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Artigo exclusivo de Romero Maia, especialista em análise de indicadores e processos de tomada de decisão
Crédito: Instagram/Palestine Pixel
por Romero Maia*
É um erro comparar massacres para adjetivá-los e ranqueá-los. Tanto faz se foram perpetrados por um grupo terrorista, por exércitos oficiais, por criminosos civis, por gangues armadas, e até por estruturas estatais inteiras contra nações mais fracas a fim de colonizar territórios. Cada qual tem sua magnitude e detalhes históricos particulares. Por isso é bem mais fácil vir a conhecer a magnitude que as causas. Rapidamente, consegue-se obter os seguintes números, expostos na ordem dos tipos acima:
1. 19 terroristas atacaram o World Trade Center nos EUA e deixaram cerca de 3 mil mortos em poucos minutos;
2. Algumas dezenas de autoridades do partido nazista coordenaram o assassinato indiscriminado 6 milhões de judeus em cerca de 13 anos;
3. Um único militante da direita norueguesa matou 77 pessoas a tiros em poucas horas;
4. 800 mil pessoas foram assassinadas em apenas 100 dias por gangues em guerra civil de Ruanda
5. Mais de 60 milhões de mortos ao longo de cerca de 200 anos da fase crítica das invasões portuguesas e espanholas nos territórios a oeste da Europa.
Nem mesmo se essas quantidades fossem apresentadas em termos relativos ao total da população, ou até se levadas a uma mesma unidade temporal, elas forneceriam algo propositivo. Porque dadas as informações, é preciso entender os pontos de contato, os padrões, para enxergar as causas principais. E uma vez feito isso, de alguma sabedoria na articulação entre essas informações com princípios normativos para apontar saídas. Essa articulação permite identificar fatos e sentimentos que desencadeiam o ímpeto de extermínio. Alguns recorrentes são o ressentimento, a espiral de vingança, o fundamentalismo religioso, a partilha impositiva de territórios e recursos, e a sensação de injustiça devida a eventuais relações de subordinação e desigualdades sociais prolongadas. Ao identificá-los, temos uma chance de construir boas hipóteses de como combatê-los. Dado o massacre que aconteceu no último 7 de outubro, a guerra de reação poderia estar acontecendo de outra maneira?
“É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente” (Voltaire)
Pouca gente sabe, mas os EUA já sediaram campos de treinamento de grupos terroristas. Alguns clandestinos, mas outros com a conivência da CIA durante a Guerra Fria. Havia campos de treinamento também na Bélgica e Reino Unido. Formalmente, eles já foram destruídos pelas autoridades. Mas suponha que tenha restado um deles nos EUA. Faremos o exercício mental de supor um grupo terrorista fictício, alojado na bela península da Flórida, num tempo de predomínio de uma ditadura anticomunista sanguinária e, por isso, recebendo apoio do próprio governo americano (como de fato ocorreu com radicais islâmicos nos anos de 1980).
Vamos imaginar que esse grupo fictício se chama “Magic Kingdom”, e realiza seus treinamentos de tiros e explosivos em áreas do estado com a conivência do grupo político de um governador ultraconservador, que estaria atuando para resgatar os “antigos valores” do Sul dos EUA. Esse grupo planeja um atentado no Brasil para servir de exemplo contra uma pretensa “ameaça comunista” que rondaria a América Latina, aos moldes do atentado ao centro de convenções Riocentro, em 1981.
