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A importância das cotas raciais na ocupação de espaços no Judiciário

Artigo de Ana Paula Azevêdo e Paulo Arthur Monteiro

Marco Zero Conteúdo / 19/09/2024
A imagem mostra o interior de um tribunal formal e grandioso. No centro, há uma grande figura de Jesus Cristo na cruz, posicionada acima de um arco. Abaixo dessa figura religiosa, há uma pessoa sentada em um banco alto, de costas para o ponto de vista, provavelmente um juiz devido ao ambiente. Essa figura central é ladeada por duas grandes pinturas, uma de cada lado do arco. A sala está cheia de várias fileiras de indivíduos vestidos com togas escuras, provavelmente advogados ou juízes, sentados em longas mesas voltadas para o banco alto e uns para os outros, de forma simétrica. As paredes são adornadas com molduras decorativas e iluminadas por lustres pendurados no teto. Há bandeiras exibidas em ambos os lados da sala, perto da frente.

Crédito: Flickr TJ-PE

por Paulo Artur Monteiro* e Ana Paula Azevêdo**

As cotas raciais, implementadas inicialmente em universidades e gradualmente expandidas para outros setores, têm se mostrado uma importante política de ação afirmativa no Brasil. No contexto do Judiciário, essa medida se torna especialmente relevante, considerando o histórico de exclusão racial e a sub-representação de pessoas negras em cargos de destaque no sistema de justiça.

O Brasil, apesar de sua diversidade étnica e cultural, carrega uma profunda herança colonial que perpetua desigualdades sociais, inclusive no campo do Direito. Embora o país tenha avançado em diversas áreas, ainda são visíveis as barreiras que impedem a plena inserção de pessoas negras – compreendidas como pessoas pretas e pardas – em espaços de poder e decisão. No Poder Judiciário, onde decisões fundamentais para a sociedade são tomadas, a presença de magistrados e magistradas, promotores e promotoras de justiça, bem como advogados e advogadas negras, ainda é limitada. Esse cenário precisa ser transformado para que o Judiciário possa espelhar a diversidade da população brasileira e promover a justiça de forma mais equitativa.

A implementação de cotas raciais no Judiciário, seja em concursos públicos bem como em programas de incentivo à promoção na carreira da magistratura e Ministério Público, visa corrigir essas disparidades históricas e proporcionar uma maior equidade no acesso aos mais diferentes cargos. A previsão de cotas raciais instituídas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para as composições das chapas eleitorais em todas as seccionais também fortalece a participação de advogados e advogadas negras nos espaços de decisão da advocacia, contribuindo para a pluralidade dentro do sistema de Justiça

Esse processo não deve ser visto como uma concessão, mas como uma medida de justiça histórica, que reconhece as barreiras que têm sido impostas a gerações de pessoas negras. Além disso, a presença de mais profissionais negras e negros no Judiciário promove uma maior diversidade de perspectivas na tomada de decisões. A vivência e a compreensão das desigualdades sociorraciais podem influenciar positivamente o julgamento de casos que envolvem questões relacionadas à pluralidade de nossa sociedade, inclusive casos envolvendo abordagens raciais ou de discriminação, trazendo uma visão mais próxima da realidade enfrentada por grande parte da população brasileira, composta em sua maioria por pessoas negras.

Em alinhamento com o compromisso do Poder Judiciário pela equidade racial, destaca-se o Pacto pela Equidade Racial no Judiciário, que visa fomentar a representatividade racial na magistratura, além de garantir um ambiente de trabalho mais inclusivo e diverso. A instituição de Grupo de Trabalho para elaboração do Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é outro marco nesse processo, pois visa orientar magistrados e magistradas para considerar o impacto do racismo estrutural nas decisões judiciais. Essas iniciativas refletem a necessidade de um Judiciário mais atento à realidade de desigualdade racial e comprometido com a justiça social.

