Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Em Pé de Serra (BA), a agricultura familiar tem ajudado a diminuir os impactos causados pela longa estiagem que afeta o município
Quem chega a Pé de Serra pela BA-233, principal via de acesso à cidade, é logo impactado pela beleza natural do local. Da janela do carro, dois maciços de rocha se impõem à paisagem, não deixando dúvidas sobre a origem do nome do município baiano. Mas a paisagem extremamente árida também traz, de imediato, outra constatação: o município do centro-norte da Bahia, a aproximadamente 220 quilômetros de Salvador, enfrenta uma grande seca. Tanto é assim que, em 9 de setembro, a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil publicou uma portaria colocando o município em situação de emergência devido ao longo período de estiagem.
A situação é grave, principalmente para a população da zona rural. Segundo Jorge Irineu, diretor de Meio Ambiente do município, algumas comunidades estão sendo abastecidas com carros-pipa desde outubro de 2024, portanto, há mais de um ano. Na quarta-feira (17), quando conversou com a reportagem, Jorge afirmou que, das 28 aguadas (mananciais que abastecem a zona rural), apenas duas ainda tinham água.
Pé de Serra está localizado no Território de Identidade da Bacia do Jacuípe, no centro-norte da Bahia, fazendo divisa com os municípios de Riachão do Jacuípe, Ipirá, Capela do Alto Alegre e Nova Fátima. O município, com 13.243 habitantes, tem 596,7 km² de extensão territorial, situando-se integralmente no bioma Caatinga, característica que condiciona fortemente sua paisagem, uso do solo e formas de ocupação humana.
Os impactos da seca afetam principalmente as famílias de agricultores. E a situação poderia ser muito mais grave se não fossem uma série de ações e tecnologias de convivência com o semiárido implementadas com o apoio da sociedade civil organizada, muitas delas transformadas em políticas públicas. “Se não fossem essas políticas…”, suspira Jorge Irineu.
A família de Pascoal Pinto de Jesus, que tem uma pequena propriedade de dois hectares no povoado de Lagoa do Curral, uma das áreas mais afetadas pela estiagem no município, tem se desdobrado para manter a produção de caprinos com tão pouca água. Hoje, Pascoal e a esposa Maria de Lurdes, com quem está casado há 34 anos, criam 23 cabras e algumas galinhas. Já desistiu de plantar feijão e milho há, pelo menos, cinco anos. Cansou de perder a colheita. Para ele, a situação tem se agravado com o tempo. “Antigamente, a gente perdia uma colheita a cada dez. Hoje se perde dez para ganhar uma.”
Pascoal Pinto de Jesus e Maria de Lurdes, agricultores de Pé de Serra
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
Pascoal adora criar bode. Segundo ele, “é dinheiro na mão”, já que tem mais clientes para comprar a carne do que ele pode oferecer. É a famosa lei da oferta e da procura. “Mas quando chega a seca, o produtor já perde. Tem que gastar mais para produzir menos. A criação não evolui. É, praticamente, manter o rebanho e esperar que um dia vai melhorar.”
Enquanto espera as coisas melhorarem, ele segue trabalhando com capricho. “Bode tem que ter cuidado, tem que ter zelo. Tem que limpar o local onde eles dormem, colocar água sanitária, cal, para evitar vermes.” Pascoal, que mora em uma casa a poucos quilômetros da propriedade, instalou internet e câmeras de segurança para vigiar o rebanho quando está longe.
Em meio a mais de um ano sem chuva, Pascoal vai sobrevivendo com seu esforço e também acessando políticas públicas e tecnologias de convivência com o semiárido. Há 12 anos, por exemplo, ele foi beneficiado com a construção de um barreiro para armazenar água em sua propriedade, por meio de um programa coordenado pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). O barreiro, com capacidade para 600 mil litros, quando cheio, garantiria água por dois anos. Mas não enche há quatro anos. Pascoal também recebe assistência técnica do Movimento de Organização Comunitária (MOC), por meio do programa Ater Biomas da Bahia.
