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“Tomara que você seja deportado”: Jamil Chade fala sobre o fim do sonho americano na era Trump

Maria Carolina Santos / 06/08/2025
A foto mostra pessoas alinhadas seguram pequenas bandeiras dos Estados Unidos, em ambiente externo.

Crédito: U.S. Department of Homeland Security/Rawpixel/Divulgação

Após 24 anos morando em Genebra, na Suíça, o jornalista Jamil Chade se mudou ano passado para Nova York. A mudança, por curto tempo, foi por questões familiares, mas ele logo percebeu que era uma oportunidade profissional riquíssima, com o período coincidindo com a campanha presidencial e, depois, os primeiros e tenebrosos meses do segundo mandato do republicano Donald Trump. O resultado de quase um ano trabalhando nos Estados Unidos é o livro Tomara que você seja deportado – Uma viagem pela distopia americana (editora Nós; R$ 79), que vai ser lançado no Recife nesta quinta-feira, às 19h, na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), no Derby.

O título do livro vem de uma ofensa que o filho dele escutou de uma colega no pátio de uma escola primária em Nova York. “A novidade certamente não é a existência de uma discussão entre crianças. Mas o surgimento de uma nova maneira de agredir, baseada no ódio, que é instrumentalizado por uma ala ultraconservadora que chegou ao poder”, escreve Chade no livro.

Com prefácio do cineasta Walter Salles, Tomara que você seja deportado reúne 48 textos inéditos e outros publicados na coluna do jornalista no UOL. São crônicas e reportagens, apresentadas de forma cronológica, que narram as transformações que os Estados Unidos vem passando. O livro não se resume a cidades como Nova York e Washington, com Jamil Chade viajando para a fronteira com o México e para estados como Mississipi, Arkansas e Arizona.

“Foram textos escritos ainda no assombro daquela situação. Quando eu reuni os textos para publicar, mesmo os escritos para a coluna, eu não os modifiquei. Deixei exatamente como eles estavam naquele dia que aquilo ali foi escrito. Inclusive para tentar trazer um pouco da surpresa em relação àquela situação”, contou Jamil Chade em entrevista para a Marco Zero. “É um diário. No fundo, um diário do desmonte da democracia dos EUA”, diz.

Na entrevista abaixo, Jamil Chade fala sobre a política migratória desumanizante do governo Trump, o papel do jornalismo e o enfraquecimento da democracia nos Estados Unidos.

A indústria cultural dos Estados Unidos sempre vendeu o país como uma terra de oportunidades. Na Estátua da Liberdade tem os versos (de um poema de Emma Lazarus) ‘dê-me seus cansados, seus pobres, suas massas aninhadas que anseiam respirar livremente’. Mas, hoje, os Estados Unidos não é visto mais como um país de oportunidades para imigrantes. Esse discurso, esse pilar dos Estados Unidos como sendo um país de imigrantes, era mais frágil do que era vendido?

Eu acho que o que aconteceu, acima de tudo, foi que o mito desse país da oportunidade, que é também traduzido como o sonho americano, se desfez nos últimos anos. E aí não foi por conta da extrema direita, foi, acima de tudo, pelo fracasso da democracia e pelo aprofundamento da disparidade social. Então, foram esses dois elementos que desfizeram a ideia de que ali existe uma terra de oportunidades.

Quem está na camada mais pobre não vai migrar para a classe média. Isso não está acontecendo. No fundo, o que está acontecendo é um aprofundamento da desigualdade. Essa nova realidade desfez o sonho americano. E aí, essa é a grande pergunta: O que acontece com uma sociedade quando um dos seus mitos fundadores se desfaz? Eu não tenho a resposta, mas o que a gente tem visto é que a extrema direita, charlatães, vendedores de ilusão, populistas, desembarcam oferecendo uma alternativa. Dizendo que, ‘comigo, nós vamos voltar a ser esse país do sonho americano’. ‘Comigo, vamos retomar aquela ideia de que ascensão social é de novo possível’. Então, é uma tentativa justamente de resgatar o ‘sonho americano’ que, em primeiro lugar, jamais foi para todo mundo. É só perguntar para os escravizados se eles tinham algum sonho americano. Nos últimos 20 anos, o que nós vimos é uma instrumentalização desse desamparo por parte da extrema direita para chegar ao poder.

