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Estudantes tentam acessar a Vila Naval em ato contra o fechamento da Escola Almirante Tamandaré. Crédito: Resiste Santo Amaro
Por Felipe dos Santos*, integrante do coletivo CINE S.A**
Em minha vida passa um rio
E se erige uma cidade
Podre as águas desse rio
Sob o tom cinza da cidade
Mangue aterrado
Esgoto a céu aberto
Em mim há lama
E há lama em mim
CANTO DE AMOR E LAMA II (ERICKSON LUNA)
Fazendo parte do anel central da cidade do Recife e compreendendo uma porção de seu centro histórico e do centro expandido, o bairro de Santo Amaro segue um processo de formação territorial comum aos demais territórios alagadiços da cidade do Recife. Foi formado por ocupações sob o mangue aterrado, conhecidas como mocambos.
Apesar de hoje a maior parte das casas ser de alvenaria, ainda era muito comum ver, há algumas décadas, a água minar do chão quando chovia. Parece que ainda faz sentido caracterizar o Recife como o fez o geógrafo Josué de Castro, sendo essa “mistura incerta de terra e de água” (1948), que, nas palavras do poeta marginal santo-amarense Erickson Luna, é a lama sob a qual “se erige uma cidade”.
Um dos vetores iniciais de ocupação deste território, onde hoje configura o bairro de Santo Amaro, foi a extração de sal nas salinas que se formavam às margens do Rio Beberibe, no século XVII. Já no final do século XIX, com a abolição da escravatura no Brasil, temos mais um importante momento de sua ocupação por pessoas ex-escravizadas, assim como no início do século XX, a partir de fluxos migratórios de pessoas que chegavam ao litoral fugindo das secas severas e também das áreas da monocultura latifundiária da cana-de-açúcar, em função da crise na produção açucareira.
Segundo dados do IBGE, o bairro de Santo Amaro possui uma população residente de 27.979 habitantes, sendo formado por nove aglomerados subnormais (IBGE, 2010) e compreende a área de duas ZEIS – Zona Especial de Interesse Social, a ZEIS Santo Amaro e a ZEIS João de Barros, sendo definidas como “áreas urbanas caracterizadas como assentamentos habitacionais surgidos espontaneamente, existentes e consolidados, onde são estabelecidas normas urbanísticas especiais, no interesse social de promover a sua regularização jurídica e sua integração na estrutura urbana” (LEI MUNICIPAL, 14.511/1983).
Além de problemas urbanos já conhecidos e enunciados em relação ao bairro, como tráfico de drogas, violência policial e urbana, falta de saneamento, de equipamentos culturais, entre outros, atualmente esse território tem sido palco de novas disputas por esse espaço de localização privilegiada e que possui inúmeras amenidades, como o fato de situar-se de modo limítrofe entre dois municípios, ocupar a frente d’água, ser cortado por grandes avenidas, possuir importantes equipamentos relacionados à saúde e à educação e ser a periferia mais central da cidade.
Em 2015, a comunidade de Santo Amaro recebeu a notícia: no próximo ano não haverá mais atividades na Escola Estadual Almirante Tamandaré. Circulava a informação de que a área pertencente à Marinha seria vendida e daria lugar ao “Plano Específico Santo Amaro Norte”, um plano urbanístico que, entre outras transformações na paisagem do bairro, previa a construção de torres de uso comercial e residencial.
Para a antropóloga Vânia Filho “o crescente processo desenvolvimentista vivenciado nos últimos anos na cidade de Recife faz de Santo Amaro uma área de interesse para futuras especulações imobiliárias”. De que modo esse contexto serviria como “pano de fundo” para algumas ações que vêm ocorrendo no bairro, como o recém fechamento de uma escola pública? Quais projetos de bairro estão sendo pensados por parte do poder público sem levar em consideração os sujeitos da localidade que se encontram alheios e atingidos pelas ações institucionais?
Era o ano de 2014 quando o autor deste texto (que é também morador do bairro de Santo Amaro), cursava a disciplina de Estágio Supervisionado I no Curso de Licenciatura em Geografia pela UFPE. O objetivo da referida disciplina era possibilitar que os futuros professores tivessem uma primeira aproximação e entendimento do funcionamento de uma instituição educacional.
