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Crédito: Inácio França/MZ Conteúdo
Uma vez por semana, sem falta, o estudante de Cinema Leônidas dos Santos Júnior sai de casa no Cabo de Santo Agostinho, pega três ônibus, faz o último trecho do caminho pelo campus da Universidade Federal de Pernambuco até o Centro de Convenções da instituição. Depois de cumprimentar o vigilante, seus passos ecoam na travessia do amplo hall de entrada até a porta do cinema, único equipamento do espaço que estava funcionando antes do início da pandemia.
O rapaz de 25 anos não aguarda público nem outros colegas do curso. Sozinho, ele sobe as escadas e liga o projetor que iluminará a tela com uma luz branca pelas cinco ou seis horas seguintes para a sala vazia. O trabalho de Leônidas é crucial para evitar um prejuízo de milhares de dólares. Caso o projetor digital a laser não permaneça ligado por horas a fio, ao menos uma vez por semana, pode ficar inutilizado e teria de ser consertado nos Estados Unidos.
A rotina de, obrigatoriamente, ligar o projetor teve início já na semana seguinte ao encerramento das atividades das universidades públicas, em março de 2020. Durante meses, a missão foi confiada a um aluno recém-formado que havia feito o mesmo minicurso de projecionista que Leônidas também concluiu e havia se oferecido como voluntário. Como bolsista da área administrativa do curso de Cinema e Audiovisual, ele passou a acumular essa tarefa em meados deste ano.
A promessa de aumento do valor da bolsa de R$ 382,00 ficou no vazio, mesmo assim o rapaz está adiando o máximo que pode a conclusão da última disciplina do curso: “Tenho de manter o vínculo para não deixar de receber esse valor”.
A esperança de dias melhores, no entanto, não está na raquítica bolsa. No final de 2019, ele passou em segundo lugar no concurso público para técnico audiovisual e, caso seja efetivado, será um dos projecionistas oficiais da UFPE. O problema é que, desde fevereiro de 2020, 19 mil contratações de novos professores e funcionários foram bloqueadas pelo então ministro da Educação, Abraham Weintraub. mesmo já estando previstas no orçamento da União.
Mesmo se fosse contratado imediatamente, Leônidas não teria uma rotina de trabalho. E não só por causa da pandemia. O cinema ainda está sem gestores nem linha de atuação definida para quando as atividades voltarem ao normal no campus. A administração da UFPE informou que “está em vias de implantar um novo modelo de gestão para todos os espaços culturais ligados ao Complexo do Centro de Convenções da UFPE. Por enquanto, não temos a data para a retomada das atividades do cinema”. A boa notícia é que a licitação para contratar a empresa de manutenção preventiva do projetor foi concluída.
O cinema foi inaugurado em outubro de 2019, depois de sete anos de obras que custaram quase R$ 4 milhões em recursos próprios da universidade. Uma equipe provisória de gestão com sete integrantes do curso de Cinema elaborou o projeto cultural e um calendário de programação que ocuparia a sala com 48 semanas por ano. Na época, o professor Paulo Cunha, apontado como o principal responsável para que o cinema saísse do papel, estava prestes a se aposentar e optou por não fazer parte do grupo gestor.
Inicialmente, a ideia era que o cinema se pagasse, por isso seriam cobrados ingressos de R$ 14,00 (inteira), R$ 7,00 (meia) e R$ 6,00 para estudantes, professores e funcionários. O fato do cinema ser o único da zona oeste do Recife seria um atrativo a mais para atrair o público, sem contar a proximidade com cena boêmia e cultural da Várzea e a facilidade para estacionar. A administração seria da Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da UFPE (Fade), que teria mais flexibilidade para gerir os recursos arrecadados, contratar fornecedores e fazer a manutenção.
Por dois meses, logo depois da inauguração, o cinema funcionou como esperado. Foram exibidos filmes do Coquetel Molotov, da Janela Internacional de Cinema da UFPE, Mostra dos 10 anos do curso de Cinema e de vários diretores pernambucanos, como Kléber Mendonça Filho, Lírio Ferreira, Pedro Severién, Gabriel Mascaro, Camilo Cavalcante, Marcelo Pedroso e Petrônio Lorena. A pandemia paralisou as atividades. As mudanças políticas na reitoria impediram que o grupo gestor fosse formalizado.
De acordo com a professora Mannuela Costa, que chegou a atuar interinamente como coordenadora do projeto, a diversidade seria a principal característica do modelo de ocupação da sala. “Diversidade tanto das formas de ocupação quanto de linguagens do cinema”, explica Mannuela. Um edital de ocupação seria aberto para produtores culturais, os cineclubes do Engenho do Meio e da comunidade de Roda de Fogo já haviam sido contatados e também dariam vida ao cinema. “Iríamos implementar uma espécie de carnê de sócio, onde o público em geral poderia pagar antecipadamente o ano todo, o que daria direito a um aluno da UFPE em situação de vulnerabilidade social assistir de graça como dependente”, relata.
A curadoria do conteúdo ficaria nas mãos de Camilo Lourenço Soares, também professor e doutor em Cinema pela Universidade de Paris/Sorbonne. “O cinema da UFPE não seria um segundo cinema da Fundação, não. Nada disso, a proposta seria enfatizar aos produções cinematográficas da América Latina, os cinemas africano e asiático, mas sempre com a preocupação de não espantar o público com filmes elitistas e herméticos”.
Pós-doutora e pesquisadora da história do cinema pernambucano, Amanda Mansur Nogueira conta que o cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) serviu de referência para, ao menos, os ex-integrantes do grupo gestor entenderem a operação de uma sala de exibição: “fomos até a Fundaj entender funcionamento de bilheteria, segurança e dos sistemas. Lá, eles tem 45 pessoas nos dois cinemas. Nós não temos nem equipe de limpeza”.
A limpeza da sala, contudo, é a menor das preocupações dos professores do curso de Cinema. Mannuela Costa teme que, “se não houver a definição do conceito do espaço como um equipamento cultural, há o risco da universidade usá-lo apenas como um auditório de luxo, alugando para eventos de empresas. Para garantir o retorno financeiro, ele pode ser usado como cinema e, em outros horários, ficar disponível para aluguel. Nosso temor é que aconteça o inverso”.
Desde que foi aprovado no Enem e começou a cursar Ciências Contábeis aos 17 anos, Leônidas Júnior passa a maior parte de suas horas na UFPE. Assim que se tornou universitário, foi selecionado para um estágio administrativo do departamento de Química. Atravessava o campus a pé para ir do prédio onde tinha aulas para o local onde dava expediente. Depois, incorporou a essa rotina aulas em disciplinas eletivas de Cinema.
Ao perceber que sua grande paixão era mesmo cinema, fez um novo Enem. Foi aprovado e, logo em seguida, passou a dar aulas sobre o assunto em uma atividade de extensão no Colégio de Aplicação – o que implicava em mais uma caminhada pelo campus. “Nessa época, minha jornada diária começava às 4h30min, quando acordava, e terminava quase meia-noite, quando voltava para casa, no Cabo”, recorda. Resultado: no último semestre de Contábeis, foi reprovado em duas disciplinas e trancou o curso.
Tanta dedicação chamou a atenção de professores do Centro de Artes, que conseguiram transferir seu estágio administrativo para o departamento de Comunicação. Agora, espera que a reitoria se esforce para que o concurso em que passou não perca a validade e ele possa ser contratado: “É a única coisa que eu espero receber em troca”. Se der certo, Leônidas pretende prosseguir a carreira acadêmica, ser professor e viver de escrever roteiros.
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Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.