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A batalha pela liberdade do produtor cultural Ojuara

Maria Carolina Santos / 04/05/2019

O produtor cultural Ojuara, 25 anos, está preso há mais de oito meses. Ele é réu primário. Tem endereço fixo e uma atividade remunerada. O Ministério Público de Pernambuco é favorável a que espere o julgamento em liberdade. Pela letra da lei, sua prisão temporária pela suspeita de tráfico de 3,2 quilos de maconha já seria questionável. A circunstância de como ele foi detido, e mantido preso, torna o caso emblemático, expondo o despreparo da polícia e a morosidade do Judiciário. Além de tudo, Ojuara se diz inocente. E quem o conhece não tem dúvidas: ele estava no lugar errado, na hora errada.

Primeiro, é preciso saber quem é Juan Ruiz Santana, conhecido como Ojuara. Ele trabalha há anos fomentando a cultura nas periferias do Grande Recife. Descobre novos talentos, organiza festas e shows, produzindo o merchandising e vendendo os ingressos. Baile da Favela, Baile da Braba e 9K Sessions são algumas dessas festas – 9K é o nome do selo e produtora que ele criou.

Passinho: ele perdeu um olho por causa da polícia, e o Estado negou a prótese

Nos corres, Ojuara defendia que o jovem da periferia não está destinado ao crime. Há uma saída pela arte, pelo rap, pelo hip-hop, pelo bregafunk. Ajudava novos talentos a gravar de graça. Diomedes Chinaski, Mc Leozinho, Schnneider, Sevchenko e Elloco são exemplos de alguns artistas que já tocaram em eventos que ele produziu.

Agora, vamos ao dia da prisão. Foi em 17 de agosto do ano passado, uma sexta-feira. Ojuara havia ido repor ingressos do Baile da Favela – edição que ia contar com MV Bill – na loja e estúdio de tatuagem Hellcife Ink Tatoo, no Edifício Continental, perto da Rua do Sol. Era algo que ele fazia com frequência, como também ia em outros estabelecimentos e casas de shows. Era parte do trabalho. A namorada, a estudante de Direito Aryádne Melo, ia passar de carro para buscá-lo. Um amigo, Breno Williams, chegou no estúdio para pegar R$ 20 com Ojuara para ochá de bebê de um colega em comum.

Aryádne se atrasou.

Nesse meio tempo, se desencadeou uma sequencia de acontecimentos que terminariam por levar Ojuara para o Centro de Triagem Professor Everardo Luna (Cotel). Ele estava no estúdio quando pelo menos três homens surgiram gritando. Todos que estavam lá correram, inclusive o dono do local, Swelligton Dias. Era Swell, como é conhecido, que os homens procuravam. Deram um tiro na direção dele, mas atingiram a parede.

Assustado, Ojuara correu para a sala vizinha. Os homens, descobriria logo depois, eram policiais civis à paisana da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa, a DHPP. Levaram Ojuara para a sala do estúdio. Já tinham revirado tudo. Encontraram os tais 3,2 quilos de maconha escondidos na geladeira do estúdio, diz o inquérito policial. De Swelligton, nem sinal. Breno também conseguiu fugir. Só Ojuara foi levado parao DHPP, que fica no Cordeiro, e autuado em flagrante pelo artigo 33 da lei 11.343/2006, que trata sobre o tráfico de drogas.

Na delegacia, não foi comunicado que poderia se recusar a prestar depoimento, não foi dito que ele tinha direito a um advogado e ele também não falou com a família antes de depor – só pôde ligar para o pai após testemunhar. “Ele foi torturado psicológica e fisicamente”, diz o advogado de Ojuara, Victor Oliveira.

Aryádne chegou na delegacia às 17h. Disseram queo namorado não estava mais lá. Ela insistiu. Continuaram a negar. Por volta das 21h, ela viu quando o trouxeram para tirar a foto para a ficha criminal. Não conseguiu falar com ele ali. Em todo o tempo, Ojuara manteve sua inocência. Também não acusou Swell – desconhecia se ele traficava ou não.

“Na verdade, a polícia quis prender Ojuara para disfarçar sua incompetência em não prender Swelligton. Se tivessem chegado calmamente, teriam feito o flagrante do dono da loja e Ojuara seria uma testemunha”, acredita o advogado.

