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por Letícia Klein, do site Amazônia Vox
Um mundo com mais de 1,5 °C acima da média pré-industrial transformará irreversivelmente a Amazônia, provocando efeitos em cascata em todo o Brasil que poderão impactar 100 milhões de pessoas. O alerta foi lançado por especialistas em painéis de ciência climática no primeiro dia da COP30, onde se apresentaram os relatórios Global Tipping Points Report 2025 (relatório sobre os pontos de não retorno) e o Planetary Health Check 2025, com um diagnóstico dos sistemas vitais do planeta e propostas de recuperação.
É a primeira vez que uma conferência do clima conta com um pavilhão dedicado às “Ciências Planetárias”, para embasar as decisões sobre a agenda climática global. Criado por determinação da presidência da COP30, o espaço está localizado na Zona Azul, onde ficam os pavilhões dos países e ocorrem as negociações oficiais, e tem o objetivo de aproximar negociadores, cientistas e formuladores de políticas públicas.
A iniciativa é presidida pelo climatologista brasileiro Carlos Nobre, co-presidente do Painel Científico para a Amazônia, e Johan Rockström, diretor do Instituto Potsdam para Pesquisa do Impacto Climático, que propôs o conceito dos “nove limites planetários”, dos quais sete já foram ultrapassados. Já a programação é assinada por um comitê que inclui cientistas como Marina Hirota(Instituto Serrapilheira), Tim Lenton(Universidade de Exeter) e líderes de redes como Future Earth, The Earth League, International Science Council e Planetary Guardians, entre outros.
“Estamos vivendo a maior emergência que o planeta já viveu desde que existem as civilizações, há mais de 10.000 anos, e estamos muito próximos de ultrapassar o aumento da temperatura global de 1,5 ºC”, afirma Carlos Nobre. “Então, é muito importante nós criarmos pela primeira vez um Pavilhão de Ciência Planetária, um pedido do embaixador André Corrêa do Lago e da secretária executiva Ana Toni, para trazer à Cúpula o que a ciência planetária sabe muito bem que está acontecendo com o planeta.”
Entre as discussões, estarão tópicos sobre os mecanismos para acelerar a transição energética, zerar os desmatamentos, promover restaurações de todos os biomas, principalmente das florestas, e quais são as soluções que precisamos implementar imediatamente para aumentar a adaptação de bilhões de pessoas no mundo.
“Vamos fazer dessa COP a mais importante de todas, e o Pavilhão de Ciências Planetárias será fundamental para isso”, concluiu Nobre na fala de abertura do pavilhão, pela manhã.
Climatologista Carlos Nobre participa da COP30
Crédito: Amazônia Vox
A definição de ponto de não retorno, também chamado de ponto de inflexão, refere-se a um limiar crítico em que pequenas mudanças podem desencadear transformações de grande escala. O 2025 Global Tipping Points Report sintetiza as pesquisas mais recentes sobre esses pontos, que podem ser tanto negativos quanto positivos. Ao todo, 160 autores, de 23 países e 87 instituições, contribuíram para o relatório, consolidando o conhecimento sobre como governar os pontos de não retorno do sistema terrestre, os riscos que eles representam e as oportunidades apresentadas pela compreensão e atuação em pontos de inflexão positivos.
O aquecimento global em breve ultrapassará 1,5 °C, aponta o relatório, o que coloca a humanidade em uma zona de perigo, onde múltiplos pontos de não retorno climáticos representam riscos catastróficos para bilhões de pessoas. “É impossível manter o aumento da temperatura até 1,5 ºC, ela será ultrapassada em 5 a 10 anos”, afirma Carlos. “Mas não podemos deixar chegar a 2 ºC, porque vários pontos de não retorno seriam ultrapassados.” A Amazônia é um deles, e o pesquisador alerta que o bioma pode ser perdido se a temperatura média do planeta subir dois graus.
Se a temperatura dos oceanos atingir esse patamar, 99% das espécies de recifes de corais, que abrigam de 18% a 25% da biodiversidade marinha, serão perdidas. Este, aliás, é o primeiro dos pontos de não retorno que, segundo Tim Lenton, da Universidade de Exeter e coordenador do relatório, já foi ultrapassado.
“Pensávamos que seria entre 1,2 e 1,5 ºC. Nos últimos dois anos, tivemos temperaturas oceânicas, ou mesmo globais, acima de 1,5 ºC, e vimos mais de 80% dos recifes de coral tropicais sofrerem definhamento generalizado e eventos extremos de branqueamento. Portanto, tragicamente, a maior parte desse ecossistema parece estar em grave risco de degradação irreversível e contínua”, afirmou. A única forma de restaurar os recifes de corais, caso a temperatura permaneça elevada, seria a partir de um banco genético, e apenas após o resfriamento dos oceanos.
A ciência já mostra que ultrapassar 1,5 ºC provocará o degelo das calotas da Groenlândia e da Antártica Ocidental, elevando o nível do mar em até 10 metros ou mais a longo prazo. Outros pontos de inflexão quase catastróficos incluem o degelo do permafrost, solo congelado que cobre cerca de 15% do Hemisfério Norte e contém grandes quantidades de metano e CO₂, e o colapso da Circulação Meridional do Atlântico (AMOC), que poderia causar invernos glaciais no noroeste europeu e alterar drasticamente os padrões climáticos globais.