A presença continuada do Movimento de Organização Comunitária (MOC), articulado à Rede ATER Nordeste de Agroecologia, foi decisiva para transformar políticas públicas em resultados concretos no município de Pé de Serra, no Semiárido baiano. Desde os anos 2000, a assessoria técnica e o trabalho de organização social contribuíram para ampliar o acesso à água, com a implantação de centenas de cisternas para consumo humano e produção, reduzindo a vulnerabilidade das famílias rurais à seca e criando condições para a retomada da produção de alimentos.
Esse apoio técnico também impulsionou a diversificação produtiva e o fortalecimento da agricultura familiar, com estímulo a quintais produtivos, criação animal, manejo da palma forrageira e adoção de práticas agroecológicas. Ao mesmo tempo, agricultores e agricultoras passaram a acessar de forma mais consistente mercados institucionais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), além de feiras locais, garantindo renda e escoamento da produção. O fortalecimento de cooperativas, grupos produtivos e espaços de participação social consolidou a atuação do MOC e da Rede ATER como um dos principais pilares do desenvolvimento rural e da convivência com o Semiárido em Pé de Serra.
Apesar do esforço de Pascoal, o terreno onde ele cria seus animais possui pouquíssima vegetação, sem praticamente nenhum vestígio de que ali já foi uma área coberta por caatinga. Antes de avançar na reportagem, é preciso entender o que aconteceu em Pé de Serra do ponto de vista econômico e social.
Por conta do solo raso, pedregoso e de fertilidade limitada, ao longo do tempo a população foi derrubando áreas de vegetação nativa para a formação de roçados, pastagens e atividades extrativistas, em um contexto de baixa disponibilidade hídrica e alta vulnerabilidade climática.
A conversão de áreas de caatinga em pastagens, devido à expansão da pecuária, ocorreu de forma contínua ao longo das últimas décadas, com o uso de máquinas agrícolas e a substituição de sistemas produtivos diversificados por áreas abertas permanentes.
Além da pecuária, o desmatamento também esteve historicamente ligado a atividades extrativas, como a produção de carvão vegetal e a exploração de madeira nativa, bem como à mineração de pedra presente no município. Essas atividades provocaram impactos diretos sobre a vegetação e o solo, frequentemente associadas à ausência de fiscalização ambiental adequada e a condições precárias de trabalho, ampliando os passivos socioambientais no território.
Outro fator relevante foi a introdução e expansão do sisal, que romperam com práticas tradicionais de manejo e favoreceram a simplificação dos agroecossistemas. A substituição da vegetação nativa por cultivos homogêneos reduziu a biodiversidade local e aumentou a exposição do solo à erosão, especialmente em anos de seca prolongada.
Maria do Carmo de Carvalho Silva, dona Dadá, e sua família
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
Em meio a uma paisagem seca e degradada, uma pequena área verde chama a atenção. Em aproximadamente cinco hectares, Maria do Carmo de Carvalho Silva, junto com sua família de agricultores, construiu uma espécie de oásis na zona rural de Pé de Serra. Pelo nome de batismo, pouca gente a conhece, mas, ao falar de Dona Dadá, todo mundo da redondeza sabe exatamente quem é. Aos 63 anos, Dadá mora na propriedade desde os anos 1980.
De lá para cá, conseguiu montar um sistema de produção bastante diversificado, com horta, criação de abelhas, vacas (20 cabeças), cabras (oito cabeças) e galinhas. A horta, orgulho de Dona Dadá, tem de tudo um pouco durante o ano inteiro. No período de chuva, ela planta uma roça com feijão, milho, batata-doce, maxixe, abóbora e mais o que consegue. Ainda tem a plantação de palma, que serve de alimento para o gado, e uma área de reserva, onde mantém a caatinga preservada.