Essa é a história que nós estamos hoje. O desamparo é profundo, é real. No livro, eu tento trazer várias situações desse desamparo e um movimento político que, para chegar ao poder, vai buscar justamente nessa decepção popular o seu motor para ganhar votos.

Você abre a segunda crônica do livro com espanto por uma declaração de Trump, ainda na campanha presidencial, dizendo que imigrantes estariam comendo animais de estimação de americanos. O que temos visto nesses últimos meses são denúncias de imigrantes presos sem comida, sem alojamento adequado. Teve atéenvio de imigrantes para os seus países de origem em aviões de carga. Isso mostra uma desumanização dessas pessoas, desses imigrantes. Por que você Trump aposta nisso?

A extrema direita – e aí não é só o Donald Trump, mas o movimento inteiro – precisa criar o outro. E o outro, dessa vez, somos nós, os latinos. O outro, na história americana, já foram os japoneses, por exemplo. Na Segunda Guerra Mundial, os japoneses foram inclusive internados em campos de concentração no próprio território americano. Os outros já foram os árabes, depois do 11 de setembro, dos ataques às Torres Gêmeas. E agora os outros somos nós, os latinos. Então, esses outros precisam ser desumanizados para que você possa justamente passar por cima em termos de direitos. Você só pode retirar o direito de um grupo de pessoas que, no fundo, não são tão seres humanos como nós. Então, é algo deliberado, é algo construído justamente para tirar até a dignidade daquelas pessoas.

Quando você tira tudo isso, você permite que possam fazer os maiores absurdos. Não só prisões com situações absurdas, mas também imigrantes enviados para Guantánamo, para Alcatraz do Jacarés (centro de detenção de imigrantes localizado em uma área pantanosa nos Everglades, na Flórida), para El Salvador. Claro, aquela ideia de que serão presos ou deportados só os criminosos era mentira. O que nós temos visto é que qualquer um que esteja de forma irregular nos Estados Unidos pode, eventualmente, ter esse destino.

Tem um segundo elemento nessa história, que é que ao criar uma situação dessa, você, acima de tudo, gera pânico, gera medo. Inclusive daqueles que não têm nada a dever às autoridades, a não ser a condição de não estar com todos os seus documentos de forma regular. Mas não são criminosos, estão apenas de forma irregular. E, ao longo dos últimos meses, muitos desses imigrantes tomaram a decisão, por si só, de deixar os Estados Unidos. O que fica ainda mais barato para o governo do Trump, porque ele não precisa nem deportar essas pessoas. Eu conheci muitas dessas pessoas, inclusive um brasileiro, que decidiu, por conta própria, voltar para o seu país de origem.

O que acontece com uma sociedade quando um dos seus mitos fundadores se desfaz? Eu não tenho a resposta, mas o que a gente tem visto é que a extrema direita, charlatães, vendedores de ilusão, populistas, desembarcam oferecendo uma alternativa

O governo Trump anunciou nesta semana a cobrança de uma caução de até 15 mil dólares para turistas de dois países africanos, Malaui e Zâmbia. Mas, recentemente, o mesmo governo acolheu imigrantes da África do Sul, da minoria branca de lá, afirmando que são perseguidos. Há um componente racista muito forte nas decisões migratórias de Trump.

Profundamente racista. É uma política migratória que estabelece um muro, e o muro não é na fronteira entre o México e os Estados Unidos. O muro é em qualquer lugar da sociedade no qual ele define que aquele outro basicamente não deve ter os mesmos direitos. Então, é uma política profundamente racista, com base em movimentos supremacistas brancos. Não há nenhuma dúvida sobre o caráter racista dessa política migratória.

No caso da África do Sul, é ainda mais espantoso, porque enquanto ele fecha o país para latinos e africanos, ele acolhe esses sul-africanos brancos, não apenas dando visto para essas pessoas. O que foi estabelecido é um programa em que elas recebem uma casa, cada um dos adultos daquela cas, recebe um telefone no celular, já com chip colocado, comida na geladeira, e ajudam a procurar emprego.

Lembra a política de migração do Brasil do começo do século XX, que trazia italianos e alemães para ‘embranquecer’ a população.

