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Crédito: Inês Campelo
Em meio à tristeza de mais uma eliminação da seleção, amanhã é dia de trazer à tona recordações ainda mais desagradáveis. Desde 8 de julho de 2014, associar a humilhação do 7 x 1 ao legado de obras inacabadas e arenas subutilizadas tornou-se quase uma regra na mídia brasileira.
De lá pra cá, não foram poucas as reportagens e artigos de opinião publicados relacionando à goleada ao desperdício do dinheiro público para realizar a Copa no Brasil. Você está lendo mais uma dessas matérias.
Em Pernambuco, a Arena que recebeu cinco jogos daquele Mundial é o mais conhecido exemplo de “elefante branco”. Todavia, não é o único.
A pouco menos de quatro quilômetros do estádio, um enorme terreno baldio é uma cicatriz que ajuda a recordar muita coisa: da falta de planejamento na execução das obras à estranha relação entre o Governo de Pernambuco e as empresas de transporte urbano; da pressa do Executivo e do Judiciário em retirar direitos de famílias que não tinham como lutar por suas casas à omissão do Ministério Público e dos órgãos de controle.
Um ano antes do 7 x 1, pelo menos 200 famílias viviam há décadas no Parque São Francisco, nome do loteamento que existia no exato local do terreno baldio. Todas elas tiveram suas vidas desmanteladas porque “o governo precisava de suas casas”, frase recorrente usada pelos representantes da extinta Secretaria Executiva de Desapropriações.
O objetivo era ampliar o Terminal Integrado de Camaragibe e construir quatro pistas do chamado Ramal da Copa, via de acesso à Arena.
Quatro anos após a Copa do Mundo, a ampliação do terminal nunca aconteceu e, naquele trecho, o ramal tem pista única. Pior: o terreno desapropriado com dinheiro público (quase R$ 35,6 milhões) está sendo usado como garagem dos ônibus da MobiBrasil, antiga Metropolitana, empresa do ex-deputado federal José Chaves. A empresa não gasta um centavo para usar o terreno, situação que foi confirmada pela assessoria da secretaria estadual das Cidades.
O uso da área pela empresa não é novidade. Em 2016, já tinha sido reconhecido em plena Assembleia Legislativa pelo gerente de Mobilidade da secretaria das Cidades, Gustavo Gurgel. Durante uma audiência pública, ele admitiu sem constrangimentos que o terreno tinha sido “emprestado para estocagem de veículos”.
A secretaria das Cidades respondeu assim às perguntas da Marco Zero Conteúdo:
a) Por meio de qual instrumento legal uma empresa privada conquistou o direito de utilizar como garagem o terreno público, desapropriado para fins bem diferentes? Em outras palavras: houve licitação? Há um contrato que autorize o uso do terreno pela MobiBrasil/Metropolitana? Quanto a empresa paga para usar o terreno? Se há tal instrumento legal, pedimos indicar em qual edição do Diário Oficial foi publicada, pois o mesmo não foi encontrado em nossas buscas.
O Grande Recife Consórcio de Transporte informa que, com relação à estocagem de veículos no terreno previsto para expansão do TI Camaragibe, não existe nenhum instrumento legal, pois não existe cessão do terreno para a empresa operadora.
Como a área de estocagem existente atualmente no TI é pequena, comportando apenas 20 veículos, o Grande Recife autorizou a empresa Mobibrasil a estocar momentaneamente, nos horários fora pico, o excedente de veículos, ou seja, aproximadamente 20 ônibus. Esses veículos não pernoitam no TI.
É importante salientar que a área de estocagem de qualquer Terminal Integrado é o local onde os veículos ficam aguardando temporariamente o retorno à operação.
b) Existe previsão de início das obras para ampliação do terminal? Se existe, gostaríamos de conhecer o projeto executivo que balizará tais obras.
A Secretaria das Cidades informa que a área será utilizada para a ampliação do já existente Terminal Integrado de Camaragibe. Será realizada nova licitação para a revisão do projeto de ampliação do terminal.
c) Há previsão de novas desapropriações nos imóveis vizinhos ao terreno já desapropriado?
Não existe previsão.
A professora Maria das Graças L.C. (ela pede para não ter o sobrenome divulgado para proteger o emprego do irmão, funcionário da MobiBrasil), desabafa: “Era melhor que estivesse vazio. Dá muita raiva ver que o governo fez o que fez para beneficiar a empresa de uma família de milionários”.
