Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Nesta foto, vê-se um cacto em um terreno árido sob um céu parcialmente nublado. O cacto é proeminente no primeiro plano, com espinhos visíveis e várias hastes que se estendem para cima. Ele está localizado em um terreno árido, coberto de pequenas pedras e cascalho, indicando um ambiente desértico. A luz solar incide sobre o cacto, criando sombras visíveis e destacando os detalhes do cenário. O solo é seco e pouco vegetado, com outras plantas esparsas e arbustos secos ao fundo. Em resumo, a imagem retrata um cenário típico de um ambiente desértico, com um cacto solitário resistindo às condições adversas.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Seridó desmatado

No sertão RN, família de agricultores deixou de desmatar, mas cerâmicas e queijeiras continuam queimando a caatinga

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Pouco antes do início da COP-3 da Desertificação realizada no Recife, um jornal pernambucano publicou a fotografia do agricultor Francisco das Chagas Azevedo ao lado de seu filho Flávio, de quatro anos, levando uma carga de lenha recém-cortada em uma pequena carroça puxada por um jumento. A imagem ilustrava o impacto do desmatamento e compunha uma série de reportagens, publicadas em julho de 1999, sobre o avanço da desertificação em várias porções do Nordeste brasileiro, assinada por Inácio França, um dos autores desta série especial, e pelo repórter fotográfico Alexandre Gondim.

Aos 71 anos, Francisco ainda guarda a página do jornal em que aparece como exemplo de agricultor que desmatava a caatinga em um dos territórios mais ameaçados pela desertificação. Desde então, muita coisa mudou, a começar por ele mesmo.

Recorte de jornal com foto de um homem adulto com boné azul e uma criança de cabelos escuros e escorridos em uma carroça puxada por um burro, carregando madeira. A cena ocorre ao ar livre, com vegetação visível ao fundo e o chão de terra. As faces das pessoas não estão muito visíveis. Parece ser uma cena rural. Sob a foto há uma frase da legenda do jornal onde se lê que Miguelinho só consegue madeira a três quilômetros de sua casa.
Crédito: Reprodução Diário de Pernambuco

“Minha cabeça mudou muito. Entendi que, quanto mais cortava os pés de jurema, mais desmatava, e deixava tudo pior. Então, decidi deixar um legado para meus filhos e passei a replantar”, revela. Sua propriedade de 18 hectares na zona rural de São José do Seridó produz sorgo, feijão e milho, mas toda a área não cultivada está coberta por uma densa mata de caatinga plantada por ele e seus filhos, incluindo Flávio, aquele da foto, que hoje é técnico em manutenção de máquinas têxteis.

Conhecido pelos vizinhos e colegas agricultores pelo apelido Miguelinho, ele conta que os filhos e filhas foram decisivos no processo que transformou completamente sua maneira de se relacionar com a natureza. “Os meninos aprendiam na escola na cidade e não queriam que eu estragasse mais nada. Fui aprendendo com eles”, explica.

Quando foi fotografado aos 47 anos, Francisco estava a três quilômetros de casa. “Teve vez que precisei andar seis quilômetros com a carroça pra cortar lenha. Quando isso aconteceu, entendi que nosso sítio estava ficando no meio de um deserto”, recorda.

Enquanto planejava o replantio das espécies nativas, ele e a famílias costumavam juntar material orgânico encontrado nas veredas – folhas secas, galhos, troncos de árvores mortas e até carcaças de bichos – e preenchiam as voçorocas, fendas e crateras formadas pela erosão. Isso ajudava a conter a degradação do solo e a recuperá-lo.

A melhoria das condições de vida no campo, principalmente na primeira década do século XXI, permitiram que a família substituísse a lenha pelo gás de cozinha na preparação dos alimentos: “agora a gente só usa o fogão de lenha pra fazer um feijãozinho diferente e, mesmo assim, só usa galhos que já estão caídos”.

Foto de Francisco Azevedo e seu filho Flávio, parados próximos um do outro em meio a árvores despidas de folhagem. Francisco - à esquerda - veste calça cáqui, camisa laranja com listas horizontais marrons e boné verde. Flávio, à direita, é um jovem de cabelos e barba preta, usando camiseta branca e calça jeans. A cena captura um momento de conexão em um ambiente natural e sereno.

Flávio ajudou o pai, Francisco "Miguelinho", a lidar com a caatinga de outra forma

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Às aulas de educação ambiental dos filhos na escola e às políticas dos dois primeiros governos Lula, é preciso acrescentar a própria trajetória de Francisco depois daquele longínquo 1999. “Eu comecei a participar das discussões sobre os direitos dos agricultores à terra. E quando se fala de direito, também se fala nos deveres com a terra”, explica, sem tirar da cabeça o boné da Fetarn, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura, Agricultores e Agricultoras Familiares do Rio Grande do Norte. Hoje, “Miguelinho” preside a Associação dos Assentados do Seridó.

A transformação pela qual o agricultor e sua família passaram, individualmente, todavia, não é a regra entre os 310 mil habitantes dos 28 municípios que ocupam os 9,3 mil Km2 do Seridó potiguar.

