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Igreja, rádio e comunidade terapêutica: o fundamentalismo religioso por trás do casal Tércio

Raíssa Ebrahim / 06/10/2022

Crédito: Instagram

Eles foram o casal “cloroquiner” da política pernambucana durante a pandemia de covid-19. Negacionistas, apoiadores da pauta armamentista, lideranças evangélicas fundamentalistas, donos de rádio e comunidade terapêutica, o Pastor Júnior Tércio (PP) e sua esposa, Clarissa Tércio (PP), são o retrato do conservadorismo que teve ótimos resultados nas urnas com um discurso e uma estrutura que mesclam mídia, política e religião em nome de “Deus, da pátria e da família”.

Júnior é vereador do Recife e foi o deputado estadual mais votado de Pernambuco nestas eleições, com 183.735 votos; ela, deputada estadual, foi a segunda do estado a mais receber votos para a Câmara Federal (240.511), numa campanha de R$ 2,7 milhões. Ela só perdeu para André Ferreira (PL), outro evangélico, irmão do prefeito de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife (RMR), Anderson Ferreira (PL), que ficou em terceiro lugar na disputa pelo Governo do Estado. 

Juntos, Clarissa e Júnior somam mais de 1,6 milhão de seguidores no Instagram, numa estratégia de perfis de estética bolsonarista que se retroalimentam. Propagadores de fake news, declaradamente defensores do discurso falacioso da “ideologia de gênero”, contra o aborto e a legalização das drogas, eles compõem uma das mais fortes representações de Bolsonaro em Pernambuco. Têm trânsito junto ao presidente em Brasília e são presença assídua nas motociatas bolsonaristas locais.

Clarissa comandou um grupo de parlamentares e fundamentalistas evangélicos que, em 2020, atacaram um hospital público para tentar impedir o procedimento de aborto legal em uma criança de 10 anos. O grupo gritava “assassina” ao se referir à menina que veio do Espírito Santo, onde foi estuprada pelo tio, para realizar a interrupção da gravidez em Pernambuco, no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), centro de referência nesse tipo de atendimento.

Júnior e Clarissa são genro e filha do coronel aposentado e pastor Francisco Tércio, presidente da Assembleia de Deus Ministério Novas de Paz, que começou suas atividades em 1995 em Jaboatão.

Com presença em campos missionários na Venezuela e Bolívia, a sede da Novas de Paz, em Jardim Piedade, conta com pontos de apoio, igrejas e congregações espalhados pela capital e por algumas cidades da região metropolitana, como São Lourenço da Mata, Camaragibe, Limoeiro, Carpina, Paudalho e Feira Nova. No Recife, o principal endereço é a avenida Cruz Cabugá, onde se concentra o maior número de igrejas evangélicas da cidade.

Na foto, o casal Tércio com o coronel aposentado e pastor Francisco Tércio. crédito: Instagram/Clarissa Tércio

A família também comanda a emissora de rádio Novas de Paz (88,1 FM) há mais de 20 anos, líder de audiência na RMR e também transmitida pelo Facebook e Youtube. Com programação 24 horas, a rádio funciona como o canal midiático da igreja e, por extensão, do casal Tércio.

Eles também estão à frente da comunidade terapêutica Casa de Recuperação Novas de Paz, que existe há 12 anos com a missão de “salvar” dependentes químicos através da disciplina militar e da religião. Com serviço gratuito, o local atende apenas homens.

No ano passado, o casal posou armado, num clube de tiro, dias antes de entrevistar Bolsonaro na Novas de Paz. A foto foi publicada no Instagram de Clarissa. Na legenda, constava: “Juntos enfrentaremos todas as guerras, seja no mundo espiritual ou material!”.

Na avaliação do cientista político e doutorando em ciência política na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Antônio Torres, o fato de os Tércio estarem fortemente ligados a Bolsonaro acabou trazendo dividendos políticos ao casal. “Inclusive outras candidaturas evangélicas não tiveram a mesma quantidade de votos que eles tiveram”, comenta. Além da igreja e da mídia, existe também, diz o especialista, essa ligação ideológica que atrai o eleitorado.

Clarissa Tércio: antifeminista e submissa

Com mais de um milhão de seguidores no Instagram, Clarissa, 37 anos, é acompanhada por milhares de mulheres que sintonizam a Novas de Paz para ouvir suas pregações e orar junto com ela. Defendendo que, para um casamento ser pleno, a mulher deve ser submissa, ela dá conselhos sobre relacionamento, sexo e amizade. Em 2018, estreante na política, ainda no antigo partido, o PSC, ela foi a terceira mulher mais votada do estado (50.789 votos).

Nesta segunda-feira (3), Clarissa já estava de volta às lives matinais de pregação, após três meses impedida por causa da legislação eleitoral. A rádio agora está se organizando para reinclui-la oficialmente na programação.

Uma das inspirações de Clarissa, mãe de duas filhas, é a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Bolsonaro, Damares Alves, eleita senadora do Distrito Federal pelo Republicanos. A deputada acredita que o feminismo é um “movimento radical”, em que mulheres querem viver uma “guerra dos sexos”.

Apesar de acreditar que homens e mulheres têm direitos iguais e foram criados por Deus com o mesmo valor, seus papéis são diferentes e complementares. Essas foram algumas das declarações dadas por Clarissa para o especial “O Reino Sagrado da Desinformação”, publicado em 2019 pelo site Gênero e Número em parceria com a Marco Zero.

