Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Crédito: Flickr Fundação Joaquim Nabuco
Foi com estranheza, incredulidade e raiva que os seguidores das redes sociais da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) receberam o post do dia 22 de abril que comemorava os 522 anos do “Descobrimento do Brasil”. O texto da publicação, já retirado do ar do instagram da Fundaj, afirmava que “o encontro entre índios e portugueses foi pacífico, amigável e marcado pelo mútuo interesse”. Com quase mil comentários, a grande maioria de críticas, o post era “assinado” como uma série sobre o Bicentenário da Independência, produzida pela Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) do Governo Federal.
A Marco Zero entrou em contato com a assessoria da Fundaj para saber se o post foi retirado pela própria instituição ou pelo Instagram. Ainda não recebemos retorno. O post, com mesma imagem e mesmo texto, continua no perfil da Secom. Por lá, causou bem menos polêmica, com apenas 34 comentários.
Poucos dias antes, no dia 19 de abril, as redes sociais da Fundaj postaram outra homenagem, também produzida pela Secom do Governo Federal, desta vez em referência ao Dia do Exército. O texto dizia que “em nossa história, quando precisamos, o Exército Brasileiro esteve presente estendendo o seu braço forte e sua mão amiga aos necessitados e realizando a sua parte na edificação do país”. Este post teve repercussão menor, com aproximadamente 40 comentários negativos, e permanece no ar.
Desde o governo Temer, cargos de presidência e direção na Fundaj têm sido uma moeda de troca da direita e da extrema direita, colocando à prova as décadas de prestígio, credibilidade e compromisso da instituição com a pesquisa histórica e estudos na área de ciências sociais. Com o Governo Bolsonaro, os ataques à Fundaj, de dentro pra fora, têm se intensificado.
Presidente da Fundaj desde maio de 2019, Antônio Campos, neto de Miguel Arraes e irmão do falecido ex-governador Eduardo Campos, contradisse as bases familiares e é um fervoroso defensor do presidente Jair Bolsonaro. No entanto, em suas redes sociais pessoais, onde costuma compartilhar eventos da Fundaj, não postou os dois recentes posts produzidos pela Secom.
A indignação dos seguidores da Fundaj nas redes sociais foi a mesma dos seus próprios funcionários. Assinada por Coletivo de Pesquisadores da Fundaj, uma carta aberta rebate os argumentos citados no post do dia 22 de abril e pede que a instituição retire a publicação do ar.
“Não é preciso gastar muitas linhas para explicar que é consenso, há décadas, nas análises historiográficas e sócio-antropológicas que, se de fato os portugueses foram recebidos de maneira amistosa pelos indígenas com quem primeiro se encontraram, sua chegada em terras americanas desdobrou-se em inenarrável violência, promovendo seguidos massacres, perseguições, desterritorializações, conversões religiosas forçadas, mortes por epidemias, estupros e outras formas de violência, em um genocídio sem precedentes na história moderna”, diz trecho da carta.
O documento também afirma que a Fundaj “se desprestigia ao reproduzir acriticamente propaganda ideológica, de interesses duvidosos, produzida pela Secom em Brasília, desconsiderando a própria história da Fundação e a expertise de seus pesquisadores para a teoria social”.
Confira a íntegra da carta aberta:
PESQUISADORES DA FUNDAJ MANIFESTAM-SE A RESPEITO DA POSTAGEM COMEMORATIVA DO 22 DE ABRIL NAS REDES OFICIAIS INSTITUIÇÃO
Nós, pesquisadores e pesquisadoras da Fundação Joaquim Nabuco, recebemos com surpresa e indignação o teor da publicação comemorativa feita pela Instituição em suas redes sociais no dia 22 de abril de 2022. A postagem apresenta uma versão deliberadamente deturpada e sem embasamento histórico e sócio-antropológico sobre a chegada dos portugueses nas terras que seriam posteriormente colonizadas e denominadas de Brasil. O texto exalta a relação da esquadra de Cabral com a Ordem de Cristo, sugerindo um caráter civilizatório e missionário aos (nobres) interesses portugueses. Exalta, ainda, que “o encontro entre índios e portugueses foi pacífico, amigável e marcado pelo mútuo interesse”, completando que em decorrência deste evento “a receptividade, a alegria e a boa acolhida ainda são marcas do povo brasileiro”. A chegada dos portugueses deveria, segundo essa versão, ser comemorada acriticamente como um ato de boa fé, progresso e união.
Não é preciso gastar muitas linhas para explicar que é consenso, há décadas, nas análises historiográficas e sócio-antropológicas que, se de fato os portugueses foram recebidos de maneira amistosa pelos indígenas com quem primeiro se encontraram, sua chegada em terras americanas desdobrou-se em inenarrável violência, promovendo seguidos massacres, perseguições, desterritorializações, conversões religiosas forçadas, mortes por epidemias, estupros e outras formas de violência, em um genocídio sem precedentes na história moderna. Também é de amplo conhecimento geral que a expansão colonial europeia sobre as Américas e o restante do mundo, com apoio da Igreja Católica, era guiada por interesses econômicos, geopolíticos e de dominação, culminando, entre outros efeitos, no vergonhoso tráfico de escravizados africanos, no extermínio de diversos povos nativos e no início de uma escalada de devastação ambiental que se acelerou nos séculos seguintes.