Como atribuição, o estudante tinha que levantar informações sobre a escola. Resolveu, então, realizar esta visita de estágio na Escola Estadual Almirante Tamandaré. Naquele momento já circulavam boatos de que a escola poderia fechar. Uma especulação muito antiga, mas que vinha ganhando ainda mais força pelo fato de, neste mesmo ano, a Prefeitura do Recife ter apresentado a minuta do Plano Urbanístico para a área. Na ocasião, funcionários com quem conversei negaram a possibilidade de fechamento da unidade.
Não foi o que aconteceu.
No ano seguinte, após conclusão do ano letivo de 2015, os estudantes foram comunicados pela gestão da escola sobre o encerramento das atividades e o fechamento da instituição. A maior parte dos ex-estudantes da Escola Estadual Almirante Tamandaré acabou sendo realocada para a Escola Estadual Sylvio Rabelo e a EREM Aníbal Fernandes, isso no ano de 2016.
A Secretaria de Educação de Pernambuco alega que deu aos pais dos alunos a opção de transferência para outras 10 unidades de ensino na região e que nenhum estudante ficou fora da sala de aula. Segundo a Secretaria, a escola foi desativada porque precisava de reformas e reparos, mas o prédio pertence à Marinha e “os trâmites não eram da responsabilidade do governo estadual”. Os pais teriam sido informados do motivo.
A Escola de Aprendizes-Marinheiros de Pernambuco, administradora da Vila Naval, informou que o contrato de cessão de uso do prédio foi encerrado em 2016 por iniciativa do Governo do Estado e que atualmente “o imóvel é utilizado para abrigar atividades administrativas da Marinha”.
A ex-aluna da Escola Almirante Tamandaré, Juliana dos Santos, fala como foi a mobilização para o não fechamento da escola, sobre sua mudança para outra instituição e as dificuldades que passou: “Eu só sai do Almirante quando fechou tudo e fui para o Sylvio Rabelo. Foi um impacto muito grande, porque a gente tava batendo de frente a tudo, dando depoimento, eu tava indo para a GRE direto pra tentar conseguir que o colégio ficasse para os alunos, mas foi muito difícil. Para as professoras também foi um impacto muito grande, até hoje eu mantenho contato com todas.”
Já no ano de 2017, durante as atividades de cineclubismo nas instituições de ensino do bairro de Santo Amaro com o Cine S.A, grupo de comunicação comunitária e produção audiovisual periférica, era comum ouvir dos ex-estudantes da Escola Almirante Tamandaré, quando questionados sobre os possíveis motivos do fechamento da escola, que estava relacionado ao mau comportamento dos estudantes, em função de circularem em áreas restritas da Marinha. Eram inúmeras as reclamações que recebiam, era comum também a presença de representantes da Marinha nas dependências da unidade educacional para passar orientações e fazer queixas.
Ainda no ano de 2017, o então secretário de Planejamento Urbano do Recife, Antônio Alexandre, passa a aparecer de modo constante nas TVs locais e outros veículos de comunicação anunciando o Plano Específico Santo Amaro Norte, um plano urbanístico “que estabelece diretrizes, parâmetros e condições de parcelamento, uso e ocupação do solo, assim como intervenções urbanísticas para a área de sua influência”, no caso, a parte norte do território da Zeis Santo Amaro.
Em seu artigo de número 3º, dentre outras diretrizes, o plano prevê “a implementação de novos empreendimentos e equipamentos públicos e privados”. Ao que parece, logo à primeira leitura do supracitado plano, é que ele se configura como uma possibilidade de tirar do papel um projeto muito antigo de “integração das periferias” entre Recife e Olinda e de “conexão” de toda essa frente d’água que inclui ainda a Rua da Aurora e a Prefeitura do Recife, se relacionando com outros projetos como o Novo Recife – no Cais José Estelita – e a Via Mangue.