Vice-liderança da oposição e membro da Comissão de Cidadania, Direitos Humanos e Participação Popular da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), ela travou uma guerra para tentar impedir que o mandato coletivo das Juntas (Psol) assumisse, no início da legislatura, a presidência da comissão, numa evidente disputa ideológica. Não conseguiu.

Na Alepe, costuma pautar questões ligadas ao conservadorismo, às crianças, à família, à saúde pública e aos direitos das Pessoas com Deficiência. Em maio, Clarissa foi acusada de entrar numa escola particular sem autorização, no bairro de Jardim São Paulo, zona oeste do Recife, porque uma professora de filosofia falou sobre Hegel em sala de aula.

Júnior Tércio: “Uma mulher doce, que raspa o suvaco e as pernas”

Formado em contabilidade, o pastor Júnior Tércio, 36 anos, se elegeu vereador do Recife, em 2020, pelo Podemos, seu antigo partido. Atualmente ele é membro da Bancada Cristã e titular da Comissão de Acessibilidade e Mobilidade Urbana da Casa. Foi o terceiro mais votado na época, com 12.207 votos. Em 2023, ele assumirá uma cadeira na Alepe como o deputado pernambucano mais votado após uma campanha que custou R$ 615 mil.

O pastor tem mais de 680 mil seguidores no Instagram e um patrimônio declarado que supera R$ 1 milhão, segundo o site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Comunicador e radialista, ele é vice-presidente da Assembleia de Deus Ministério Novas de Paz e coordenador da Rádio Novas de Paz. Em suas pregações, defende que “homem só deve chorar quando sente a presença de Deus”.

Na Câmara Municipal, Júnior já protagonizou cenas de provocação a parlamentares de esquerda, como em julho deste ano, quando a Casa rejeitou a cessão da medalha Olegária Mariano, maior honraria da Câmara, à primeira-dama Michelle Bolsonaro. Tratava-se de um Decreto Legislativo proposto pela vereadora Michele Collins (Progressistas), também fundamentalista evangélica.

O pastor provocou a vereadora Dani Portela (PSOL) exibindo uma Bíblia, insinuando que a esquerda não aguenta ver nem Bíblia nem carteira de trabalho. A situação terminou gerando confusão e bate-boca no plenário em dia de embate. Depois o vereador, que costuma dizer que “todo maconheiro tem que votar em Lula”, publicou no Instagram o vídeo “Como irritar uma feminista”, reverenciando Michelle Bolsonaro como “uma mulher doce, que raspa o suvaco e as pernas”, arrancando risada dos conservadores.

No ano passado, Júnior Tércio aprovou um Projeto de Lei (363/2021) para declarar a música gospel Patrimônio Cultural Imaterial da cidade e também conseguiu aprovação do PL (18.932/2022) que inclui, no calendário de eventos da capital, o Dia Municipal do Conservadorismo. A data será celebrada todo dia 10 de março com o objetivo de rememorar princípios do conservadorismo que exaltam Deus, patriotismo, família e liberdade.

Negacionismo e patrocínio político de hidroxicloroquina

Durante a crise sanitária do novo coronavírus, enquanto estudos internacionais apontavam para os riscos colaterais do uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19, um grupo de médicos do Recife, os “Doutores da Verdade”, receitou e distribuiu a medicação de graça em comunidades da periferia. A compra do remédio e a promessa de salvar vidas eram patrocinadas por empresários e também pela deputada estadual, que anunciou, na época, a doação de metade do seu salário para a compra da hidroxicloroquina.

Em 2021, após representação de organizações da sociedade civil – entre elas o Intervozes, e o mandato do vereador do Recife Ivan Moraes (PSOL) –, a rádio teve que assinar um termo de compromisso junto ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE) para se abster “de veicular qualquer manifestação de cunho negacionista à gravidade da pandemia da covid-19”.

Por causa das veiculações mentirosas, transmitidas pela Novas de Paz em 2020, a rádio ficou ainda obrigada a veicular, por um mês, duas vezes por dia, um spot de 40 segundos falando da seriedade do contágio da covid-19 e que a doença já tinha matado, na época, mais de 500 mil pessoas, alertando também sobre a necessidade do uso de máscara, higienização frequente com álcool e distanciamento social.

Contra uniões que não estejam dentro da heteronormatividade, o casal sustenta que é preciso proteger as crianças da “doutrinação marxista” nas escolas. Os dois fazem campanha contra o direito ao aborto e defendem o projeto “escola sem partido”.

Foram eles que recentemente acusaram uma creche do Recife de “doutrinação” por causa de um vídeo que mostra uma professora, a quem chamaram de “discípula de Paulo Freire”, se referindo a Bolsonaro como “bolsolixo” numa atividade sobre eleições. “A esquerda utiliza a sala de aula para manipular seu filho”, chegou a dizer o pastor Júnior. 

O fato levou a Prefeitura do Recife a publicar uma nota no Instagram informando que “a creche exposta no vídeo não integra oficialmente a Rede Municipal própria de Ensino do Recife” e enfatizando que “não há orientação para as unidades de ensino da rede qualquer tipo de atividade eleitoral com os estudantes”.

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com