Exatamente. Nesse caso, obviamente é um número muito pequeno, mas quando você fecha o seu país inteiro para 19 países no mundo, e todos eles são países ou africanos ou latinos, e você estende o tapete vermelho para brancos sul-africanos, que supostamente estão sendo perseguidos – porque existe uma reforma agrária no país, depois de 30 anos do fim do Apartheid – fica evidenciada, que é, acima de tudo, uma política racista. É institucionalizada. O racismo passa a ser institucional. Volta a ser, na verdade, nos Estados Unidos.

O jornalismo profissional é ainda mais relevante. E qualquer tipo de ajuste, de acomodação, de não publicar algo porque eventualmente teremos problemas, é basicamente um sinal de fraqueza

Tem um texto em que você fala que começou a assistir os noticiários da extrema direita para ver o que eles estavam falando. Como é que você vê o papel do jornalismo nessa derrocada da democracia?

É ainda mais fundamental. Quando eu assisto, por exemplo, às televisões e canais da extrema direita americana, eu penso que os canais oficiais da China ou da Arábia Saudita ou do Irã ficariam morrendo de inveja. É muito mais oficial, é muito mais chapa branca do que qualquer ditadura que eu já tenha visto. Eu tenho como hábito, quando eu chego num país como esses, de assistir a esses canais, porque eu quero entender o que está sendo transmitido. E é impressionante o que acontece nos Estados Unidos, porque vem com um caráter não só de notícias oficiais, de desinformação, etc., mas vem com um componente quase hollywoodiano, sabe? De transformar aquilo também num espetáculo. Além de ser uma injeção de desinformação, ela vem revestida num pacote hollywoodiano muito impressionante. É realmente muito assustador que esse seja o caminho.

Agora, isso significa que o jornalismo profissional fica ainda mais relevante. E qualquer tipo de ajuste, de acomodação, de não publicar algo porque eventualmente teremos problemas, é basicamente um sinal de fraqueza. Vejo também um outro aspecto. Quando o Trump, por exemplo, ataca o jornalismo profissional, ele não está só atacando o jornalismo – e ele diariamente ofende, principalmente, as mulheres jornalistas –, ele está intimidando. Ele também intimida abrindo processo contra o Wall Street Journal, pedindo indenização de 10 bilhões de dólares. Na verdade, não é uma indenização: o que ele está falando é “não ousem levantar nenhum tipo de suspeita em relação a mim, porque eu levarei vocês à falência”.

Esse comportamento é uma estratégia justamente para enfraquecer um dos pilares da eventual resistência pela democracia. Há dois pilares que estão na mira principal, o judiciário e o jornalismo, que é justamente para desmontar a capacidade da justiça de atuar e da imprensa de denunciar.

A imagem mostra o presidente dos EUA, Donald Trump, um homem branco de terno e gravata vermelha. Ele está ao ar livre, fala para a imprensa diante de vários microfones, com prédio e árvores ao fundo.

Segundo Chade, Trump escolheu latinos como novos inimigos dos EUA. Foto: Joyce N. Boghosian/US Gov/Divulgação

Foto: Joyce N. Boghosian/US Gov/Divulgação

Li recentemente uma entrevista na BBC sobre como não está havendo nenhuma manifestação de órgãos internacionais, de instituições multilaterais, sobre as ferramentas econômicas que Trump está usando para atacar o Brasil. Na mídia norte-americana tradicional, Trump é muito citado como sendo um bully, um valentão. Você acha que há um medo disseminado de outros países sofrerem represálias, como o Brasil está sofrendo?

Sem dúvida nenhuma. O mundo foi construído de uma forma, principalmente o Ocidente, no qual a economia americana tem um papel fundamental para setores inteiros das economias de outros países, de setores de outros países. E o que nós estamos vendo é que governos estão sofrendo uma pressão muito grande dos seus setores privados para que não abram conflitos com o seu maior comprador.

Por exemplo, o setor do vinho da França estava fazendo uma pressão impressionante sobre o governo francês porque não quer perder o mercado americano, que é o principal mercado de exportação para esse produto. Agora, o que você tem ao ceder? Você não tem do outro lado uma compreensão, ‘agora vamos fechar alguma coisa’, etc. Você tem ali, para o governo Trump, uma sinalização de fraqueza que depois vai ser utilizada justamente para ampliar ainda mais esse bullying, essa chantagem.

