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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Na esquina da rua da Palma com a Tobias Barreto há uma pequena e disputada testemunha das mudanças no centro do Recife dos últimos sessenta anos. Apenas pelo olhar, é mais uma das carrocinhas de alimentação que se espalham nas esquinas cada vez mais esvaziadas do chamado vuco-vuco. Mas o cachorro-quente do Amaro é especial: o segredo, dizem, está no molho. Há seis décadas, a carrocinha se mantém no centro. Há 60 anos na mesmíssima esquina.
O comércio foi fundado, claro, por Amaro. Em 1963, Amaro Belarmino de Oliveira começou a vender cachorro-quente no Cais de Santa Rita. Passou pouco tempo e logo se mudou para a entrada de um prédio naquela esquina. Foram 30 anos do lado de dentro e 30 anos (e contando) do lado de fora. “O dono do prédio pediu para ele desocupar, porque ia fazer a partilha dos bens dele”, conta Marcos Kennedy, um dos sete filhos que Amaro criou vendendo cachorro-quente e quem, há 30 anos, mantém o nome do pai como o lanche mais disputado do centro do Recife.
Já às 7h da manhã Marcos, que tem a mesma idade do negócio, está pelo centro. Sai cedo de casa, no Pina, de bicicleta, de segunda a sábado. Só não vai quando chove. Faz a limpeza diária da carrocinha antes de começar a vender, às 8h. Vai até 16h ou até o fim do estoque – o que não é raro de acontecer. Tem dias que vende 200 cachorros-quentes. Usa máscara cirúrgica (“porque lido com alimentos”) e não aceita dinheiro enquanto ainda está servindo o lanche (“para não contaminar”).
Uma alteração que Marcos fez na carrocinha foi um “puxadinho” de madeira para evitar que cocô de pombo caia sobre ele. Acredita que as aves – que transmitem várias doenças para os humanos – contribuíram para a morte do pai em 2007, por doença respiratória. Seu Amaro trabalhou até perto de morrer, aos 79 anos.
Do começo do negócio para cá, a maior mudança foi nos refrescos que acompanham o cachorro-quente. Antes, eram tamarindo, cajá e mangaba. Tamarindo e cajá, seu Marquito, como os clientes antigos o chamam, encontra fácil. Mas a mangaba sumiu do mercado. Pouco antes da pandemia já era difícil achar a fruta, tinha só um fornecedor que ele conhecia. Depois, ficou sem nada. “Era o refresco mais conhecido daqui, o povo era louco por ele. Mas não tem mais a fruta, acho que por conta dos condomínios que estão construindo onde a mangaba cresce”, lamenta.
A decadência que o centro do Recife enfrenta hoje, Marcos credita à explosão do crack. “O mundo era outro. De 20 anos pra cá, talvez mais, o centro mudou muito. O viciado não pensa, ele vê algo e toma à força. Já vi inúmeras violências aqui, mas a gente tem que ficar calado, na da gente. Roubo de corrente sempre acontece. A polícia deveria focar no atravessador: se não tivesse essa figura, o ladrão não ia ter a quem vender o roubo”, diz. Já levaram três bicicletas que ele usa para ir trabalhar.
Além de melhorar a segurança no centro, ele nota que os fios, ao longo dos anos, foram deixando a vista do centro do Recife mais caótica. “É uma poluição. Acho que é algo difícil de ser feito, mas é preciso. O trânsito precisa de educação. Ninguém quer dar a vez, param onde não se deve”, diz. E pede que o centro comercial também seja incluído no turismo recifense, com a Casa da Cultura e o Forte das Cinco Pontas.
Os clientes mais antigos, mesmo que não frequentem o centro com a mesma assiduidade de antes, não abandonam o cachorro-quente. O comerciante Gustavo Rodrigo desde os dois anos de idade vai ao cachorro-quente de Amaro. Conheceu porque um tio era dono de uma loja de autopeças na outra esquina. Hoje, mais de 40 anos depois, segue cliente do cachorro-quente com pão francês, carne moída e gosto de comida caseira. E um tempero de nostalgia. “O centro do Recife era com esses mesmos prédios que estão aqui hoje. Mas o tipo de comércio era outro: na época isso aqui era uma rua só de peças de carros e ferramentas. Tinha muito mais gente vindo aqui, era muito mais seguro. Ou, melhor dizendo, a sensação de segurança era maior, a gente não sabia tanto sobre a violência, porque não havia internet, não se era tão ligado em notícias”, afirma.
A receita do molho foi criada por Amaro. Marcos não cozinha o cachorro-quente. É outro irmão dele, Adeílton, quem faz de madrugada toda a preparação da salsicha, da carne moída e do molho – que tem pimenta do reino como carro-chefe, e, sim, é uma delícia. Os pais de Marcos e Adeilton não tiveram filhas, foram sete filhos homens. “O peixe de coco lá em casa tinha que ser no coco ralado. E a gente ajudava nisso”, conta Marcos, que nasceu e cresceu em Brasília Teimosa, “onde surgiu o primeiro conselho de moradores da América Latina”, exalta.
Ele tem viva na mente a memória da mobilização da população pelo acesso à praia e à moradia. “Era um conselho de muita luta, fazia protestos, era muito politizado. Brasília Teimosa tem muita história. O Iate Clube construía muro para que o povo não tivesse acesso à praia. e a gente ia lá de noite e derrubava. E antes teve o governo, que derrubava as casas que o povo construía. Eu era pequeno, mas meu pai participou desse movimento”, conta.
A tradição familiar na culinária vai seguir quando os irmãos se aposentarem. Mas nem o filho de Marcos, nem o de Adeílton devem levar adiante o cachorro-quente de Amaro. André Luiz, filho de Adeílton, é chef de cozinha, mas na Irlanda, onde trabalha em uma restaurante de comida internacional. “Ele quer pegar o ponto do molho do cachorro-quente do pai, mas ainda não acertou”, se diverte Marcos.
Já o filho único de Marco é juiz federal. Com o dinheiro do cachorro-quente – “e do trabalho da minha esposa, que trabalhava numa confecção, a gente dava um jeito aqui e ali” – Felipe Mota foi estudar no colégio Boa Viagem, “um colégio de rico”. Começou Direito na Universo e terminou na Unicap. Passou em vários concursos, que o pai enumera orgulhoso: Procuradoria Geral do Estado de Pernambuco, Procuradoria do Banco Central e Procurador da República…Há dez anos assumiu como juiz federal em Serra Talhada e agora está em Garanhuns. “Ele não pede para eu parar de trabalhar. Ele sabe que não adianta, eu venho escondido. Ele não quer que eu pedale, mas eu pedalo escondido. Sou viciado em pedalar”, ri.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org