Maria das Graças, hoje com 44 anos, morava com os pais e três irmãos numa casa de primeiro andar. Sua família recebeu R$ 85 mil pela propriedade, metade do valor de mercado. Depois do despejo, os pais idosos se separaram. O pai, Mário, agora vive numa casa de um quarto nas vizinhanças do lixão de Camaragibe. A mãe mora com ela, no alto de uma ladeira do bairro Viana, perto do loteamento. “Foi o que deu para comprar”, explica a professora.
Marinalva Ferreira, uma das lideranças dos moradores que resistiram aos despejos, conta que, por conta da ação do governo, o 7 x 1 foi celebrado entre aqueles que tiveram suas vidas destruídas. Entre essas pessoas, está sua irmã Marivane, que não chegou a ser desalojada, mas teve de fechar sua escola no quarteirão vizinho à área desapropriada, o Educandário Bom Jesus, por falta de alunos, já que a maioria deles teve de morar em locais distantes do bairro.
A indignação de quem perdeu a casa não é compartilhada pelos promotores públicos nem por auditores do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE).
O Ministério Público de Pernambuco informou que “o procedimento em relação às famílias foi arquivado em 2014. O arquivamento se deu porque a Promotoria entendeu que os processos de desapropriação ocorreram dentro dos trâmites legais e não foi identificada nenhuma irregularidade. Sobre a situação da área onde seria construído o terminal, não há nenhum procedimento em relação ao uso do terreno”.
O TCE-PE foi mais lacônico: “Segundo informações da área técnica, não há análise no TCE da desapropriação do terreno em Camaragibe ou sobre a ampliação do Terminal de Integração do Ramal da Copa (antigo Terminal de Camaragibe). ”Aqui, é o caso de lembrar que o governador Paulo Câmara e Renata Campos, viúva do ex-governador Eduardo Campos, responsável pela desapropriação, são auditores de contas públicas do TCE.
Um trabalho acadêmico aprovado pela Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), identificou situações que promotores e auditores ignoraram.
“O fato do terminal não ter sido construído fere um dos princípios da desapropriação pelo interesse público: o da finalidade”, garante a advogada e mestre em Desenvolvimento Urbano Maria Eugênia Wanderley Lima, atualmente candidata a senadora pelo PSOL, que, à época, acompanhou o caso do loteamento São Francisco, tema da sua dissertação de mestrado.
A dissertação identifica outros aspectos em que Governo e Judiciário, “agindo em consonância”, segundo a advogada, atropelaram os direitos dos moradores do loteamento.
Para garantir o despejo imediato das famílias, o Governo do Estado alegou a “urgência”, situação prevista no Decreto-Lei 3.365 de junho de 1941, que regulamenta as desapropriações por utilidade pública. A lei determina que a propriedade do imóvel só pode ser transferida após o pagamento da indenização e ao final do processo judicial, exceto em caso de urgência. Com base nessa argumentação, a juíza Ana Paula Costa de Almeida Salazar assinou os mandados de imissão de posse, ou seja, de despejo.
Passados cinco anos e duas Copas do Mundo depois, é possível cravar: não havia urgência.
A equipe do então governador Eduardo Campos sabia disso, afinal, em julho de 2014 – depois da Copa -, respondeu a um pedido de informação do Comitê Popular da Copa em Pernambuco, informando que o projeto executivo de ampliação do terminal sequer estava concluído. A resposta textual da gerência de Comunicação da secretaria das Cidades foi que o projeto que, um ano antes era urgente, estava “em elaboração”.
Até hoje, pelo menos 10 famílias de moradores do loteamento São Francisco ainda não receberam suas indenizações. A razão para isso está, mais uma vez de acordo com a análise de Eugênia Lima, no critério adotado pela juíza da 1ª Vara Cível de Camaragibe.
“A juíza limitou-se a uma interpretação restritivas da lei 3.365/41 para tratar das questões referentes à titularidade. O registro da propriedade no Cartório de Imóveis passa a ser o único elemento possível de comprovação de titularidade, condicionando o pagamento das indenizações à apresentação da comprovação do registro”, explica a especialista em Direito Urbano.
Segundo ela, seria preciso levar em consideração o contexto de informalidade presente nas periferias das grandes cidades. Há jurisprudência para isso, pois várias sentenças dos tribunais superiores estabeleceram que basta a comprovação da posse do imóvel para receber a indenização.
É o que diz a súmula 83, de 2011, do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “são titulares de direitos possessórios firmados sobre a área reclamada na expropriação. De tal sorte, comprovada a condição de possuidor do imóvel desapropriado, e não havendo oposição fundada, séria e justa, por terceiros, não há óbice para o levantamento autorizado pela decisão impugnada”.
Pelo menos cinco processos que tratam dos casos dessas famílias estão tramitando em segunda instância no Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.