Vocação para deserto

Quando se fala em avanço da desertificação, o doutor em geoprocessamento pela Universidade Politécnica de Madri, Iêdo Bezerra Sá, pesquisador sênior da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), faz uma série de ressalvas. Ele considera que não se pode aplicar esse raciocínio a áreas do semiárido “com solos muito superficiais, sem profundidade, e que estão ali há milhares de anos, incapazes de fixar uma vegetação mais robusta”.

Por isso, Bezerra Sá não costuma usar a expressão “solos degradados” quando se refere a tais áreas. “Essas terras podem até ter outros usos, mas não se prestam para a agricultura, por exemplo”, adverte.

Seria esse o caso do Seridó?

<+>

O Seridó é uma região dos sertões do Rio Grande do Norte e da Paraíba composta por 54 municípios, dos quais 28 são potiguares e 26 paraibanos. De um total de 9.374 Kmdo Seridó potiguar, uma área de 2,8 mil Km2 da região foi considerada pela Unesco como um geoparque por ser um território com características físicas e geológicas de relevância mundial.

Natural da região, o doutor em Geografia e professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), Manoel Cirício Pereira Neto estuda os processos de desertificação no Seridó potiguar desde que era estudante da graduação na UFRN. No doutorado, sua tese foi exatamente sobre aquilo que chama de “predisposição para a desertificação” da região. Ele concorda, ao menos em parte, com o pesquisador da Embrapa.

“No Seridó convivem três elementos que caracterizam a predisposição para a desertificação”, explica o professor. Segundo eles, o primeiro aspecto é “a aridez do clima, mais intensa do que no restante do semiárido porque os ventos úmidos que vem do oceano são retidos na Serra da Borborema”. O relevo é outro elemento a ser levado em conta: “a declividade na região, com inúmeras serras, faz com que, quando chove, a força das águas arrastem um maior volume de sedimentos”.

O “carreamento” do solo, ou seja, o arrasto de camadas de solo, torna mais visível o terceiro fator, que é a presença dos solos rasos, pouco desenvolvidos, em que a rocha está exposta ou logo abaixo da superfície. Em solos assim, a vegetação da caatinga sofre com o nanismo, as plantas são diminutas porque não têm como crescer.

A partir daqui, as análises de Cirício começam a se afastar do entendimento do pesquisador do Embrapa. Para o professor, os fatores que tornam a região onde vive tão susceptível à desertificação são potencializados pela ação humana, principalmente pelo desmatamento para uso de madeira nos fornos de lenha das cerâmicas seridoenses e pastoreio.

Cerâmicas e queijeiras consomem a caatinga

Para dar dimensão do impacto do uso da madeira das árvores da caatinga nos fornos a lenha, o professor Manoel Cirício usa como referência um estudo da Agência de Desenvolvimento Sustentável do Seridó (Adese) sobre uso da lenha nas atividades agroindustriais da região, financiado por uma organização não-governamental alemã. Esse levantamento identificou 82 cerâmicas no território, das quais 54 usavam exclusivamente a lenha de desmatamento para produzir telhas e tijolos, e 14 olarias artesanais de pequeno porte dotadas de fornos a lenha. Além disso, havia 314 queijeiras, entre elas 162 que produziam queijo coalho usando apenas lenha para cozinhar o leite.

Em um cálculo conservador, o estudo aponta que uma cerâmica que utiliza exclusivamente a lenha como combustível queima, em média, 75 m3 por semana. O que daria, pelo menos, 210 mil m3 de madeira – ou 112 mil toneladas – queimados anualmente por 54 empresas. Isso sem contar as outras 28 cerâmicas que usam a lenha combinada com outros combustíveis, como o pó de madeira, casca de coco e bagaço de cana. A conta também não incluiu as pequenas olarias manuais e as queijeiras, além de outras atividades como carvoarias.

A destruição atinge, principalmente, árvores nativas da caatinga como jurema-preta, catingueira, pereiro e até frutíferas, a exemplo do cajueiro. A algaroba e o aveloz são as espécies exóticas mais convertidas em lenha no Seridó.

O desmatamento, junto com intervalos cada vez menores entre uma seca e outra, fazem com que as clareiras – antes esparsas e reduzidas – se tornem maiores e permanentes, onde até o capim deixa de crescer. “A desertificação é um fenômeno silencioso, que vem aos poucos, mas no Seridó se tornou algo visível. Há pouco tempo, o verde dos períodos das chuvas encobria ocultava as clareiras. Hoje, há áreas vastas sem plantas cujas folhas brotam depois de cada chuva”, explica o professor Manoel Cirício.

Francisco das Chagas, o Miguelinho, sabe que para impedir que o Seridó se torne um deserto – como está acontecendo em Gilbués, no Piauí, e na zona árida no norte da Bahia – será preciso mais do que seu esforço e da sua família. “Mas eu posso dar o exemplo. Plantei juremas aqui que já estão com 12 anos de idade. Se um dia eu precisar tirar alguma coisa para plantar uma lavoura nova, já sei como fazer: vou deixar duas faixas de mata com 30 metros em cada lado da plantação”, afirma, convicto que os resultados de sua propriedade podem ser mais convincentes do que as palavras nas reuniões com outros trabalhadores rurais.

AUTORES
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.

Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.