O foco principal do projeto é a construção das torres de uso comercial e residencial na área da Vila Naval. As transformações e melhorias direcionadas para o bairro de Santo Amaro e que estão propostas no plano, como abertura de avenidas, calçamento, requalificação do patrimônio do bairro, geração de emprego e renda, parecem uma preparação de terreno para a chegada dos megaempreendimentos imobiliários.
Assim como é comum vermos na relação que se estabelece entre os diferente agentes sociais que produzem o espaço urbano, e afirma o geógrafo Roberto Lobato Corrêa, “os proprietários de terra bem localizadas, valorizadas por amenidades físicas, como o mar, lagoa, sol, sal, verde, agem pressionando o Estado visando a instalação de infra-estrutura urbana […] Campanhas publicitárias exaltando as qualidades da área são realizadas, ao mesmo tempo que o preço da terra sobe constantemente”.
O projeto prevê também a ampliação da área da ZEIS Santo Amaro e promete solucionar a questão da regularização fundiária, uma questão antiga do bairro, relacionada à luta histórica dos moradores pela posse da terra. Vale lembrar do caso emblemático da comunidade da Ponte do Maduro, cujo processo de regularização fundiária com a devida entrega do título de posse da terra para os moradores durou algumas décadas para ser iniciado.
Também é discutível a participação da população da localidade na elaboração do Plano Santo Amaro, assim como a acolhida por parte do poder público para que suas demandas e reivindicações sejam ouvidas e atendidas.
O fechamento da escola e os interesses do setor imobiliário no bairro de Santo Amaro, e em específico na área da Vila Naval, são questões que não se apresentaram relacionadas entre si no discurso dos moradores em geral e parecem não ser bem percebidas pelos sujeitos locais. Mas a educadora e moradora do bairro, Derivalda França, percebe o que ficou para trás. “Infelizmente, o fechamento da escola foi uma perda para a comunidade, principalmente para os jovens, porque a gente perde uma escola, a gente perde um pouco da nossa identidade e perde um pouco da nossa história junto com ela”.
Compreendemos o fechamento da Escola Almirante Tamandaré como um tipo de prática espacial conhecida como “antecipação espacial”, uma “prática definida pela localização de uma atividade em um local antes que condições favoráveis tenham sido feitas”, como aponta o geógrafo Roberto Lobato Corrêa.
Quais contrapartidas (algo que não está bem colocado no plano) para cada área construída será revertida em benefícios e melhorias de fato para a comunidade? Quantos empregos serão gerados concretamente para a população residente no bairro? Por que os moradores cujas casas estão previstas para serem retiradas no plano, não poderão ser realocados para as torres que serão construídas na área da Vila Naval? Como serão minimizados os impactos do fechamento da Escola Almirante Tamandaré para o bairro de Santo Amaro? E, sobretudo, como reverter a perda da memória do bairro e de sua identidade que acabaram indo junto com a escola? Como recriar espaços para que, ali, os jovens de Santo Amaro possam gestar novos sonhos de vida, de bairro e de cidade?
Esses questionamentos foram encaminhados pelo autor deste texto à Prefeitura do Recife e ficaram sem respostas da gestão do ex-prefeito Geraldo Julio e do atual prefeito João Campos.
No ano de 2017, após inúmeras mobilizações da sociedade civil, o Ministério Público do Estado de Pernambuco entrou com uma ação civil pública visando a declaração de nulidade do Plano Santo Amaro Norte. Até o momento, o projeto não saiu do papel.
No final de dezembro de 2020, a Câmara de Vereadores aprovou a revisão do Plano Diretor do Recife, que define os parâmetros da ocupação do território da capital para os próximos dez anos. Dezesseis áreas da cidade poderão ter coeficientes de construção superiores ao estabelecido no documento. Não por acaso, entre elas está Santo Amaro/Vila Naval.
* Felipe dos Santos tem 26 anos, é nascido e criado no bairro de Santo Amaro, tem formação em Geografia pela UFPE e é realizador audiovisual.
** O Cine S.A é um grupo de ações cineblubistas, comunicação comunitária e produção audiovisual no bairro de Santo Amaro e demais periferias da cidade do Recife.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.