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A dura vida de quem trabalha com artes visuais no Recife

Jeniffer Oliveira / 30/01/2024
Foto colorida de rapaz usando camiseta vermelha com braço tatuado usando spray de tinta em muro pintado com cores fortes (laranja, amarelo, vermelho, principalmente).

Crédito: Andréa Rêgo Barros/PCR

Sobreviver da arte é um desafio enfrentado por diversos artistas. Uma inédita pesquisa qualitativa deu contornos mais precisos do que significa esse desafio para 1.535 trabalhadores do campo das artes visuais que atuam no Recife. Por pesquisa qualitativa, entenda-se a análise e aprofundamento de possíveis cenários sobre determinado assunto com um grupo específico. No caso da pesquisa “Dorso”, realizada pela jornalista Nathália Sonatti, entre 2022 e 2023, participaram 30 profissionais de diversas áreas do setor.

A pesquisa identificou que, apesar do talento e competência, esses fazedores da cultura estão constantemente expostos a múltiplas funções, instabilidade e falta de recursos.O estudo partiu de uma metodologia com diferentes métodos de coletas, como entrevistas com agentes culturais do Recife, debates com profissionais das artes visuais e pesquisa histórica.

Quando questionados sobre como é trabalhar com artes visuais no Recife, as respostas que mais se repetem são frases como “muitos malabarismos e jornadas de trabalho para conseguir pagar as contas”, “muita gente termina adoecida, cansada, sem saúde mental”, “é trabalhar o tempo todo com instabilidade” e “tem que topar fazer de tudo um pouco”.

As respostas expressam a instabilidade da vida profissional dos artistas visuais e de quem trabalha em atividades dessa área, que convivem com a falta de direitos trabalhistas. “A maioria dos profissionais de artes visuais não consegue se aposentar por não trabalhar com carteira assinada; ou se aposenta apenas com um salário mínimo” e “Muitas vezes as pessoas que trabalham como MEI não têm acesso aos equipamentos necessários para realização do trabalho, como computadores e internet” foram outras respostas frequentes.

A inquietação de Nathália Sonatti para analisar as condições de trabalho com as artes visuais surgiu após anos de trabalho com o setor. Muitas questões problemáticas e poucas discussões que poderiam embasar estratégias para a melhoria das atividades, foram as principais motivações para chegar até a pesquisa. “A gente acaba tendo que condensar várias funções em poucos profissionais para poder fazer as coisas acontecerem, por causa dessa sobrecarga e das precarizações que existem no setor”, afirma a pesquisadora.

Longe das políticas públicas

Quando se fala de políticas públicas e recursos direcionados às artes visuais na capital, poucas são as iniciativas governamentais ou legislativas para favorecer o setor. Da década de 1960 até 2013, por exemplo, foram mapeados apenas 35 ações, entre leis, decretos, conferências, nomeações, criação de movimentos e comissões, planos de orçamento e entre outros, disponibilizados no Portal da Legislação Estadual de Pernambuco (Legis).

Se o recorte é feito para os últimos dez anos, mais precisamente entre 2013 e 2023, a pesquisa mostra que “não há disponível para consulta pública nenhum decreto ou lei que faça referência a cultura e artes visuais/plásticas no portal LEGIS”. Todas as informações sobre investimentos do setor neste período foram disponibilizadas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Quando o assunto é investimentos, a pesquisa aponta que para os editais “o olhar das bancas avaliadoras é um olhar burocrático. Muitas vezes, importa mais a formatação do documento enviado do que o conteúdo dos projetos” e “valores muito baixos e que não são reajustados há anos. Há projetos em que se trabalha 12 meses, mas se recebe o equivalente a cinco ou quatro e se continua trabalhando”.

Sobre mercado e instituições os artistas entrevistados responderam que “as instituições não estão preparadas para acolher produções e corpos dissidentes”, “Recife é um eixo econômico artístico fora do eixo econômico principal do país e não tem um mercado relevante de colecionadores de arte”, “ter alguma visibilidade não significa prosperidade financeira” e “apenas trabalhos legitimados por instituições reconhecidas são valorizados pelo mercado”.

Em uma sala fechada de paredes brancas, amplas janelas verticais e piso de cerâmica com figuras geométricas, um grupo de pessoas sentadas formam um plateia em torno de outras quatro pessoas sentadas ao fundo, junto da parede e logo abaixo das janelas.

