Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Decisão de Raquel Lyra pode prejudicar combate à tortura em Pernambuco

Raíssa Ebrahim / 07/05/2025
A imagem retrata o interior de um presídio em Pernambuco com diversas barracas protegidas por lonas e tecidos coloridos. Há homens caminhando pelo corredor e outros conversando. No chão, há itens variados, como roupas, cobertores e almofadas, A iluminação mistura sombras e pontos de luz natural que atravessam as aberturas das lonas, criando uma atmosfera semelhante a de um mercado ou feira livre.

Crédito: G. Dettmar/CNJ

Defensores de direitos humanos e organizações da sociedade civil temem pela perda de autonomia e independência do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura em Pernambuco após a governadora Raquel Lyra (PSD) recompor o órgão sem seleção pública.

O Mecanismo, paralisado desde o início da atual gestão, é responsável por fiscalizar unidades de privação de liberdade, como os sistemas penitenciário, o socioeducativo e as comunidades terapêuticas. Por lei, deve ser autônomo e independente. 

Porém, todos os seis novos peritos foram indicados pelo governo no final do mês passado, no âmbito da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Prevenção à Violência.

Um caso chama a atenção: um desses peritos é também presidente do Conselho Penitenciário do Estado (Copen-PE) há 14 anos. Advogado e ex-presidente da Ordem dos Advogados (OAB-PE), entre 1989 e 1995, Jorge Neves assumiu o cargo em 2011, no governo PSB, tendo passado pelas gestões Eduardo Campos, João Lyra Neto e Paulo Câmara.

Agora, na gestão Raquel, além de seguir presidindo o conselho que fiscaliza e acompanha as execuções penais no Estado, faz parte do Mecanismo responsável por combater o crime de tortura, maus-tratos e outras situações degradantes em unidades de privação de liberdade.

Segundo fontes ouvidas pela Marco Zero, há uma evidente “incompatibilidade” e um “conflito de interesses” entre as duas funções de Jorge Neves.

Os outros cinco novos peritos são: Cleyson Rodrigues dos Santos, Cássia Regina Magalhães Guerra de Alcântara, Antônio Carlos Teixeira Da Silva, Michelly Farias Rocha, Jorge da Costa Pinto Neves e Maurício Bezerra Alves Filho. Este último também integra o Conselho Penitenciário.

A imagem mostra a fachada do presídio do Curado, em Pernambuco, uma área cercada por arame farpado enrolado em espirais ao redor de uma cerca branca de metal. Atrás da cerca, o prédio é branco com um telhado escuro e algumas antenas no topo. No lado direito, um grupo de pessoas vestidas com camisetas pretas e amarelas caminha em direção ao presídio. O chão é de terra e há algumas plantas crescendo perto da cerca. O céu está parcialmente nublado, com algumas nuvens brancas.

Complexo do Curado foi alvo de medidas cautelares da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Crédito: Gabi Catunda/Ascom MDHC

“A governadora foi generosa com os seus. Não com a lei”, dispara Wilma Melo, coordenadora do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri), organização que faz parte do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, composto por 20 integrantes distribuídos de forma paritária entre o poder público estadual e a sociedade civil. O Sempri atua pela humanização dos presídios de Pernambuco e pelo acesso de presos e suas famílias à justiça e cidadania.

“As pessoas que são indicadas sem uma seleção pública não têm condições de atuar com imparcialidade dentro das competências do Mecanismo”, avalia Wilma. “Para mim, não interessa o conhecimento dessa pessoa (na área, tecnicamente), porque ela não passou pelo processo de seleção”, complementa.

Em nove meses, entre julho de 2024 e abril de 2025, o Estado somou 123 denúncias de maus-tratos e torturas somente no sistema penitenciário. Essas denúncias foram encaminhadas à Defensoria Pública pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, mas não chegaram a ser apuradas pelo Mecanismo, que estava, até então, esvaziado por falta de peritos.

Na prática, a falta de atividades do Mecanismo significou que, por mais de dois anos, não foram realizadas inspeções por parte do órgão nesses espaços, incluindo violações de direitos que podem ter sido cometidas por agentes carcerários e socioeducativos.

“O comitê tem um controle das denúncias recebidas, mas, sem um mecanismo independente, como verificar essas denúncias dentro das unidades prisionais?”, questiona Wilma.

<+>

Previsto em lei (Lei 14.863/2012), o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura exerce a defesa dos direitos humanos de pessoas privadas de liberdade por meio de visitas regulares a diferentes sistemas, como o prisional, o socioeducativo, as instituições de longa permanência para idosos, os abrigos, as delegacias, as comunidades terapêuticas e os hospitais psiquiátricos.