“Por isso, precisamos minimizar cada fração de grau acima de 1,5 e cada ano acima de 1,5, e tentar resfriar a Terra novamente”, defendeu Tim.
Os pontos de inflexão estão conectados de diversas maneiras, pois pertencem a um complexo sistema de suporte à vida e, na maioria das vezes, o desequilíbrio em um deles aumenta a probabilidade de desequilíbrio em outro. Isso significa que, no pior cenário, corremos o risco de consequências em cascata, com danos crescentes. Um exemplo existe entre a Amazônia e os oceanos.
“A natureza é, em essência, o nosso sistema de suporte à vida. Se pudéssemos deter a onda de destruição das florestas, mudando nossos hábitos alimentares e iniciando a regeneração dessas florestas em terra, isso seria crucial para resfriar o clima novamente e dar aos recifes de coral a chance de sobrevivência e recuperação a longo prazo”, explicou Lenton.
O cientista também alertou que os pontos de inflexão podem ser sociais, manifestando-se por meio de migrações em massa ou conflitos, e destacou a importância de promover pontos de inflexão positivos, capazes de gerar mudanças benéficas em cadeia.
No caso da Amazônia, atingir o ponto de não retorno significaria uma floresta mais degradada e seca, com perda de carbono, biodiversidade e capacidade de regulação climática. Isso afetaria o regime de chuvas da Bacia do Prata e, consequentemente, as regiões agrícolas do Brasil, impactando cerca de 100 milhões de pessoas e provocando insegurança alimentar e prejuízos econômicos. “Poderíamos ver estagnação e até contração da economia, especialmente no setor alimentício, com aumento dos preços e inflação generalizada”, alertou Lenton.
Para evitar esse cenário, ele defende políticas públicas que antecipem pontos de inflexão positivos, com transição acelerada para energias limpas, eletrificação em larga escala e eliminação progressiva dos combustíveis fósseis.
Os pontos de não retorno se relacionam ao conceito dos limites planetários, criado pelo Instituto Potsdam. “Eles representam os processos ambientais que regulam a estabilidade, a resiliência e o suporte à vida no planeta. Precisamos mantê-los sob controle para garantir um planeta habitável”, explica Johan Rockström. Ultrapassar esses limites é o que desencadeia os pontos de não retorno.
Para cada um dos nove processos identificados pela ciência, os pesquisadores desenvolveram variáveis de controle, indicadores mensuráveis que definem um espaço seguro de atuação para a humanidade. Se permanecermos dentro desses limites, há grande probabilidade de preservar um planeta saudável e estável. Mas, ao ultrapassá-los, a Terra corre o risco de perder as condições que tornam a vida possível.
Entre esses nove processos estão o clima, a biodiversidade, o uso da terra, os ciclos de nitrogênio e fósforo e o ciclo da água doce, que Johan chama de “corrente sanguínea do planeta”, por impulsionar o funcionamento da natureza. Há também limites relacionados ao oceano, à poluição do ar, à carga química e à camada de ozônio estratosférica.
Crédito: Amazônia Vox
“Na avaliação mais recente, sete das nove fronteiras planetárias já estão fora dos limites seguros”, afirma Rockström. “Isso comprova que o planeta está sob imensa pressão e enfrenta não apenas uma crise climática, mas também uma crise da natureza. Essas duas emergências se retroalimentam e nos afastam das condições habitáveis da Terra.”
Algumas mudanças são irreversíveis, como a perda de espécies, mas outras ainda podem ser revertidas se houver ação rápida. “A ciência mostra que ainda não fomos longe demais, mas a janela está se fechando. Precisamos eliminar gradualmente os combustíveis fósseis e investir na natureza, protegendo florestas, transformando o sistema alimentar global e reduzindo o consumo de água e a poluição”, diz o pesquisador.
“A boa notícia é que temos as soluções. Quando voltarmos a operar dentro do espaço seguro, teremos um futuro mais estável, saudável e próspero.”
Para isso, será preciso reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 5% ao ano na próxima década, destacou Johan durante o lançamento do relatório 10 New Insights in Climate Science, que contou com a presença de Regina R. Rodrigues (UFSC) e Deliang Chen (Universidade Tsinghua).
A lição de casa do Brasil é mais fácil do que a de outros países em alguns aspectos, segundo Regina. “A maioria das nossas emissões vem do desmatamento, que é um problema mais fácil e mais barato de resolver. Os países desenvolvidos precisam mudar toda a matriz energética deles e de sair dos combustíveis fósseis”, relata a pesquisadora.
No fim do dia, ao apresentar o relatório Planetary Health Check 2025, que diagnostica o estado dos nove limites planetários, Rockström concluiu: “A única moeda que importa hoje é velocidade e escala. Temos apenas um orçamento de carbono e um planeta. Precisamos retornar ao espaço seguro dos limites planetários.”
Segundo o diretor, o relatório, organizado pelo Instituto Potsdam, serve como guia para a transformação necessária. “Temos um planeta em crise, mas a janela ainda está aberta.”
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