Evento com artistas plásticos recifenses. Crédito: Divulgação

Assim, o desenrolar dos trabalhos do setor se tornam, além de resistentes, independentes. O estudo revela que “se não se enquadra no cubo branco – a galeria, o museu -, se recorre à rua, às festas, à cena noturna”, “os equipamentos culturais não recebem verba suficiente para manter uma agenda própria. Para realizar ações nesses espaços, é preciso buscar financiamento de outro lugar (muitas vezes do próprio bolso)” e “é preciso correr muito atrás para fazer um nome, fazer muita coisa de graça, pensar em muitos projetos e tentar financiá-los de alguma forma para conseguir fazer o campo girar, fazer as coisas acontecerem”.

“A gente configura trabalhar com a arte como uma estratégia muito grande de insistência, em uma tentativa de ter uma ação que acaba sendo extremamente multifacetada também em função dessa sobrevivência, uma vez que se torna um trabalho que, em boa parte das oportunidades, se encontra precarizado, acaba que as pessoas que trabalham com artes visuais lidam com o esgotamento e uma sobrecarga muito grande do que elas fazem”. Essas são as palavras do curador, educador e pesquisador Guilherme Moraes. Ele é um dos fundadores e atual editor da Propágulo, uma plataforma independente sobre artes visuais em Pernambuco que surgiu como uma revista semestral e agora coexiste com outras produções como livros, podcasts, exposições e outros conteúdos.

Foi constatado que não houve investimento específico para cada linguagem cultural aprovado no orçamento do Legislativo Municipal. A gestão da Prefeitura do Recife destaca que “na programação Municipal destinada às Artes Visuais/Artes Plásticas, normalmente são produzidas exposições de iniciativas da sociedade civil, as quais não envolvem repasse de valores por parte do Poder Público Municipal. Nesses casos ocorrem apenas a cessão do equipamento cultural e tais exposições, desta forma, são realizadas em parceria com os Órgãos Gestores de Cultura do Município”.

Ainda de acordo com as informações via LAI coletadas pela pesquisadora, destaca-se que nos últimos cinco anos, foram realizados investimentos de diferentes fontes, pois o orçamento destinado ao Setor das Artes Visuais/Artes Plásticas tem sido provenientes de parcerias, editais de fomento, patrocínios e do próprio Poder Público Municipal. Foram R$ 413.000,00 pela Lei Aldir Blanc; R$ 927.780,00 pela Prefeitura do Recife e R$ 1.910.599,19, para exposições e outras ações culturais tendo como fontes parcerias com outros agentes sociais.

Atuação coletiva x trabalho individual

A coletividade é um outro ponto destacado por Nathália Sonatti. Para a pesquisadora, diferente da cadeia produtiva de setores como teatro e música, as artes visuais ainda são vistas numa perspectiva muito individual dos artistas, no entanto, existe uma cadeia produtiva envolvida para que o setor funcione.

“Existe essa demanda para conseguir transformar essas articulações do coletivo, da cadeia dos trabalhadores de artes visuais em estratégias para gerar proposições para cobrar o Estado e fazer as coisas acontecerem de formas mais institucionais e ver mudanças efetivas, com investimentos que envolvam todos, seja por editais ou outros incentivos”, conclui.

Entre todas as demandas, os profissionais participantes da pesquisa trazem à luz possíveis soluções para melhor a qualidade do trabalho. Para o setor público, a “construção de políticas públicas que de fato funcionem e que sejam proporcionais ao tamanho da cadeia de artes visuais, garantindo a participação de mais trabalhadores nas discussões e formações sobre a categoria”, além de “democratizar o acesso às artes visuais, aprofundando o contato com a área na educação de crianças e adolescentes e aumentando a oferta de cursos gratuitos para a população”.

Já no setor privado, os artistas afirmaram que “as instituições de artes, ao mesmo tempo que precisam de mais incentivo estatal, também devem atuar voltando esse incentivo à cadeia produtiva, principalmente com a inserção de mais pessoas jovens, negras e LGBTQIA+ nesses espaços”, consequentemente, “precisa perceber a potência – inclusive econômica – de investir em artistas emergentes, na capacitação e no intercâmbio dentro das artes visuais”.

Coletivamente, em uma auto organização, os trabalhadores identificaram que precisam “traçar estratégias para mobilizar e educar a sociedade civil em torno das demandas e potencialidades das artes visuais”, se articulando para “desconstruir a tradição elitista das artes visuais, é preciso uma articulação muito transparente entre os esforços do governo, das instituições privadas e da categoria”.

Trinta artistas visuais participaram da pesquisa qualitativa. Crédito: Andréa Rego Barros/PCR

AUTOR
Foto Jeniffer Oliveira
Jeniffer Oliveira

Jornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo – UNIAESO. Contato: jeniffer@marcozero.org.