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O pré-candidato a prefeito de Pesqueira, no Agreste de Pernambuco, Delegado Rossine (Podemos) usou a mídia local e as redes sociais para vazar informações sigilosas sobre um caso de violência sexual contra uma criança numa escola indígena. O delegado aposentado — liderança política da região, ex-vereador e ex-prefeito de Lajedo por dois mandatos consecutivos — está sendo acusado por representantes da etnia xukuru de fazer uso político do caso para atacar o Cacique Marcos (Republicanos), que também disputará a prefeitura da cidade.
O vazamento das informações acontece durante o Maio Laranja, mês de combate ao abuso e à exploração sexual infantil no Brasil. Por conta da morosidade das investigações, o episódio de estupro ainda não teve um desfecho e ninguém foi punido.
Marcos e Rossine, que também se declara indígena, são inimigos políticos. O delegado, que concorreu em 2022 pelo Solidariedade, foi o candidato a deputado estadual mais votado pelos pesqueirenses, com 6.161 votos da cidade. Ao todo, obteve 31.280 votos, ficando com a suplência do seu partido.
No último dia 3, durante o programa semanal Café com Delegado, transmitido pela Rádio Urubá FM e pela TV Pesqueira, no Youtube, e reproduzido no Instagram, Rossine, que é diretor de patrimônio da Associação dos Delegados de Polícia de Pernambuco (Adeppe), deu detalhes do caso da criança dizendo ter tido acesso ao relatório do Conselho Tutelar da cidade, documento que deveria, por lei, estar sob sigilo. “Eu tenho o relatório do Conselho Tutelar, não está comigo agora”, diz o pré-candidato logo no início da fala.
Na sequência, ele detalha o gênero e a idade da vítima, quando o fato aconteceu e em que escola, a que aldeia a unidade de ensino pertence (o território xukuru tem 24 aldeias), além de citar o cargo de um possível acusado e o paradeiro da criança e dos pais. Alguns dias depois, num segundo vídeo publicado nas redes sobre o mesmo assunto, o político atribui ao acusado um outro cargo dentro da escola. O delegado insinua que o cacique é conivente e está tentando abafar o crime.
Marcos Xukuru venceu nas urnas as eleições municipais em 2020, com 51% dos votos. Mas, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o pleito foi anulado e ele não pôde assumir, por ter sido enquadrado pela Lei da Ficha Limpa. Em outubro do ano passado, conforme noticiou a Marco Zero, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que o cacique, perseguido, foi vítima de erro do judiciário. Ele foi condenado em 2015 a dez anos e quatro meses de prisão por crime contra o patrimônio privado dois anos antes. Com a anulação da condenação e absolvição, Marcos voltou a ter direitos políticos e agora vai se candidatar novamente. Relembre aqui a história completa.
Em eleição suplementar em 2022, Bal de Mimoso (Republicanos), interino que presidia a Câmara Municipal e foi apoiado pelo cacique, elegeu-se prefeito de Pesqueira, com 65,15% dos votos. Seu vice é Guilherme Araújo, também xukuru e advogado responsável pela defesa de Marcos. Guilherme está cotado para compor a vice de Marcos nestas eleições.
Em entrevista à MZ por telefone, na semana passada, o Delegado Rossine mudou a versão. Disse não ter tido acesso ao relatório do Conselho Tutelar e que sabe das informações porque a cidade inteira conhece o caso, que também teria sido citado, há cerca de duas semanas, segundo ele, na Câmara de Pesqueira por um aliado político seu, o vereador Mateus Leite (PSDB). “O vereador falou cobrando investigação, eu fui lá e reforcei a cobrança para saber que providências estão sendo tomadas”, alegou.
Mateus, no entanto, negou ter falado do assunto à tribuna e citou que, na verdade, a cobrança que fez foi sobre um caso de bullying no ambiente escolar.
“Dizem que até hoje o acusado continua trabalhando na mesma escola. Quero saber quais são as providências que o cacique tomou e o que aconteceu com a criança, se virou processo ou se abafaram o caso”, justifica Rossine. “Querem criar uma cortina de fumaça sobre esse caso gravíssimo que aconteceu numa escola do município”, argumenta. Sobre a acusação de que estaria vazando informações sigilosas de uma pessoa menor de idade para fins políticos, ele define como “ridícula a alegação”. “Veja que inversão de valores, em vez de se preocuparem em punir quem praticou um crime terrível desse”. Na visão dele, “isso não é tirar proveito político, é querer que o crime contra uma criança não fique impune”.