Para manter tudo isso, além da assistência técnica do MOC, acessa vários programas e políticas públicas, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), participa da feira agroecológica todos os sábados e tem uma cisterna calçadão onde coleta e armazena água. Recentemente, comprou umas cabras com financiamento do Banco do Nordeste. “Depois que comecei no banco, agora eu nado na terra seca”.
Maria da Paz, filha mais velha de Dadá, segue os passos da mãe e do pai, Gervásio da Silva, na paixão pela agricultura. Para Maria, a grande dificuldade é a falta d’água. “Porque força de vontade, carinho e conhecimento a gente tem para plantar”, complementa. Segundo ela, apesar de a cisterna ser importante, não é suficiente para dar conta da demanda de água, principalmente em períodos de estiagem como os que a população de Pé de Serra tem enfrentado.
Para complementar a cisterna, eles têm comprado cerca de quatro caminhões-pipa de dez mil litros cada por mês. “Pagamos R$ 100 por caminhão porque somos clientes antigos. O preço normal é R$ 250.” Para cobrir os custos, ela faz um cálculo rápido. “Uma semana de trabalho na roça paga um mês de caminhão-pipa. As outras três semanas de trabalho são para tirar todo o resto.”
Mateus Jonnei, coordenador de projetos do MOC, explica que está havendo um desequilíbrio de chuvas dentro do próprio município. Já começou a chover em algumas partes e em outras não. “Antes não era assim”, relembra. Talvez Dona Dadá tenha a explicação para esse fenômeno recente. “Quando eu era criança, isso tudo aqui era mato. O homem veio e desmatou tudo. Depois de velha, ter que ver uma estiagem dessa.”
A pouco mais de 50 quilômetros de Pé de Serra, no distrito de Barreiras, no município vizinho de Riachão do Jacuípe, está um exemplo importante de como enfrentar as mudanças climáticas. Em uma pequena propriedade, Eduardo Emídio e sua esposa, Cristina Queiroz, transformaram a terra árida e degradada em uma vibrante e lucrativa agrofloresta. Uma história de relação com a terra que começou a ser construída há mais de duas décadas a partir de uma ruptura. No início dos anos 2000, ele e Cristina deixaram o emprego na cidade e retornaram à propriedade herdada da família, movidos pela ideia de preservar o pouco de caatinga que ainda existia na área. “No começo era pensamento, era ideia”, resume.
A ruptura não foi apenas do ponto de vista profissional. Era romper também com a maneira como o pai, o avô e os tios entendiam a relação com a terra. Era fazer tudo de outro jeito. “A diferença era que a gente vinha de uma cultura do desmatamento para produção de alimentos, para a criação de animais. E a gente passou a ver que, em toda seca, morria metade dos animais. Toda seca as famílias passavam fome e necessidade por conta de não ter segurança alimentar. Então a gente passou a entender que áreas que eram muito produtivas, com o tempo deixavam de ser. Foi aí que passamos a ter o entendimento de que a caatinga era importante para manter a fertilidade do solo e a produção.”
Eduardo Emídio recaatingou seu terreno e hoje lida de forma mais tranquila com a estiagem.
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
A decisão de viver da terra, no entanto, não foi imediata. Até 2005, Eduardo ainda conciliou o trabalho na indústria cerâmica com o manejo da propriedade. A virada veio com o acesso ao Pronaf, em 2005. Com um financiamento de R$ 8.500, eles investiram em um galpão para armazenar capim seco, uma máquina forrageira, o plantio de palma e a compra de caprinos e ovinos – escolhas consideradas “loucuras” à época. “Galpão era visto como casa para morar, não para guardar capim”, lembra. Do recurso ainda sobrou dinheiro para a compra de uma vaca, que acabou se tornando central na sustentabilidade financeira do projeto: ao longo dos anos, a venda de bezerros e do leite permitiu quitar integralmente o financiamento. Ao final, a vaca foi vendida para pagar a última prestação, e o restante da estrutura permaneceu.