Também não é preciso muitas linhas para dizer que a estrutura social colonial segue presente nas desigualdades sociais atuais, e que a miséria, a fome, a violência de classe, de raça e de gênero, a devastação ambiental, além da crescente xenofobia, assolam o presente do Brasil, não sobrando espaço, infelizmente, para a caracterização simplista dos brasileiros como “povo receptivo, alegre e acolhedor”. Neste exato momento, por exemplo, é amplamente divulgado pela imprensa, por lideranças indígenas e por pesquisadores, que as terras Yanomami e Munduruku, na Amazônia brasileira, entre outras, seguem sendo invadidas por garimpeiros, violentando os indígenas, destruindo a floresta e contaminando os rios em busca de ouro. No Mato Grosso do Sul, seguem os assassinatos de lideranças Guarani-Kaiowá que lutam, em posição de extrema vulnerabilidade, por seus territórios.
Também é de amplo conhecimento público o Relatório Figueiredo, documento oficial de 7000 páginas, produzido em 1967 a pedido do Ministro do Interior, relatando matanças, torturas e toda forma de violência praticadas contra povos indígenas pelo Serviço de Proteção ao Índio e por fazendeiros nas décadas de 40, 50 e 60 no Brasil, violências que prosseguiram nas décadas seguintes na tentativa de liberar o território nacional dos povos indígenas e “integrá-los” forçadamente à sociedade nacional. A Constituição Brasileira de 1988 reconhece a injustiça histórica contra os povos indígenas e determina a regularização de seus territórios.
Assim, a ideia de “descobrimento” pacífico e fundador de um Brasil cordial em nada nos ajuda a entender a História brasileira e a produzir um futuro melhor para este Brasil desigual, plural, violento e contraditório em que tentamos viver. Isso sabe bem o público que frequenta e acompanha as diversas atividades culturais, intelectuais e de formação oferecidas pela Fundaj, essa respeitável instituição especializada na pesquisa em ciências humanas. Tanto que na manhã do dia 23/4, um dia depois da publicação da referida postagem no Instagram @fundajoficial, somavam-se 860 comentários críticos, alguns incrédulos, por conhecerem a história e a seriedade da Instituição, outros avisando que estavam deixando de seguir a Fundaj nas redes sociais. Isso demonstra o quanto a Instituição se desprestigia ao reproduzir acriticamente propaganda ideológica, de interesses duvidosos, produzida pela SECOM em Brasília, desconsiderando a própria história da Fundação e a expertise de seus pesquisadores para a teoria social.
Assim, nós, pesquisadores da Fundação Joaquim Nabuco afirmamos que a referida postagem desrespeita a própria Fundação Joaquim Nabuco, sua história, seu acervo e a produção intelectual de seus pesquisadores e pesquisadoras atuais e de todos os grandes intelectuais que já passaram por essa Instituição. A Fundaj pode fazer- e faz- melhor ao produzir material crítico, intelectualmente autônomo e cientificamente embasado sobre temas das ciências humanas. Assim o fazem seus profissionais.
Por fim, vale lembrar que, no Museu do Homem do Nordeste, em sua exposição permanente, encontramos uma imagem de corpo inteiro do Cacique Xicão Xukuru, assassinado em 20 de maio de 1998 no processo de luta territorial do povo Xukuru, em Pernambuco. Por não apurar adequadamente este crime, o Brasil foi condenado em 2018 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a indenizar o Povo Xukuru. Esta imagem de Xicão substituiu, há alguns anos, uma imagem de um índigena pintado por Debret, que lá estava anteriormente, a pedido das lideranças indígenas que naquele período interagiam com o Museu. Sugerimos que fiquemos com essa imagem, ao invés das caravelas brasonadas da Esquadra de Cabral, para pensarmos o dia 22 de abril de 2022.
Coletivo de Pesquisadores da Fundaj
Seja mais que um leitor da Marco Zero…
A Marco Zero acredita que compartilhar informações de qualidade tem o poder de transformar a vida das pessoas. Por isso, produzimos um conteúdo jornalístico de interesse público e comprometido com a defesa dos direitos humanos. Tudo feito de forma independente.
E para manter a nossa independência editorial, não recebemos dinheiro de governos, empresas públicas ou privadas. Por isso, dependemos de você, leitor e leitora, para continuar o nosso trabalho e torná-lo sustentável.
Ao contribuir com a Marco Zero, além de nos ajudar a produzir mais reportagens de qualidade, você estará possibilitando que outras pessoas tenham acesso gratuito ao nosso conteúdo.
Em uma época de tanta desinformação e ataques aos direitos humanos, nunca foi tão importante apoiar o jornalismo independente.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org