Desta vez, as bombas explodem. Uma delas não mata sem querer o próprio terrorista. Tudo dá certo. O ataque é bem sucedido e milhares de pessoas sem ligação direta com o fantasma do comunismo latino-americano morrem, outras tantas ficam gravemente feridas com a correria e confusão generalizada num evento lotado. Os terroristas prontamente assumem autoria, e seu grupo central de comando é localizado como vivendo misturado à população civil da Flórida. Muitos dos quais se passam por pessoas comuns, e alguns até prestam serviços ao Walt Disney World onde aliciam crianças tanto para treinamento quanto para uso como escudo humano em esconderijos. A grande potência comunista do momento, a China, logo acena em solidariedade com o Brasil, adiciona contingente e armamentos às suas forças de defesa, e planeja lado a lado uma contraofensiva aos terroristas. A ONU também reconhece o Brasil como nação agredida e inicia protocolos de apoio, requisitando a posição oficial dos EUA sobre os terroristas em seu território. Digamos que os EUA decidem não cooperar da forma esperada no curto prazo para não assumirem a existência de um grupo clandestino tão poderoso em atuação no país. Seria, então, inevitável bombardear a cidade de Orlando, arriscando atingir de alguma forma hospitais, escolas, e fontes de água potável e energia elétrica para a cidade? Ou a nação agredida teria alguma maneira de seguir o preconizado pelo direito internacional humanitário e resguardar proporcionalidade e o bem-estar de milhões de moradores da região?
Essa história é meramente ilustrativa, não tem o intuito de comparar o atentado terrorista sofrido por Israel a nenhum outro. Não sugere qualquer escalonamento na gravidade entre atentados. Todo ato terrorista é inaceitável e toda organização criminosa deve ser caçada. Busca-se apenas o efeito didático de ajudar a pensar em desenlaces alternativos com a mudança de poucas variáveis do enredo e deixando as demais similares. Ou seja, é perfeitamente razoável levar a efeito planos de médio e longo prazos para identificar e localizar cada um dos envolvidos em atentados, mesmo sem contar com apoio das autoridades da localidade em que estão e, gradualmente, eliminá-los até desmantelar a organização. Isso com nenhuma ou pouquíssimas baixas entre inocentes. O padrão da segurança defensiva nas fronteiras brasileiras também estaria protegido de novos ataques, posto que seria reforçado com amplo apoio internacional. A opinião pública também seria um outro ponto chave nesse sentido porque, ao evitar milhares de mortes de moradores de Orlando numa contraofensiva impulsiva, o Brasil não daria margem a relativizações acerca da tragédia. Do contrário, seria intolerável ao senso de justiça ocidental que bombardeios afetassem o Orlando Regional Medical Center, ou a Lake Highland Preparatory School, ou ainda o Walt Disney World onde alguns terroristas passam despercebidos como simples trabalhadores.
Tratados internacionais, como as Convenções de Genebra e seus protocolos decorrentes, existem para balizar essas situações extremas. E, embora alguns países como Irã, Iraque, Afeganistão, Paquistão, EUA e Israel tenham se recusado a endossar alguns protocolos adicionais, as diretrizes gerais das Convenções são imperativas e devem ser seguidas à risca pela comunidade das nações. Civis sem relação comprovada com o ato beligerante, distintivos especiais e lugares nos quais se prestam serviços públicos essenciais não podem ser atacados. Mesmo sob justificativa de estarem sendo usados como abrigos pelo inimigo. A 4ª Convenção foi implacável ao proibir toda e qualquer resposta beligerante que tenha alto risco de matar civis, e isso lastreia todas as resoluções do Conselho de Segurança da ONU e organismos de jurisdição internacional. Esses instrumentos têm força regulatória e preveem sanções a descumprimentos que serão dosadas pelo Tribunal Internacional de Justiça, no caso de países, ou pelo Tribunal Penal Internacional, no caso de réus individuais.
Toda essa complexidade jurídica implica uma maior dificuldade na resposta a um massacre sofrido. Mas antes que se diga que ela “protege bandidos”, é preciso perceber que ela busca evitar que se instale o caos. A resposta a um atentado terrorista não pode matar inocentes porque se assemelha ao mal sofrido. Dito dessa forma parece mais simples. Há quem insista que um grupo vitimizado fica de mãos atadas sem poder agir em legítima defesa. Reiteramos que não é o caso. É exatamente por que precisa ser legítima que toda reação tem que respeitar limites do direito humanitário internacional.
