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Prefeitura do Recife não desiste de câmeras de reconhecimento facial

Maria Carolina Santos / 17/03/2022

Crédito: Cottonbro/Pexels

Mesmo sob pressão da sociedade civil e com abertura de investigação pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), a Prefeitura do Recife não desistiu de prever em edital de Parceria Público-Privada a instalação de 108 câmeras com a tecnologia de reconhecimento facial. Ontem, a Câmara dos Vereados do Recife recebeu uma audiência pública sobre o assunto. Ao final, um grupo de vereadores, tanto da base de sustentação ao prefeito João Campos quanto da oposição, decidiu se juntar para fazer um projeto de lei que proíba o uso da tecnologia no Recife.

Há uma série de questionamentos importantes sobre essa tecnologia. Adotada em vários países, ela já começa a ser abandonada ou até mesmo banida. Na Alemanha, o premier Olaf Scholz está dando passos para restringir seu uso. Em 2019, São Francisco foi a primeira grande cidade dos Estados Unidos a banir o reconhecimento facial: os vereadores decidiram por lá que rastrear pessoas indiscriminadamente é incompatível com uma democracia saudável.

O que levou o Recife a viver esse debate é um edital, que será lançado em breve, para a instalação de 108 relógios com publicidade. Serão geridos por uma empresa privada – aquela que ganhar a licitação -, e fiscalizados pela prefeitura. O projeto de mobiliário urbano deve arrecadar R$ 90 milhões para a PCR.

É o primeiro projeto de concessão de longo prazo – são 20 anos – que o Recife lança em sua história e também o primeiro do primeiro de uma série de Parcerias Públicos-Privadas (PPP) que o prefeito João Campos (PSB) quer implementar no Recife até o fim do mandato, na expectativa de arrecadar R$ 1 bilhão.

Na abertura da audiência pública, a vereadora Dani Portela (Psol) lembrou que o reconhecimento por câmeras é uma “melhoria” dos livros de reconhecimento fotográfico das polícias. E que, em janeiro, uma foto do ator Michael B. Jordan (de Creed e Pantera Negra, entre outros) constava como suspeito de uma chacina no Ceará. “Não por coincidência, é um homem negro. Não dá para acreditarmos que injustiças não continuem acontecendo. Um homem negro é, ao longo do processo histórico, um perfil considerado suspeito. Em um ano, o STF cassou 78 decisões baseadas em reconhecimento facial por terem verificado diversas irregularidades”, afirmou.

Na sua fala, o vereador Ivan Moraes (Psol) questionou se a prefeitura iria desistir “desse retrocesso”. “Não há estudos que comprovem que a violência diminui, mas há estudos que mostram que as pessoas negras são mais presas injustamente”, disse. “Se a prefeitura não desistir, vamos continuar utilizando nossos instrumentos para que isso seja revertido e, de uma forma ou de outra, banir essa tecnologia”.

Da base do governo, a vereadora Cida Pedrosa (PC do B) também cobrou a desistência da prefeitura e defendeu um projeto de lei na própria Câmara para banir a tecnologia. “Além de resolver uma questão da gestão atual, resolve de próximas gestões. Temos hoje uma gestão disposta ao diálogo, e se as próximas não forem assim?”, questionou.

As críticas da sociedade civil

Por quê o reconhecimento facial por meio de câmeras é considerado racista e transfóbico? A câmera capta os rostos de milhares de pessoas e depois faz comparação com bancos de dados – que podem ser do Detran ou da polícia, por exemplo. A partir daí, identificam suspeitos.

Acontece que, para fazer esse reconhecimento por meio de inteligência artificial, o algoritmo é treinado com bancos de imagens com fotos de milhares (ou milhões) de pessoas. E a composição étnica desse treinamento não é igualitária. Assim, o algoritmos não reconhece bem pessoas negras ou trans, dando margem para muitos falsos positivos e, consequentemente, prisões. A vereadora Dani Portela trouxe o dado de que nos EUA quase 70% dos erros judiciais foram por conta de reconhecimentos equivocados.

“Esse banco de dados usado para treinar o algoritmo foi baseado no consentimento das pessoas? Essa pergunta vem servindo como base para proibição de atuação de empresas de reconhecimento facial. Desde a gênesis, do treinamento, já existem ilegalidades. A PCR, por exemplo, não saberia responder qual o banco de dados usados foi usado ou a diversidade étnica desse banco de dados. É muito sintomático como a tecnologia sem processo de inclusão social mais serve à exclusão do que à efetiva inovação urbana”, pontuou o cientista da computação André Ramiro,do IP.Rec, entidade civil de governança na internet.