Os peritos também podem requisitar a instauração de procedimento criminal e administrativo caso se constatem indícios de prática de tortura ou de tratamento cruel, desumano e degradante.

***

O Conselho Penitenciário do Estado (Copen) é formado por nove membros titulares e nove suplentes, com mandatos de quatro anos, nomeados pelo governador do estado. São cinco titulares e cinco suplentes operadores do Direito, dentre advogados, juristas, professores e profissionais da área do Direito Penal, Processual Penal, Penitenciário e ciências correlatas; um titular e um suplente do Ministério Público Federal; do Ministério Público de Pernambuco; da Defensoria Pública da União; e da Defensoria Pública do Estado de Pernambuco.

O conselho tem função consultiva, emitindo pareceres em pedidos de indulto e liberdade condicional, e também função fiscalizadora, por meio de inspeções em estabelecimentos penais, além de supervisionar autoridades e dar assistência aos egressos.

Órgão pode ser silenciado, dizem organizações

Após a publicação da nomeação dos peritos em Diário Oficial, o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) apresentou denúncia ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e ao Conselho Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT). A organização de direitos humanos também faz parte do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e detém assento em várias frentes de incidência socioeducativa e penitenciária local e nacionalmente.

Coordenadora-executiva do Gajop, Edna Jatobá afirma que a nomeação de peritos sem seleção contraria importantes marcos legais, como o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e o Decreto nº 6.085/2007.

Esse decreto determina que os membros do Mecanismo devem ter experiência comprovada na área, legitimidade social e, sobretudo, autonomia para atuar sem interferências do governo.

“O Mecanismo existe justamente para que os peritos possam inspecionar unidades prisionais de forma independente, sem risco de censura ou maquiagem de informações nos relatórios que produzem. Quando os peritos são nomeados diretamente pelo governo, perde-se essa autonomia — o que, na prática, enfraquece e silencia um órgão que deveria fiscalizar o próprio Estado”, argumenta.

“Pernambuco tem um sistema prisional marcado por superlotação extrema, denúncias constantes de tortura, corrupção (como acompanhamos estarrecidos no caso do Presídio de Igarassu, com a investigação da Polícia Federal que culminou na prisão do ex-diretor da unidade) e já foi alvo de medidas cautelares da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como no caso do Complexo do Curado”, lembra.

“Diante desse cenário, a sociedade questiona: que sentido faz nomear peritos governamentais para denunciar abusos cometidos pelo próprio governo? É por isso que exigimos transparência e participação social nesse processo, conforme prevê a legislação”, cobra Edna.

Alepe terá audiência pública

O tema será pauta de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), no dia 15 de maio, por iniciativa da Comissão de Direitos Humanos, Cidadania e Participação Popular, presidida pela deputada Dani Portela (PSOL).

Para a parlamentar, “é inaceitável” a forma como a governadora Raquel tem conduzido a situação do Mecanismo. “A nomeação, feita à revelia das instituições e das tratativas construídas, configura uma clara tentativa de aparelhamento do Estado e de controle político sobre um órgão que deveria ser autônomo, independente e técnico. Até o momento, não foram divulgados os critérios de escolha dos peritos, e não há garantias de que foram respeitados o caráter multidisciplinar e a representação adequada de grupos étnicos e minorias na equipe”, aponta Dani.

“O que já se sabe é que não houve paridade de gênero, a composição atual tem quatro homens e apenas duas mulheres”, complementa.

Além da Constituição Federal, da Lei 12.847/2013 e do Protocolo Facultativo da ONU contra a tortura, a deputada afirma que a situação “viola os princípios da legalidade, moralidade, publicidade e transparência que devem orientar a administração pública”.

Para Dani, “o recado do governo é claro: não há interesse em garantir a autonomia e a independência do Mecanismo. Esse cenário representa um grave retrocesso na proteção dos direitos humanos e no combate às violações no sistema prisional e socioeducativo de Pernambuco”.

A Marco Zero procurou novamente o Governo do Estado, que enviou a mesma nota já encaminhada através da através da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Prevenção à Violência. Segue na íntegra: “o Governo do Estado nomeou, nesta quinta-feira (24), seis novos peritos para compor o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. As nomeações foram realizadas com base na Lei nº 14.863, de 7 de dezembro de 2012”.

A reportagem também procurou Jorge Neves para repercutir sua nomeação, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornais de bairro do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com