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Crédito: Arquivo de família
Quando saiu do apartamento do irmão Marcelo, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 23 de fevereiro de 1974, o militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), Fernando Santa Cruz de Oliveira deixou um aviso premonitório: se não voltasse até 18h, com certeza teria sido preso. Eram 16h de um sábado de Carnaval, e três dias antes, ele tinha completado 26 anos. Trabalhava no Departamento de Águas e Energia Elétrica, em São Paulo, onde vivia com a mulher, Ana Lúcia Valença de Santa Cruz. Casaram em janeiro de 1970 e tiveram um filho, Felipe Santa Cruz de Oliveira, que estava com um ano e dez meses.
Fernando sabia o que dizia porque, mesmo vivendo “na superfície” (trabalhava numa empresa pública, tinha endereço fixo, era casado, tinha filho), estava saindo para encontrar outro militante da organização que estava na clandestinidade e era procurado pelos órgãos da repressão, o também pernambucano Eduardo Collier Filho, de 25.
Era a estratégia usada pela geração que ousou enfrentar a ditadura. Após alguma prisão pelos órgãos de repressão, seguida de condenação em tribunais militares, muitos resolveram não encarar voltar à cadeia e passaram a lutar de forma clandestina.
Em 1972, Collier tinha sido julgado à revelia pela 1ª Auditoria da Aeronáutica, em São Paulo, por “tratar-se de pessoa integrada a uma organização clandestina, nos temos da Lei de Segurança Nacional”. Teria que passar dois anos na cadeia. Preferiu resistir trocando nome e identidade. Collier usava a identidade falsa de João Cruz Soares, e os codinomes “Ulisses”, “Duda” e “Anjo Barroco”. Eduardo era procurado pelos órgãos de repressão. Fernando, não.
O caso de Santa Cruz era diferente. Ao ser preso em 1966, numa passeata estudantil contra o acordo MEC-USAID, no Recife, ainda não tinha 18 anos, então ficou detido apenas uma semana no Juizado de Menores. Não tinha sido fichado.
Naquele dia, o assunto que restava aos dois militantes, deveria ser o único possível naquele momento – sobreviver a uma sucessiva e misteriosa série de “quedas” e assassinatos do comando da APML, em diferentes estados, desde outubro do ano anterior.
O catarinense Paulo Stuart Wright, fora pego em 5 de outubro de 1973, em São Paulo. O paraibano Umberto Câmara Neto “caiu”, três dias depois, no Rio de Janeiro. Dia 19, foi preso o mineiro José Carlos Novaes da Matta Machado, o “Zé”, quando tentava sair de São Paulo para chegar a Belo Horizonte, onde a família organizava um plano para tirá-lo do Brasil. O também mineiro Gildo Macedo Lacerda estava em Salvador, em 22 de outubro, quando a repressão o alcançou.
O recado para a família parecia uma certeza. Menos de duas horas depois, foram seqüestrados por agentes do Destacamento de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Nunca mais foram encontrados.
Todos os seis integrantes da organização, presos num intervalo de 168 dias, foram assassinados. Apenas um militante da APML não se tornou um desaparecido: o mineiro “Zé”, graças à atuação da advogada pernambucana Mércia Albuquerque, que localizou sua cova e corpo, num cemitério do Recife, logo após seu assassinato, conseguiu fazer a exumação e enviar seus restos mortais para a família, em Belo Horizonte.
Depois das mortes, da luta das famílias pelos corpos e pela verdade, a ditadura estabeleceu um silêncio absoluto sobre os desaparecidos. O corpo de “Zé”, o único devolvido aos familiares, seguiu do Recife para Belo Horizonte, com uma condição – o caixão não poderia ser aberto.
Em agosto de 1984, o ex-militante da AP Gilberto Prata Soares procurou sua irmã, Maria Madalena Prata Soares, ex-companheira do Zé. Ambos viviam na Paraíba. Atormentado pelas sombras do passado e acossado pelo álcool, disse que tinha “uma história” para contar.
“Fui eu quem entregou o Zé”, confessou. Era uma história tenebrosa e envolvia muita gente dos dois lados.