Outro ponto importante levantado é a violação do direito à privacidade. “A pessoa tem que ter a liberdade de não ser vigiada, principalmente pelo Estado. Muitas pessoas podem deixar de participar de um protesto com medo de perseguição. Isso é perigoso para a liberdade de expressão e para a democracia do país”, afirmou a advogada Tereza Mansi, do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), lembrando que a tecnologia viola a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), já que não há um consentimento ativo para captura e uso da imagem daquela pessoa.

Representante da Articulação Negra de Pernambuco (Anepe), José Vitor Pereira falou sobre a desigualdade racial no Brasil: dos 770 mil presos, 67% são negros. “Vocês acham mesmo, considerando que os algoritmos de Inteligência Artificial não surgem do nada, por todo o racismo estrutural existente, que há viabilidade de ter uma tecnologia desse tipo e que ela seja equânime? É óbvio que, pelo enviesamento, ela vai recrudescer contra a população vulnerável”, afirmou, citando que só no Rio de Janeiro aconteceram 58 casos de falsos positivos, dos quais 80% foram contras pessoas negras, e que 70% resultaram em prisões de inocentes.

Prefeitura neutra? Nem tanto

Divulgação/PCR

O único representante da Prefeitura do Recife presente na reunião foi Thiago Barros Ribeiro, secretário-executivo de Parcerias Estratégicas, responsável pelo projeto. Ele lembrou que, desde novembro do ano passado, há discussões sobre a tecnologia, com a consulta pública pública que ocorreu no dia 26. Apesar de quatro meses terem corrido após aquela reunião, que a Marco Zero também acompanhou, Thiago afirmou ontem que “por desconhecimento, não tenho condições de me posicionar de um lado ou do outro do debate”.

Mas não foi o que pareceu. Como houve transmissão da audiência pelo YouTube, com chat aberto para a participação popular, uma voz destoante chamou atenção. Era o gerente geral de concessões e parcerias público-privadas da PCR, Raul Costa Cavalcanti, subordinado de Thiago Ribeiro na secretaria. Também convidado para compor a mesa da audiência, ele não foi.



Mas, no chat da audiência, ficou criticando as falas dos especialistas da sociedade civil, que se opunham contra o uso do reconhecimento facial. “​Vamos questionar se a sociedade recifense quer ou não câmeras de segurança, e não apenas grupos específicos” e “​O diálogo tem que ser feito com pessoas que pensam diferente e não apenas com pessoas que pensam do mesmo jeito e tem a mesma opinião sobre o tema. Isso não é debate, é autoafirmação”, foram algumas das mensagens postadas por ele.

Como toda a audiência pública, o espaço era aberto para quem quisesse participar.

O secretário-executivo Thiago Ribeiro não explicou em momento algum, apesar de questionado, porque a prefeitura insiste em colocar o reconhecimento facial em um projeto em que, segundo o próprio secretário, isso seria apenas um detalhe. “Não é uma PPP de reconhecimento facial, embora ele seja um benefício gerado pelos relógios. Pode ser que no futuro a tecnologia avance e os erros sejam corrigidos. Em um contrato de 20 anos não podemos proibir a questão”, afirmou, considerando o reconhecimento facial como um “benefício”.

Na audiência, Thiago Ribeiro colocou dois pontos de mudança no edital de licitação: o primeiro é que a posse dos dados gerados pelo reconhecimento facial é de acesso exclusivo à PCR. O segundo é de que, enquanto não houver regulamentação municipal, não se poderá usar o reconhecimento facial.

O representante da Anepe rechaçou a fala do secretário. “A impressão que dá é que a prefeitura vai especular para ver se “vai melhorar”. No caso da população negra, é especular com nossas vidas. Até que não melhore, o que vai acontecer com quem está aí?”, disse José Vitor Pereira.

Para o pesquisador Paulo Faltay, da Rede Latino-americana de estudos em vigilância, tecnologia e sociedade/LAVITS, a fala do secretário sobre o uso “no futuro” foi uma falácia. “Não existe a inevitabilidade da aplicação da tecnologia. Se é uma tecnologia ruim, uma tecnologia racista, não deve ser usada. O que estamos vendo no mundo são cidades banindo essa tecnologia. Qual a modernidade de uma ferramenta que automatiza opressões históricas?”, rebateu, na audiência.

Presente na audiência, o promotor do MPPE Maxwell Vignoli afirmou que deve solicitar uma audiência pública no próprio MPPE dentro do inquérito civil que apura a questão.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org