Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Cisterna móvel, uma nova tecnologia para ampliar o acesso à água em regiões de seca

Giovanna Carneiro / 09/06/2025
A imagem é uma ilustração em traços simples que mostra um sistema de captação de água da chuva com apoio de tecnologia. À esquerda, há uma torre com uma antena parabólica no topo, conectada a um celular desenhado no centro superior da imagem. O celular também se conecta a uma nuvem com gotas de chuva, sugerindo monitoramento climático. No canto inferior direito, aparece uma cisterna móvel com rodas, composta por quatro tanques redondos com tampas em forma de funil, posicionados para coletar a água da chuva.

Crédito: Lapismet

O aumento das áreas áridas no Semiárido brasileiro está intensificando as secas, a desertificação e a perda de biodiversidade. A diminuição das chuvas e o aumento das radiações de calor trazem novos desafios para a população da região e o uso de tecnologias que amenizem os efeitos das mudanças climáticas é cada vez mais necessário. Pensando nisso, o Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites da Universidade Federal de Alagoas (Lapis/UFAL) desenvolveu uma tecnologia social hídrica, chamada cisterna móvel. 

“Regiões áridas no Semiárido brasileiro aumentaram significativamente. Já é possível identificar regiões áridas no Seridó paraibano, em Pernambuco, e principalmente ali na região dos Cariris paraibanos, que são 29 municípios, você já tem áreas áridas, assim como no sul do Piauí. E essas áreas têm características específicas: diminuição de nuvens que produzem chuvas, aumento de temperatura e aumento da sede atmosférica”, explica Humberto Barbosa, meteorologista e fundador do Lapis.

“A política pública, o programa de cisternas, é um sucesso, sem dúvidas. Mas, em situação de emergência climática agravada, a chuva, mesmo com a cisterna, não vai chegar mais em algumas regiões. No semiárido você ainda tem quatro meses de chuva, que é onde você tem quase 90% das chuvas concentradas, de fevereiro a maio. Mas, em áreas que estão se tornando áridas, a gente está falando de dez a onze meses sem chuva. E aí, você tem que se adaptar porque as pessoas precisam de água e uma das soluções que estamos propondo é a possibilidade de se locomover em busca de água para armazenar”, finalizou Barbosa.

Como funciona a cisterna móvel?

O design das cisternas móveis foi desenvolvido com base nas plantas xerófilas. Buscou-se, durante a pesquisa para o desenvolvimento da tecnologia, criar uma estrutura que melhor representasse as xerófilas – especificamente o mandacaru, a palma forrageira e a coroa de frade, sendo esta última a que melhor se adequou ao estudo – , usando uma ciência conhecida como biomimética, que busca aplicar em estruturas biológicas e funcionalidades da natureza em novos produtos ou equipamentos. Nessa área de estudo científico, engenheiros e designers recorrem às estratégias e soluções da natureza para desenvolver tecnologias inovadoras e sustentáveis.

<+>

O que são plantas xerófilas, de acordo com a Embrapa: o termo “xerófita”, originário das palavras gregas “xeros” (seco) e “phyton” (planta), caracteriza a notável habilidade de cactos, agaves e plantas similares de sobreviver em condições de escassez de água.

No alto da estrutura móvel estão largos funis por onde a água será captada. O projeto prevê ainda o desenvolvimento de um sistema de comunicação que irá transmitir informações de um radar ou de um satélite meteorológico para os proprietários da região. Assim, eles poderão saber de forma antecipada onde e quando ocorrerão as chuvas, podendo se deslocar até o local e armazenar a água.

A pesquisa para o desenvolvimento da cisterna móvel foi realizada no âmbito do projeto Capes Emergências Climáticas, com apoio da Capes e contou com a participação do designer Wedscley Melo, bolsista de doutorado. Na fase inicial, foram analisados e testados, em dois laboratórios, os padrões visuais de funcionamento de plantas como o mandacaru, a coroa-de-frade e a palma forrageira, com ênfase em seus princípios de retenção e economia de água durante os períodos de seca. Com base nesses estudos e por meio da analogia, as características observadas foram aplicadas à criação do sistema seguindo os princípios da biomimética.

Segundo o professor Humberto Barbosa, o projeto aguarda a oficialização da patente para que os testes e a aplicação em larga escala possam ser viabilizados. Ainda de acordo com Barbosa, uma nova etapa do sistema prevê o processo de filtragem da água inspirado no umbuzeiro. 