Neste início de séc. XXI, todos os países sabem o que fazer para reagir de forma legítima a um ataque terrorista, embora ninguém jamais tenha dito que é fácil. O mais adequado, por isso, é prevenir. Deve-se ao máximo evitar que sejam lançadas sementes terroristas no território. As famosas ações contraterroristas que reforçam a segurança em pontos de vulnerabilidade a atentados não são suficientes como profilaxia. Ao lado disso, necessita-se combater discursos de ódio em todos os meios através de forte regulação, rastrear e punir disseminadores de fake news, reforçar instituições de justiça e mediação de conflitos, aumentar a escolarização média sem aceitar projetos pedagógicos de baixa qualidade humanística, e melhorar indicadores de bem-estar social e de saúde mental que possuem impacto sobre aqueles fatos e sentimentos impertinentes citados no terceiro parágrafo.
Já a retorsão legítima só se concretiza nos médio e longo prazos, porque as regras internacionais a empurram necessariamente para uma guerra discreta, sem carnificina nem pirotecnia. Essas ações são de responsabilidade precípua, não da infantaria pesada ou de amplos bombardeiros, do setor de inteligência das forças armadas e do serviço secreto estatal. Eles é que devem capitanear todas as redarguidas contra terroristas instalados em países com os quais não se consegue guerrear legitimamente. Do serviço secreto se esperam ações a conta-gotas, mas com extrema precisão, para atuar dentro das condições civilizatórias impostas pela regulação internacional que, como reforço, contém a resolução 1.373 do Conselho de Segurança da ONU que estimula a solidariedade internacional no bloqueio de ativos e estrangulamento financeiro das organizações terroristas. Isto é, as vítimas não estão de mãos atadas no combate ao terrorismo, e é falsa qualquer tese sobre o que chamamos aqui de “inevitabilidade do mal” para justificar uma punição coletiva.
Sempre é possível agir majoritariamente por meio da inteligência. Mas essa ponderação, sabemos, concorre com grande cominação popular por respostas drásticas no curto prazo contra o inimigo comum. Demandas internas que fortalecem e seduzem o grupo que está no poder. Nos EUA, George Bush teve sua popularidade fortalecida na luta contra o terror, e isso foi determinante para sua reeleição. Com suas medidas logo após o 11 de setembro, ele atingiu um dos índices de aprovação mais elevados da história americana, aproximadamente 90%. Transformar tragédias em força política é uma competência básica de todo político que se preze. Passam a liderar uma espécie de cruzada de reparação do dano sofrido, abaixo da qual ficam suspensas pressões pré-existentes sobre malversação da coisa pública, enriquecimento ilícito e longa permanência no poder. O que não invalida a dor das vítimas americanas e a própria necessidade de uma aliança internacional contra o terrorismo.
É inquestinável que o povo judeu foi vítima, mais uma vez, de um massacre incomparável. Mereceu toda a solidariedade internacional que recebeu sem ressalvas. Passados quatro meses da continuidade da forte contraofensiva na Faixa de Gaza, porém, a limpeza do território gera indícios de objetivos militares que ultrapassam a guerra ao terror. Como o próprio primeiro-ministro Benjamin Netanyahu declarou ser “sem limite de tempo”, sua pretensão é transferida para a ocupação do território e seus recursos. Dessa forma, some de vez do horizonte a solução de dois Estados defendida há algum tempo por Isaac Herzog, presidente de Israel. Até o ano passado, uma invasão deliberada não teria qualquer respaldo internacional como passou a receber após a sórdida ação terrorista do partido Hamas que, como complicador, literalmente governa a população. Mas vale lembrar que Faixa de Gaza é, além de celeiro de terroristas antissemitas que precisam ser, sim, presos ou mortos, uma região extremamente fértil, com bom nível de água subterrânea, e com cerca de 40 km de litoral disponível para uma lucrativa economia pesqueira e entrada de mercadorias, além de oferecer consideráveis reservas de petróleo e gás natural. Enfim, a Faixa de Gaza é de fato uma região extremamente importante, mas… não é a Flórida.
*Gestor de pesquisas, especialista em análise de indicadores e processos de tomada de decisão, mestre em Psicologia Cognitiva pela UFPE. E-mail: romeromaia@gmail.com
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