Para livrar o flagrante, Swell compareceu à delegacia três dias depois, acompanhado de um advogado. Afirmou que Ojuara era inocente e que a maconha pertencia a uma mulher chamada Patrícia, e que ele desconhecia o paradeiro dela. Sobre uma balança de precisão encontrada no estúdio, ele disse que era para pesar as pratas que vendia. Swell responde ao processo em liberdade. O Ministério Público não acreditou na versão dele: ele é considerado o principal suspeito do crime pelo qual Ojuara está preso.

Breno Williams compareceu na delegacia horas depois da prisão do amigo. Prestou depoimento e no inquérito foi colocado como testemunha e como suspeito – o que é estranho, já que ainda valeria o flagrante, se fosse o caso. Ele ainda não foi intimado a fazer sua defesa inicial na Justiça

A intransigência do judiciário

Na audiência de custódia, Ojuara contou para Aryádne que a juíza nem olhou na cara nele. O caso foi encaminhado para a 4ªVara Criminal, do juiz Gilvan Macêdo dos Santos. O então advogado de Ojuara pediu a revogação da prisão em primeira instância e sumiu. E o pedido passou meses lá sem mudança.

E aqui, um breve parênteses, caso você esteja achando o nome do juiz conhecido: no final de 2017 ele lançou o livro “A discriminação do gênero-homem no Brasil em face à Lei Maria da Penha”. Nele, defendia que os homens eram injustiçados pela lei. Houve polêmica e ocorreram dois cancelamentos do lançamento. “A lei está contribuindo para a destruição de muitas famílias”, afirmou o juiz, em entrevista à revista Galileu. À Folha de Pernambuco, disse que “quando os conflitos começam entre ambos, havendo o conhecimento da Lei Maria da Penha, muitas mulheres provocam os homens”.

Em dezembro, o rapper Diomedes Chinaski postou um pedido de ajuda para Ojuara. Era preciso um novo advogado. A família já havia tido problemas com dois – um deles, nem OAB tinha. Foi quando o criminalista Victor Oliveira, conhecido de Diomedes, entrou no caso. Logo lembrou: já havia “defendido” Ojuara antes. Um mês antes de ele ser preso, os dois estavam em um bar no Festival de Inverno de Garanhuns, quando Ojuara pagou uma cerveja e o atendente o cobrou de novo. “Eu ‘testemunhei’ a favor dele e nos apresentamos”, relembra Victor.

O Gabinete de Assistência Jurídica Popular, o Gajop, também entrou no caso, com a advogada Thaisi Bauer. Passaram a trabalhar juntos. Na primeira instância, o MP opinou pelo deferimento da soltura, com uso de monitoramento eletrônico.

Em 20 de março, o juiz Gilson Macêdo dos Santos negou o pedido. Era esperado. Desde que assumiu a 4ª Vara Criminal, em 2016, este juiz nunca revogou prisão de acusados de tráfico de drogas.

Amigos e familiares de Ojuara em frente ao tribunal de Justiça de Pernambuco, no dia em que o julgamento do habes corpus foi adiado. Foto: Beto Figueroa

Amigos e familiares de Ojuara em frente ao tribunal de Justiça de Pernambuco, no dia em que o julgamento do habes corpus foi adiado. Foto: Beto Figueroa

O despacho que ele fez é curto e genérico. Um terço das 14 linhas foi usado para citar dados gerais da violência em Pernambuco “em média, 7 ônibus são assaltados todos os dias em Recife. Os levantamentos indicam, ainda, que neste Estado, nos últimos dois meses, houveram (sic) 12 assaltos a bancos; 6 mulheres foram estupradas a cada dia; além de ocorrerem 225 crimes violentos contra o patrimônio diariamente”, escreveu o juiz, justificando a manutenção da prisão apenas pela gravidade do crime.

O pedido de habeas corpus já havia sido protocolado, antes mesmo da decisão sobre a revogação da prisão. Era para ser algo rápido, mas levou mais de um mês para o julgamento do HC entrar na pauta. Novamente, o MP opinou pela soltura de Ojuara. Na terça-feira passada, cerca de 40 amigos, amigas, familiares e ativistas foram até o Tribunal de Justiça, na Praça da República. Pouco antes do julgamento, ficaram sabendo do adiamento. O desembargador responsável estava de licença médica.

Agora, a esperança tem nova data: nesta terça-feira, 7 de maio, a partir das 14h. É um julgamento rápido, em que é decidido se o suspeito deve ou não ser mantido preso enquanto se desenrola o processo. Há uma sustentação oral de no máximo 15 minutos, que será feita pelo advogado Victor Oliveira, e depois o desembargador se pronuncia. Amigos, parentes e integrantes da cena do hip-hop pernambucana já estão mobilizados para acompanhar a sessão.