As falas do Delegado Rossine no início deste mês levaram o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comdeca) de Pesqueira a oficiar a Procuradoria Municipal solicitando abertura de sindicância para apuração do vazamento de informações sigilosas do Conselho Tutelar da cidade. O Ministério Público também foi oficiado para apurar os fatos. A entidade ressaltou, em nota, que tratam-se de violações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de resoluções do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e da Constituição Federal.
À reportagem, o MPPE informou que “a 2ª Promotoria de Justiça de Pesqueira recebeu o ofício do Comdeca informando sobre as publicações e instaurou uma Notícia de Fato, expedindo, em seguida, ofícios solicitando maiores informações”. “Reforçamos que, por se tratar de um procedimento sigiloso que envolve o melhor interesse da criança e do adolescente, não podemos detalhar o conteúdo do procedimento”, frisou a nota.
“Estamos à disposição enquanto conselho para contribuir no que for preciso”, disse a presidente do Comdeca, Verônica Oliveira Simões, reforçando a gravidade do vazamento. “Uma pessoa vir a público falar sobre isso (sobre o caso) deixa a situação ainda pior”, acrescentou, citando as legislações que protegem pessoas menores de idade.
Pesqueira tem cinco conselheiros tutelares. Quatro deles tomaram posse em janeiro deste ano. A reportagem não conseguiu entrevistar a coordenadora dos conselheiros, Carmen Lúcia de Oliveira.
A advogada do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec) Juliana Accioly reforça a seriedade do problema e afirma que o que está acontecendo em Pesqueira evidencia uma violação de sigilo — que pode ter sido no âmbito do Conselho Tutelar, da polícia ou do próprio Judiciário — e também da Lei de Proteção de Dados. A Marco Zero não conseguiu confirmar se a ação penal já está em curso. Juliana explicou que cabe ao Ministério Público investigar para saber como e em que momento esse relatório do Conselho Tutelar teria ido parar nas mãos de uma pessoa que não tem nada a ver com o caso.
“O ECA protege, além da intimidade e da vida privada de crianças e adolescentes, o desenvolvimento dessa criança e desse adolescente”, coloca. “Estamos falando da necessidade de uma proteção integral, em todas as esferas, que precisam garantir a integridade física, psíquica e moral dessa criança”, detalha. O sigilo, portanto, explica Juliana, não tem a função de proteger o réu e servir a uma possível impunidade, mas, sim, proteger a vítima.
O Conselho de Professores Indígenas Xukuru do Ororubá (Copixo), por sua vez, afirma ter cumprido todo o protocolo para casos de violência e situações adversas no território, levando o caso ao Conselho de Lideranças Indígenas Xukuru do Ororubá, do próprio Copixo, das demais instâncias de organização sociopolítica do povo e também às autoridades competentes, prestando todas as informações, os esclarecimentos e os dados solicitados durante a investigação. Além disso, o Copixo diz ter se colocado à disposição da família, tornando o Núcleo Ampliado de Saúde Indígena (Nasi) também ciente para o acompanhamento necessário, como, por exemplo, em assistência social e atendimentos psicológicos. O conselho repassou que também disponibilizou transporte para os tratamentos necessários e para o deslocamento da família aos departamentos de polícia.
O Copixo foi criado em 1997 com o objetivo de garantir a Política de Educação Específica, Diferenciada e Intercultural no Território Indígena Xukuru do Ororubá. É uma organização que pensa e gerencia a política da educação no território, com funções consultiva, deliberativa e normativa.
“Além disso, a escola instalou câmeras de segurança, reorganizou o funcionamento interno dos banheiros, visando reforçar a segurança dos estudantes durante o período de aulas. No mais, sempre foi colocado à disposição de todas as instâncias de Justiça as informações e documentos que se façam necessários para a elucidação do caso, como encaminhar quadro funcional da escola, colaborou para o acesso de policiais às dependências da mesma, encaminhamento de funcionários para prestarem depoimentos, dentre outras medidas, desde o acontecimento ao presente momento. Destacamos que o caso citado, por envolver um menor de idade, corre em segredo de Justiça, fato esse que foi respeitado por todos os profissionais que tiveram ciência e contato com o caso”, traz ainda a nota.
“Até então, o Copixo – Conselho de Professores Indígenas Xukuru do Ororubá – não recebeu nenhuma informação acerca do desfecho do caso, por parte da polícia, do Ministério Público ou do Poder Judiciário. Entendemos a importância da efetividade da Justiça em casos como esse e seguiremos cobrando das autoridades as respostas devidas”, finaliza o texto.
O Copixo não informou se a pessoa suspeita de cometer o crime continua trabalhando normalmente ou foi afastada das funções.
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