A imagem mostra um cacto solitário sobre solo arenoso e seco. A planta tem formato cilíndrico e robusto, de coloração verde-escura, com várias costelas verticais marcadas por espinhos longos e esbranquiçados que se projetam em todas as direções. No topo do cacto há uma estrutura arredondada e felpuda de cor vermelha intensa, parecendo um gorro de lã ou um tampão macio, com um pequeno ponto rosa-choque no centro. Esse cacto é conhecido popularmente como cabeça-de-frade devido à semelhança do topo avermelhado com o capuz usado por monges franciscanos.

Cabeça-de-frade, a planta que inspirou a nova cisterna

Crédito: Reprodução
O desenho técnico mostra diferentes vistas e componentes de uma cisterna móvel destinada à captação de água da chuva. À esquerda, há duas vistas da estrutura com rodas: uma vista superior, que mostra quatro grandes funis dispostos lado a lado dentro de uma moldura retangular; e uma vista lateral, que revela os funis posicionados sobre reservatórios empilhados horizontalmente, tudo apoiado sobre quatro rodas. À direita, aparecem ampliadas duas peças isoladas: na parte superior, uma boia esférica com uma linha horizontal que indica o nível da água; na parte inferior, um funil individual em forma de cone invertido com uma saída estreita na ponta, utilizado para canalizar a água captada. O conjunto representa de forma clara como a água da chuva é coletada, armazenada e monitorada por esse sistema móvel.

Crédito: Lapismet
A imagem mostra um desenho técnico e estilizado de uma cisterna móvel. Trata-se de uma estrutura metálica retangular montada sobre rodas, semelhante a um carrinho robusto. Dentro da estrutura há quatro grandes funis virados para cima, posicionados lado a lado na parte superior, como coletores de água. Abaixo de cada funil, há tanques empilhados horizontalmente, lembrando almofadas grossas ou reservatórios achatados, onde a água captada seria armazenada. O conjunto sugere um sistema de coleta e transporte de água da chuva de forma prática e móvel.

Crédito: Lapismet

Trabalho em conjunto com a ASA

Para Humberto Barbosa, a cisterna móvel deverá agregar e possibilitar novas formas de mitigação dos efeitos das secas. Ele acredita que a tecnologia poderá ampliar a atuação das entidades ligadas à Articulação de Semiárido Brasileiro (ASA): “As cisternas convencionais já atendem à necessidade de armazenamento e conservação da água, só que, agora, a atmosfera está evaporando mais água da superfície, e essa superfície é o solo que está degradado. Por isso, a vegetação está degradada e os mananciais também estão degradados. Então, a atmosfera está puxando mais água, com muito mais intensidade, do que a capacidade dessa superfície para alimentar a atmosfera com água. E isso faz com que as regiões áridas aumentem. Nesse contexto, as medidas emergenciais, principalmente adaptativas à mudança climática, às altas temperaturas e redução da chuva, vão exigir essa captação, esse armazenamento com uso de geotecnologia adaptada a esses processos, que é o que propomos com a cisterna móvel”.

Criado em 1999, o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), executado pela ASA, já beneficiou cerca de 1,3 milhão de famílias do semiárido com a instalação de cisternas em áreas de seca. As cisternas construídas pelo P1MC são estruturas de concreto pré-moldado, com capacidade para armazenar até 16 mil litros de água, o que é suficiente para abastecer uma família de até seis pessoas durante o período de estiagem no Semiárido, que pode durar até oito meses.

“No período do lançamento do programa, havia milhões de pessoas sem acesso a água para beber e cozinhar. Então, o P1MC se propôs a atender essa demanda, para salientar inclusive que o acesso à água é um direito constitucional, e naquele período era muito escasso, ainda como é hoje para muitas famílias. […] As cisternas emanciparam muitas pessoas ao garantir acesso à água no quintal de suas casas, por isso, esse projeto, que se transformou em política pública, tem o caráter, não só de armazenar a água, mas de dar autonomia, cidadania e dignidade às famílias do Semiárido”, conta Mardônio Alves, coordenador executivo da ASA.

Reconhecendo a relevância do trabalho em conjunto entre universidade e organizações civis, Mardônio Alves reforça que é importante pensar no uso dessas tecnologias em uma perspectiva inclusiva para a população do Semiárido, pensando na funcionalidade e na aplicabilidade delas no ambiente familiar e agrícola da região.

Tanto o cientista Barbosa quanto o agricultor Alves defendem a necessidade de investimento dos governos em políticas públicas de combate às secas e em tecnologias de adaptação às mudanças climáticas são defendidas por ambos. A falta de investimentos em pesquisas recentes e aprofundadas sobre o Semiárido e suas características e a falta de uma legislação ambiental mais rígida são fatores apontados por ambos como agravantes para acontecimentos climáticos extremos como as secas.

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.