Disse que tinha sido preso em fevereiro de 1973 por agentes do DOPS de Goiânia, onde morava. Queriam saber onde estava o Zé, que naquele momento estava fora do radar da repressão. Estava fazendo militância no Nordeste, vivendo na periferia de Fortaleza, com sua companheira, Madalena, e o filho, Eduardo. Filho do eminente jurista e ex-deputado federal de Minas Gerais, Edgard de Godói da Mata Machado, era uma das principais lideranças da APML.
Gilberto, que tinha sido da AP e estava fora das atividades da organização, aceitou trabalhar para a repressão. Segundo ele, temia pela segurança física de sua mulher, e das irmãs Marta e Madalena. Concordou em entregar o cunhado, desde que as duas fossem poupadas. Na linguagem do período, ao concordar trabalhar para os militares, tornou-se um “cachorro”.
Ele gravou um depoimento para a irmã, relatando o submundo da repressão. Dizia-se impressionado com a estrutura de operações montadas pelos órgãos de repressão. Não faltavam recursos e tecnologia para aparelhar escutas e sistemas de monitoramento, com o envolvimento de muitos homens, órgãos, estratégias.
Incorporado às ações de inteligência, Gilberto começou a ser orientado e coordenado, agindo sob rígido controle. Levou alguns meses, até que se aproximou da cúpula da APML. Disse aos companheiros que tinha apanhado muito, e que era melhor voltar à luta. Foi aceito sem ressalvas.
Começava a caçada. Encontrar Gilberto Prata representava, neste momento, cair nas garras da repressão.
“À medida que alguém entrasse em contato comigo eles tinham condições de segui-los e de encontrá-los. Um processo prolongado, demorado”, contou Gilberto.
“Existia um controle terrível”, prosseguiu. Os caras tinham dinheiro para poder fazer um controle enorme em volta, um controle tipo de escolher o endereço onde você vai ficar, e você sair de um lugar e acompanhar”.
Naquele momento, ele admitia que ainda tinha documentação falsa, fornecida pelos próprios órgãos da repressão.
“Até mesmo me forneceram uma carteira, com nome falso, que eu tenho até hoje ainda, eu possuo ela tirada da PF em Brasília”.
Gilberto assumiu o papel de “delator itinerante” e recebeu uma missão trágica para a APML – viajar, faz contatos. Ninguém da APML desconfiava.
O relato sobre os últimos dias a organização é brutal.
“Recife caiu em 17 de outubro, Salvador em 18 de outubro, o Zé em 19 de outubro… E eu saí de Recife e fui pra Bahia, e da Bahia fui para o Rio e do Rio de Janeiro para São Paulo, e caiu qualquer coisa no Rio nesse período”.
A gravação, naquele momento, causou um forte impacto nas poucas pessoas que as escutaram. As duas fitas K-7 ficaram guardadas, até porque o Brasil ainda estava nas mãos dos militares.
Somente em 1992, com o Brasil respirando ares democráticos, Gilberto tornou pública sua infiltração na APML. Em novembro, na Comissão Externa dos Desaparecidos Políticos da Câmara dos Deputados, usou a velha gíria da repressão para definir o que aconteceu, entre setembro de 1973 e fevereiro de 1974.
“No período, quem era da AP e entrou em contato com José Carlos, Gildo, Madalena e comigo, dançou”.
Foram necessários mais 22 anos, para que os depoimentos de Gilberto Prata se consolidassem em documentos, produzidos pela própria ditadura.
Em 23 de julho de 2014, foram entregues à Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco, documentos inéditos da “Operação Cacau”, promovida por agentes do regime militar na Bahia, em articulação com ações desenvolvidas em São Paulo e Pernambuco, com o objetivo de desmontar a APML, através de seqüestros, prisões, transferências clandestinas de prisioneiros e assassinatos.
É um calhamaço de 84 páginas, produzidas pelos órgãos de repressão, com fotos, relatos, depoimentos. Amanhã, outra matéria irá detalhar todo essa documentação.
Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.