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A sub-reparação da política de cotas

Marco Zero Conteúdo / 23/10/2025

Crédito: arquivo Agência Brasil

por Ícaro Nejaim*

A política de cotas, criada para reparar desigualdades históricas e garantir diversidade no acesso a universidades e concursos públicos, continua no centro de debates sobre sua efetividade. Fundamentada na articulação entre raça e classe na formação social brasileira, ela parte do reconhecimento de que a igualdade formal não tem garantido o acesso da população negra, indígena e quilombola aos bens e à riqueza socialmente produzida. Sob a aparência de um “igual direito burguês”, o sistema preserva desigualdades estruturais que seguem impedindo o pleno exercício da cidadania.

As ações afirmativas são políticas públicas voltadas a corrigir desigualdades acumuladas ao longo de gerações. Os movimentos negros foram pioneiros nessa luta no Brasil, reivindicando o direito de ocupar espaços historicamente negados, como o ambiente acadêmico. A partir dessas reivindicações, o Poder Legislativo instituiu leis específicas para garantir o ingresso de pessoas pretas, indígenas e quilombolas em universidades públicas federais por meio do sistema de cotas.

A legislação mais recente, a Lei no 15.142/2025, ampliou para 30% o percentual de vagas reservadas em concursos públicos federais — sendo 25% para negros, 3% para indígenas e 2% para quilombolas. Na prática, porém, sua implementação tem mostrado limites importantes.

Em julho de 2025, por exemplo, a retificação do edital federal do Exame Nacional de Residências (Enare) alterou essas porcentagens durante o período de inscrições, retirando a possibilidade de escolha de cursos e reduzindo o percentual de cotas para indígenas e quilombolas — de 5% para 3% e de 5% para 2%. Com isso, tornou-se praticamente impossível assegurar ao menos uma vaga para esses grupos na maioria dos programas.

Essas mudanças, ainda que apresentadas como adequações à nova lei, levantam dúvidas sobre o tipo de inclusão que se pretende. Em muitos processos seletivos, o número de vagas é tão pequeno que as porcentagens reservadas dificilmente se traduzem em acessos concretos. São necessárias 17 vagas para garantir o ingresso de uma pessoa indígena e 25 para uma quilombola — um cenário distante da realidade da maioria dos concursos, que raramente chegam a esse quantitativo.

O Enare, criado pela Portaria MEC no 329, de 23 de abril de 2025, é um processo seletivo unificado, de alcance nacional, voltado à seleção de candidatos para Programas de Residência Médica e de Residência Multiprofissional em Saúde. Realizado pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh/MEC), o exame tem como objetivos democratizar o acesso, ampliar a transparência, uniformizar critérios de seleção, garantir oportunidades justas a todos os candidatos, otimizar a ocupação das vagas e reduzir custos operacionais das instituições participantes.

Contudo, as recentes modificações no edital e a dificuldade de aplicar plenamente a lei de cotas expõem uma contradição: a política que deveria ser um instrumento de justiça social acaba se tornando, muitas vezes, uma sub-reparação. Reconhece a desigualdade, mas não a transforma. A promessa de equidade permanece no campo simbólico, enquanto o acesso real — especialmente de indígenas e quilombolas — segue restrito.

A modelagem matemática prevista na Lei de Cotas (2025), que estabelece a reserva de 25% das vagas para candidatos pretos e pardos, 3% para indígenas e 2% para quilombolas, foi pensada para contextos com grandes números de vagas. Quando aplicada a editais com quantitativos pequenos, essa lógica deixa de produzir efeitos concretos e acaba distorcendo o propósito da política afirmativa.

No caso do Enare, a maioria dos programas oferece poucas vagas, o que compromete a aplicação dos percentuais previstos em lei. Tomando como exemplo a especialidade de Psiquiatria — incluindo as subáreas de Psiquiatria Forense e Psiquiatria da Infância e Adolescência —, os dados do Enare 2025 indicam um total de 255 vagas. A aplicação correta da lei sobre esse conjunto resultaria em 64 vagas destinadas a candidatos pretos e pardos, oito para indígenas e cinoc para quilombolas, totalizando 77 vagas reservadas (30%).

Entretanto, quando o cálculo é feito separadamente em cada programa, e não sobre o total de vagas da especialidade, a reserva mínima para indígenas e quilombolas simplesmente deixa de existir. Aplicando os 25% de forma fragmentada, até mesmo os candidatos pretos ficam com um número menor de vagas do que o previsto — 55 em vez de 64 — o que mostra o descompasso entre a intenção da lei e sua aplicação prática.

Esse tipo de distorção não é um detalhe técnico. É justamente nele que a política perde sentido. A lei, que deveria corrigir desigualdades, acaba esbarrando em uma lógica burocrática que neutraliza sua força reparadora. O resultado, no caso da psiquiatria, fala por si: 0% para indígenas, 0% para quilombolas e 21% para pretos e pardos.

Nesse ponto, a pergunta muda de lugar. Não se trata apenas de aplicar percentuais, mas de compreender o que está em jogo quando uma política de reparação se torna incapaz de reparar. Quando o reconhecimento não se converte em acesso, o que temos é uma sub-reparação — um gesto de justiça que não alcança a realidade.

Talvez o desafio esteja aí: reconstruir os próprios modos de implementar a política, repensar seus critérios e instrumentos, para que a reparação não se limite à aparência de inclusão. Só assim será possível que ela cumpra o que promete: abrir caminhos reais para quem historicamente foi deixado de fora.

*Médico de família e comunidade do povo Xukuru do Ororubá

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