Mobilização cultural

A prisão de Ojuara caiu como uma bomba na cena musical pernambucana. Com 800 mil ouvintes mensais no Spotify, Diomedes Chinaski é um dos amigos mais próximos de Ojuara. E um dos rappers mais talentosos da sua geração. Os dois se conheceram há mais de dez anos quando Ojuara ainda não tinha adotado esse nome. “Era só Juan”, conta Diomedes, do Rio de Janeiro, onde se apresenta neste fim de semana. No início da carreira, um ajudava o outro a pagar almoço e passagem de ônibus.

Mesmo com a agenda cheia, Diomedes insistiu em dar seu depoimento para esta reportagem. “Ojuara é um cara que percebeu o quanto que a gente, que é de periferia, que tem um estereótipo de favela, é desacreditado e excluído”.

Diomedees Chinaski

Diomedes Chinaski

Em vídeos nas redes sociais e nos shows, o artista não deixou que os oito meses de prisão de Ojuara fossem esquecidos. “Você pega um jovem de periferia com um potencial criador – um cara sensível, que foi um dos primeiros a alertar para a necessidade de se conscientizar sobre o machismo nos bailes. Aí você pega esse cara e o coloca na cadeia e acha que está resolvendo alguma coisa. Que tipo de política (contra as drogas) é essa? Infelizmente estamos vendo outros casos no Brasil, como o de Rennan da Penha (do Baile da Gaiola, no Rio de Janeiro, preso e condenado por tráfico)”.

Diomedes destaca a questão social na prisão de Ojuara. “Não tem como você não morar na periferia e não conhecer alguém que use drogas, que faça assaltos. É impossível. E você não vai renegar a amizade dessa pessoa. Mas é aquela parada…qual jovem de classe média seria preso por uma droga que não estaria com ele, que estaria escondida dentro de uma loja, um lugar público? Nenhum. A gente sabe como pesa o fato de ser de Abreu e Lima, a gente sabe como pesa a questão social”.

“Existe um código nas ruas de que se a parada é sua, você não pode envolver outras pessoas que não estão mexendo, não estão se envolvendo. Foi muito triste Ojuara ser preso nisso, porque ele não sabia que havia droga ali. A pessoa foi covarde com ele. Foi logo em um momento em que 9K estava decolando muito e ele estava muito feliz. As coisas estavam começando a dar certo financeiramente e acontece isso”, lamentou Diomedes.

Entre o desespero e esperança

O Cotel fica em Abreu e Lima, mas é como se fosse uma filial do inferno: celas superlotadas de homens que passam meses, e até anos, amontoados à espera de um julgamento. Na primeira visita de Aryádne a Juan eles não imaginavam que a estadia ali iria durar tanto. “Ele estava péssimo, mas esperançoso. Afinal, ele não era o dono da loja. Assim como ele estava ali, qualquer outra pessoa poderia estar”, lembra.

Nos dias, semanas e meses que se passaram desde então, a esperança se alternou com o desespero. A primeira visita de Victor a Ojuara foi em dezembro. “Ele estava muito abalado psicologicamente, mas passando muita verdade no que dizia. Ele não via a hora de voltar a trabalhar. Estava muito preocupado com a mãe, pois era ele quem complementava a renda dentro de casa”, diz.

Por conta da falta de higiene na prisão, Ojuara está com uma infecção contagiosa na pele. A família levou remédios, mas não adiantou. “Outros presos também estão com a doença, o ambiente é péssimo…não há assistência nenhuma ali dentro”, diz Aryádne, entre a tristeza e a indignação. “Ele está muito ansioso com o julgamento do habeas corpus, mas eu digo que graças a Deus que ele está vivo. Porque os policiais atiraram quando entraram no estúdio e poderiam ter atingido ele”.

No Facebook de Ojuara há várias fotos dele com uma criança. Pergunto se é filho dele. “É sobrinho. O outro sobrinho nasceu faz um mês”, responde Aryádne. Pede que eu não fale com a mãe dele – ela fica muito emocionada ao falar do filho.

Perto de se formar em Direito pela Unicap, Aryádne já conhecia como a Justiça funcionava. E segue chocada. “No começo do curso, pensamos que as coisas acontecem do jeito que está escrito na lei. Mas na maior parte a prática é muito diferente, é muito do juízo de valor de cada juiz. Você já foi em um julgamento? Às vezes o juiz só diz ‘provido’ ou ‘não provido’. E é isso. Não percebem que estão lidando com vidas”.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org