Na maioria das vezes, o que nós temos visto é que quando um país cede, num sinal de boa vontade, o que tem do lado do governo americano é a utilização dessa suposta boa vontade para, obviamente, ampliar ainda mais os seus interesses e pressões.

Qual o paralelo que você faz entre o primeiro governo Trump e o segundo? Parece que nesse segundo ele está com mais empenho em destruir os pilares da democracia?

Em primeiro lugar, ele vem muito mais radicalizado do que no primeiro mandato e ele vem muito mais preparado do que o primeiro mandato. Essa preparação a gente tem visto sendo transformada em uma intensificação da adoção das políticas de desmonte. Eles também tiveram quatro anos (o tempo do governo de Joe Biden), então eles desembarcaram extremamente preparados para essa ofensiva. Isso fica evidente quando você vê, por exemplo, as ordens executivas, que são os nossos decretos, que estão sendo aplicados. Eles não foram inventados agora. Isso fazia parte de um arsenal que ao longo de quatro anos foi cuidadosamente construído.

Por isso que eu insisto que precisamos parar de ficar fazendo memes e ironizando a extrema direita, achando que são um bando de malucos e um bando de pessoas incapazes. Muitos são: principalmente a massa que vai ser alvo de manobra. Mas no comando dessa extrema direita tem gente com muito dinheiro, com uma ambição muito grande e com um plano muito concreto.

O que temos visto é que quando um país cede, num sinal de boa vontade, o que tem do lado do governo americano é a utilização dessa suposta boa vontade para ampliar ainda mais os seus interesses e pressões

Na última crônica, você fala que o que acontece nos Estados Unidos não é apenas a história americana. Está em jogo o destino da democracia como experiência humana. E fala também que esse neocolonialismo está bem forte. E estamos vendo que Trump está agora com um hiperfoco no Brasil, inclusive já está interferindo nas próximas eleições. Você acha que há chances do Brasil não cair novamente nas mãos da extrema direita?

A chance existe. Mas a gente vai ter que ter um projeto de país agora. Chegou a hora. Quer dizer, já passou da hora. A gente não poderia ter dependido de um governo estrangeiro atacar os interesses nacionais para finalmente criar um projeto de país. Mas a gente apenas vai ter esse projeto se houver, obviamente, uma compreensão do que esse ataque representa… Não é um ataque comercial. É um ataque político, acima de tudo. É uma tentativa de desestabilização do país para que, obviamente, em 2026, a eleição esteja amplamente aberta para a extrema direita. Esse é o grande objetivo. Não é o suco de laranja, não é a tarifa, não é o açúcar, não é o etanol, não é nada disso. O grande objetivo é realmente desestabilizar o país.

Pela Constituição dos Estados Unidos Donald Trump não poderia concorrer a um terceiro mandato. Mas ele já deu entrevista dizendo que poderia concorrer. Você acha que a democracia dos Estados Unidos resiste a um terceiro mandato de Trump?

É uma ameaça não só se houver uma mudança constitucional para que isso seja possível, como também outras mudanças. Por exemplo, a de dar mais poder ao presidente. Hoje, nos Estados Unidos, que é um pouco diferente do que nós temos no Brasil, o poder executivo e o poder legislativo têm uma igualdade de poder. O projeto da extrema direita é concentrar mais poder na própria presidência. Esvaziar outros poderes. Então, não é só um terceiro mandato. É um terceiro mandato com uma presidência ainda mais fortalecida. E esse é o perigo: a reeleição com o fortalecimento da presidência. E isso, para a democracia, pode ser absolutamente fatal.


Serviço

Lançamento do livro: Tomara que você seja deportado – Uma viagem pela distopia americana
Participação: Jamil Chade e o senador Humberto Costa com mediação do jornalista Rossini Barreira.
Quando: Quinta-feira (07), a partir das 19h
Onde: Sala Aloísio Magalhães da Fundaj (Rua Henrique Dias, 609, Derby)

Entrada aberta ao público

O evento integra a programação da XV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org