A democracia racial, entendida como a plena inclusão de pessoas de diferentes identidades raciais em todos os espaços de poder e influência, só será possível quando políticas como as cotas raciais forem amplamente aplicadas e defendidas. O Poder Judiciário, como uma das instituições mais importantes na defesa da justiça e dos direitos humanos, deve ser um espelho da diversidade da sociedade que serve. Portanto, as cotas raciais são uma ferramenta imprescindível para garantir que essa diversidade seja representada de forma justa e equilibrada.

As cotas raciais se alinham ao princípio da igualdade previsto na Constituição Federal do Brasil é um tema de grande relevância. O artigo 5º da Constituição assegura que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, mas essa igualdade deve ser compreendida de forma material e substancial, buscando garantir oportunidades equitativas para todas as pessoas, independentemente de sua identidade racial.

Sendo assim, as cotas raciais são uma política de ação afirmativa que busca corrigir desigualdades estruturais decorrentes do racismo e da exclusão social enfrentada por populações negras ao longo da história do Brasil. Em sua essência, elas têm como objetivo equilibrar o acesso a espaços de poder, educação e emprego, promovendo uma distribuição mais justa de oportunidades. Nesse sentido, as cotas raciais não se contrapõem ao princípio da igualdade, mas, ao contrário, possibilitam corrigir distorções históricas com o objetivo de alcançar uma equidade efetiva.

O Supremo Tribunal Federal (STF), em diversas ocasiões, já se pronunciou a favor da constitucionalidade das cotas raciais. Em uma decisão de 2012, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, o STF entendeu que as cotas raciais em universidades públicas não violam o princípio da igualdade, mas constituem um mecanismo legítimo de combate às disparidades raciais no país. O tribunal destacou que a igualdade material, prevista no artigo 3º da Constituição, implica a promoção de políticas públicas voltadas para a redução das desigualdades sociais e regionais, entre elas as de natureza racial.

Portanto, o princípio da igualdade na Constituição Federal não pode ser interpretado de forma restrita, ignorando as desigualdades históricas que afetam certos grupos. As cotas raciais representam uma ferramenta que visa concretizar a igualdade substancial, permitindo que pessoas negras, que historicamente foram marginalizadas e excluídas, tenham melhores condições de competir em pé de igualdade. Ademais, essas políticas são temporárias, ou seja, sua existência está atrelada à necessidade de correção de desigualdades persistentes. Uma vez que essas desigualdades sejam efetivamente reduzidas, a política de cotas poderá ser revista. Entretanto, até que esse cenário de equidade plena seja alcançado, as cotas raciais continuam sendo uma medida constitucional e imprescindível para a promoção da justiça social.

As cotas raciais no Poder Judiciário não são apenas uma política de reparação, são sementes de esperança plantadas para uma efetiva transformação. Elas não apenas corrigem as injustiças do passado, mas também abrem caminhos para um futuro em que todas as vozes possam ecoar com igualdade de oportunidade. Em cada decisão tomada por magistrados e magistradas negras, em cada julgamento pautado pela perspectiva racial, reforçamos a certeza de que a Justiça deve estar atenta à diversidade e à complexidade de uma sociedade que clama por equidade.

Assim, a ocupação de espaços no Poder Judiciário por pessoas negras, por meio das cotas raciais, é um movimento de coragem, competência e compromisso. Não se trata apenas de preencher assentos, mas de transformar consciências, de garantir que o Judiciário caminhe lado a lado com o povo que ele serve, refletindo suas cores, suas histórias e suas lutas.

E, nesse horizonte, o Poder Judiciário tem a oportunidade única de não apenas acompanhar a evolução da sociedade, mas de ser agente dessa mudança, fazendo da equidade racial um pilar de sua atuação. Pois, em um país como o nosso, a justiça só será plena quando todas as pessoas puderem reconhecer nela um reflexo da sua própria dignidade.

*Advogado há 27 anos, ex-conselheiro estadual da OAB-PE, Master of Law em Direito Regulatório e Infraestrutura, especialista em Direito Administrativo Municipal e em Mobilidade Urbana

**Advogada há 15 quinze anos, ex-diretora da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE, especialista em Direito Civil e Empresarial, mestra em Direito, doutoranda em Direito, professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e diretora do Instituto Enegrecer.

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