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O edital para financiar comunidades terapêuticas (CTs) com dinheiro público “pode abrir um fato sem precedentes na história das políticas públicas” em Pernambuco. A iniciativa não está sendo construída com a devida transparência, fere a legislação e afronta resoluções recentes dos conselhos nacionais de Saúde e de Assistência Social. Essas são algumas das considerações da nota técnica publicada nesta terça-feira (9) pelo Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas (Cepad-PE). Conforme a Marco Zero mostrou, em matéria publicada na segunda (8), o governo Raquel Lyra (PSDB), em busca de apoio de políticos evangélicos, planeja lançar, nas próximas semanas, um edital que favorece as CTs, entidades privadas que, em sua maioria, pertencem a políticos evangélicos.
Representantes do Cepad-PE, assim como servidores estaduais em cargos de gerência e gestão, foram pegos de surpresa com o anúncio. Nas últimas reuniões do conselho, a Secretaria Executiva de Política sobre Drogas (Sepod) apresentou o planejamento das ações em curso, mas nada disse sobre o edital de financiamento às comunidades terapêuticas. A novidade pode levar Pernambuco a, pela primeira vez, financiar instituições que usam metodologias sem evidências científicas e que não integram a Rede de Atenção Psicossocial nem a Rede de Assistência Social para cuidar de pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de álcool e outras drogas. Os recursos serão oriundos do orçamento da Secretaria de Assistência Social, Combate à Fome e Política sobre Drogas.
Raquel segue a mesma linha do prefeito do Recife e seu maior adversário político, João Campos (PSB). Em abril deste ano, ele anunciou uma nova rodada de contratação de vagas para o acolhimento de pessoas maiores de idade em uso abusivo de álcool e outras drogas, através do programa Acolhe Vida Recife. Apesar do nome, a prefeitura poderá financiar com R$ 2,7 milhões entidades privadas ou religiosas localizadas a até 205 quilômetros da capital.
Em maio, o Governo do Estado tomou conhecimento do Relatório Parcial de Inspeções realizados pelo Cepad-PE e que tem dados alarmantes. O levantamento apontou que, de um total de 68 relatórios de inspeção e fiscalização, em pelo menos 22 entidades privadas de albergamento, foram encontrados problemas graves, tais como: localização de difícil acesso; internações compulsórias (proibidas para esse tipo de estabelecimento); ausência de projetos pedagógico, social e terapêutico; compulsoriedade religiosa; pouca estrutura interna e externa para atendimento; ausência de equipe psicossocial; superlotação; acolhimento de crianças, adultos e idosos no mesmo ambiente; isolamento dos usuários dos familiares e mundo externo; irregularidades sanitárias; violações de direitos humanos; castigos físicos; contenção química; ausência de corpo profissional e técnico; ausência de intervenções terapêuticas pautadas em Projeto Terapêutico Singular; presença de quartos de castigo; hipermedicalização dos usuários; ausência de garantia a identidade religiosa ou sexual dos acolhidos; e trabalhos forçados.
Sob a justificativa da urgência do cuidado, as CTs vêm ganhando força e financiamento público como modelo de tratamento. Esse mercado muitas vezes é orquestrado com famílias de políticos evangélicos fundamentalistas, como é o caso do deputado estadual pastor Cleiton Collins e sua esposa, a deputada federal em exercício missionária Michele Collins (vereadora licenciada), que operam a Saravida, e o casal Clarissa Tércio, deputada federal licenciada para concorrer à Prefeitura de Jaboatão, e pastor Júnior Tércio, deputado estadual, donos da Comunidade Terapêutica Novas de Paz.
Através da nota, o Cepad-PE mostra-se bastante preocupado com os caminhos tomados pelo Governo de Pernambuco, uma vez que, explica o conselho, esses locais — que muitas vezes se apresentam como clínicas, hospitais ou casas de recuperação e acolhimento — vão na contramão do que estabelece a Reforma Psiquiátrica brasileira, instituída por lei em 2001, e os avanços promovidos pela luta antimanicomial na garantia dos direitos das pessoas com sofrimento mental.
Além disso, não existe, por ora, monitoramento ou fiscalização dessas entidades privadas. Essas instituições deveriam, por lei, fornecer informações anualmente ao conselho, o que não acontece. O Cepad-PE, portanto, questiona ainda o compromisso dessas entidades privadas na transparência de suas atividades e a responsabilidade do repasse de verba pública para sem o diálogo.
O conselho é enfático ao denunciar a gestão Raquel: “A promessa deste edital ressalta a falta de transparência por parte da gestão da Sepod, pela grave exclusão do Cepad no processo de elaboração do projeto, uma vez que a alocação de recursos públicos para a implantação e implementação de ações e serviços referentes à política de drogas deve ser feita com base em uma análise criteriosa e embasada em evidências, especialmente no contexto das políticas públicas sobre drogas que apresentam recursos limitados”. O conselho considera “ultrajante” a promessa de financiamento, levando em consideração que muitos dos serviços prometidos e pactuados para a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) nunca saíram do papel.
O Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas destaca ainda que o edital que o Governo de Pernambuco pretende lançar afronta duas importantes resoluções recentes a nível federal. Umas delas é a Resolução nº 739, de 22 de fevereiro de 2024, do Conselho Nacional de Saúde, que enfatiza a necessidade da retomada dos investimentos na rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos, com iniciativas de cuidado de base comunitária e territorial juntamente com a abolição de qualquer forma de fortalecimento e manutenção do serviço com uma lógica manicomial, inclusive com o fechamento e a suspensão de financiamento de comunidades terapêuticas.
A outra é a Resolução nº 151, de 23 de abril de 2024, do Conselho Nacional de Assistência Social, que não reconhece as CTs como entidades e organizações de assistência social e defende sua não vinculação ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Nesta segunda (8), a Secretaria Executiva de Política sobre Drogas respondeu aos questionamentos da reportagem enfatizando a ampliação do Atitude (programa estadual de atenção integral aos usuários de drogas e seus familiares) e que o edital para o cofinanciamento de vagas em unidades de acolhimento que funcionem de acordo com as normativas técnicas e legais está sendo elaborado para ampliar as possibilidades de cuidado especialmente em resposta aos pedidos dos municípios.
A Secretaria de Assistência Social, Combate à Fome e Políticas sobre Drogas tem concentrado esforços desde 2023 para fortalecer os serviços estaduais voltados ao cuidado de pessoas que fazem uso de drogas. Como por exemplo, a revisão metodológica e ampliação da atuação do Programa Atitude, agora com um investimento anual de R$ 25 milhões.
Ainda sobre a atuação da Secretaria Executiva de Políticas sobre Drogas (Sepod), em reunião ordinária do Conselho Estadual de Política sobre Drogas (Cepad), realizada em maio deste ano, foi apresentado o mapa estratégico da executiva, que prevê o apoio a instituições que trabalham com pessoas que fazem uso de drogas em diversas frentes. O edital para o cofinanciamento de vagas em unidades de acolhimento para pessoas com transtornos decorrentes do uso abusivo de substâncias psicoativas, em regime transitório, de caráter exclusivamente voluntário e que funcionem de acordo com as normativas técnicas e legais, está sendo elaborado para ampliar as possibilidades de cuidado especialmente em resposta aos pedidos dos municípios.
O anúncio oficial sobre essa iniciativa será feito após o término dos trâmites burocráticos, detalhando os procedimentos ao Cepad e à sociedade em geral. Este compromisso do governo visa assegurar cuidado equilibrado e abrangente, qualificando e monitorando os serviços para garantir dignidade e respeito aos direitos humanos e sociais.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com