A partir de 2010, o sistema produtivo já estava consolidado em bases agroflorestais e de sustentabilidade, atraindo visitas de entidades e organizações interessadas em conhecer a experiência. Foi também nesse período que surgiram conflitos. Eduardo relata perseguições políticas e tentativas de interferência no projeto, incluindo disputas envolvendo despejo de resíduos de esgoto e interesses ligados à indústria cerâmica. “A ameaça não era a gente, era o que a gente indicava: que dava para manter a caatinga de pé”, afirma. A disputa se estendeu por oito anos e só foi resolvida em 2018, quando a família obteve segurança jurídica para seguir com o trabalho.
Durante esse período, a relação com a comunidade também exigiu estratégias de diálogo. Eduardo conta que levou escolas e crianças para dentro da propriedade, apostando na educação ambiental como forma de reduzir resistências. “A criança voltava para casa contando o que viu: o peixe, a galinha, o cabrito, o passarinho. Isso ajudou os pais a entenderem que não éramos uma ameaça”, diz.
Hoje, a propriedade funciona com base na convivência com o semiárido. Não há poços artesianos nem rios permanentes, mas o sistema de captação de água da chuva garante abastecimento durante todo o ano. São quatro cisternas, dois barreiros subterrâneos, três barreiros convencionais e uma mandala produtiva. Mesmo após longos períodos de estiagem, Eduardo afirma não enfrentar falta de água nem perda de animais. “A gente não compra alimento, não perde animal e consegue manter a produção”.
A caatinga deixou de ser vista como obstáculo e passou a ser tratada como ativo produtivo. Em uma área de 24 hectares, quase 95% permanecem cobertos por vegetação nativa, com 40% de reserva legal. A propriedade abriga aproximadamente 40 bovinos, 90 caprinos, além de galinhas, peixes e abelhas. Segundo Eduardo, a recuperação ambiental atraiu a fauna silvestre: um levantamento recente identificou cerca de 130 espécies de animais vivendo na área. Em alguns pontos da propriedade, a temperatura chega a ficar 8 graus abaixo da média local.
Ao tirar o sustento da caatinga em pé, Eduardo chegou a ser visto como ameaça
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
A diversificação produtiva levou à criação de uma queijaria certificada, hoje a única da Bahia a industrializar laticínios a partir de produtos da caatinga. A produção inclui queijos, iogurtes, manteigas e doces feitos com frutas nativas como umbu, mandacaru, palma, licuri e maracujá-do-mato (diferente daquele que geralmente encontramos nos supermercados). Parte significativa da renda vem desses produtos, vendidos principalmente na loja da própria propriedade e em feiras agroecológicas da região.
Além de Eduardo e Cristina, mais duas pessoas trabalham na propriedade. O filho do casal, Fábio Queiroz, de 22 anos, cada vez mais tem assumido os negócios da família. Eles também contam com a ajuda de um profissional que cuida do curral. Atualmente, são produzidos 200 litros de leite por dia, que são transformados integralmente em queijo e iogurte.
Eduardo destaca que a lógica do projeto sempre foi de longo prazo. Planejado em 2000 para ser concluído em 2020, o processo de “recatingamento” só terminou em 2021. Para ele, o diferencial não está em ensinar técnicas, mas em promover entendimento. “Não é aprendizado, é entendimento. Entender que armazenar água da chuva é melhor do que furar poço; que a caatinga é produtiva; que o sistema define o animal, e não o contrário.”
Duas propriedades, uma com agrofloresta preservada outra degradada. Mais de 8 graus de diferença na temperatura entre uma e outra.
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
Esta reportagem foi produzida em parceria com a Rede Ater Nordeste.
Jornalista e cofundadora da Marco Zero. Apaixonada por imagens e manualidades.
Sérgio Miguel Buarque é jornalista, cofundador e coordenador executivo da Marco Zero Conteúdo.