Miguel: a mulher branca e rica, moradora das Torres Gêmeas.
De acordo com nota da Polícia Civil de Pernambuco, o horário pouco comum de abertura da delegacia se deu após pedido dos advogados de Sarí. “Os advogados da acusada apresentaram requerimento ao delegado que preside o inquérito policial solicitando a realização do depoimento em horário mais cedo que o de início do expediente da unidade policial. Considerando os argumentos relativos à possibilidade de aglomeração de pessoas e o risco de agressão à depoente por parte de populares, o delegado deferiu o requerimento”.
Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cláudio Ferreira, houve favorecimento à acusada no momento em que o delegado acata pedido dos advogados para o depoimento acontecer antes do horário de funcionamento da delegacia.
No dia 1 de julho, o delegado Ramon Teixeira, responsável pelas investigações da morte do menino Miguel, decidiu por mudar o enquadramento da acusação que pesava sobre Sarí Corte Real “para abandono de incapaz resultando em morte”. Ela foi a única indiciada pelo inquérito policial.
A decisão aumentava o potencial punitivo em relação ao auto de flagrante por homicídio culposo, quando não há intenção de matar, que permitiu que a acusada pagasse R$ 20 mil de fiança e fosse liberada no dia da morte de Miguel por decisão do delegado. A pena prevista para o crime de “abandono de incapaz com resultado morte” é de 4 a 12 anos de reclusão. O homicídio culposo prevê pena de 1 a 3 anos de prisão.
Mais uma vez Mirtes foi às ruas reivindicar justiça pela morte de Miguel. Mais uma vez Mirtes mostrou que a justiça pela morte de seu filho tem um significado coletivo e social.
“Eu espero que essa luta que vocês estão vendo que eu estou tendo sirva de exemplo para várias mães que, infelizmente, perderam seus filhos de uma forma brusca e violenta. Não se calem por isso. Busquem justiça. Independente se vocês têm condições financeiras ou não.” (Mirtes Renata Souza, mãe de Miguel)
Foi com a frase citada acima que ela descreveu a sua luta no ato que cobrou o Ministério Público de Pernambuco (MP-PE) para que siga a conclusão do inquérito policial e denuncie Sarí Gaspar Corte Real à Justiça por “abandono de incapaz resultando em morte”.
No dia 14 de julho, último dia do prazo, o Ministério Público denunciou Sarí por “abandono de incapaz resultando em morte” para Justiça. A partir dessa data à Justiça decidir se Sarí Gaspar Côrte Real será processada judicialmente e irá a julgamento pela morte de Miguel
A denúncia seguiu para a 1ª Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente da Capital comandada pelo magistrado, José Renato Bizerra. Sarí seguiu em liberdade.
No dia 11 de agosto, uma equipe de reportagem da MZ esteve na casa de Mirtes e Marta para uma entrevista.
De paredes azul clara, cor escolhida por ele, porta-retratos com fotos de várias etapas da vida curta do garoto, aos brinquedos no canto da sala, tudo naquela casa era Miguel. Do quarto, Mirtes ainda não havia tirado nada e relatou não ter coragem de mostrar.
“Ele era uma criança muito carinhosa, onde ele passava e encontrava flores , trazia para mim. Hoje de manhã eu estava caminhando e tem uma casa que passei que tem um pé de papoulas bem bonitas e eu lembrei dele. Hoje de manhã eu fui caminhar chorando com saudade do meu filho”.
Três meses depois da morte de Miguel, a família, instituições a sociedade civil e do movimento negro lançaram a campanha “Ouçam Mirtes, a mãe de Miguel”, com objetivo de amplificar a voz de Mirtes Renata e cobrar da Justiça de Pernambuco que o caso seja concluído com isenção e rapidez.
Seis meses depois da morte de Miguel, no dia 03 de dezembro, Mirtes participou da primeira audiência de instrução do julgamento de Sarí. Ao sair, sete horas depois, disse: “Querem transformar meu filho no demônio e Sarí em santa”. Na audiência de hoje quiseram transformar ele na pior criança do mundo e Sari numa pessoa delicada. Querem passar ela por doida. Uma mãe de família, empresária, e não tem percepção do perigo?”.
O que mais a revoltou diante de tudo que viu na audiência foi algo que ela vinha negando desde o começo do caso: o racismo. “Ele não teve o direito de ser criança, de ser protegido. Isso ficou bem claro, bem explícito, na audiência de hoje. Eu vou mover céus e terras para que a condenação aconteça”.
No dia 20 de maio de 2021, Mirtes juntamente com organizações e movimentos sociais realizaram um ato reivindicando a anulação do depoimento de uma das testemunhas do caso.
No dia 3 de maio, os advogados de Mirtes Renata Santana protocolaram um pedido de anulação de um depoimento, que aconteceu sem a presença dos advogados que representam a família de Miguel. Antes, os advogados de Mirtes já tinham apresentado solicitações para estar presentes à oitiva.
De acordo com os advogados, o fato da audiência ter ocorrido com a presença do Ministério Público de Pernambuco, autor da ação penal, e testemunhada apenas por representantes de Sarí Corte Real, compromete a imparcialidade e favorece a acusada.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.