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Por Vinícius Andrade, especial para a Marco Zero Conteúdo
Uma numerosa plateia lotou no sábado (19) o auditório do Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, para estar com Angela Davis. A conferência foi, a um só tempo, a primeira atividade em sua passagem pelo país e o encerramento do seminário “Democracia em colapso?”, organizado pela editora Boitempo em parceria com o Sesc São Paulo, atraindo um público majoritariamente jovem, mas, sobretudo, atento às palavras da ativista e filósofa norte-americana. E Davis, referência no mundo para as lutas feministas negras, anticoloniais e anticapitalistas, esteve empenhada desde o início em encorajar a solidariedade entre as diferentes lutas travadas hoje: “Marielle Franco sabia que a liberdade é uma luta constante”.
A frase faz menção ao seu último livro publicado, lançado na sequência de uma autobiografia escrita há trinta anos (quanto ela própria tinha apenas vinte e oito), mas só em 2018 apresentada ao Brasil. E embora a idade possa sugerir uma iniciativa precoce, Angela já havia vivido naquele momento uma série de experiências-limite, como explicou Adriana Ferreira da Silva ao convidá-la ao palco: o tempo em “Dinamite Hill” – bairro assim conhecido pelos recorrentes bombardeiros tramados por supremacistas brancos -, a mudança do sul para o norte do país e a constatação da permanência do racismo, o engajamento no Movimento Black-Power e a filiação ao Partido Comunista, a perseguição do estado, a prisão política e a soltura.
A partir de um ponto de vista para o qual a interseccionalidade é uma condição de possibilidade para uma abordagem efetivamente estrutural das injustiças sociais, em reforço à ideia de que “quando as mulheres negras se movimentam em direção à liberdade, elas não estão representando apenas a si mesmas”, Davis confrontou evidências de cerceamento à liberdade “constitutivas” da democracia liberal. E a evidência eleita por ela na tarde de ontem, em linha de continuidade com suas vivências nos movimentos e trajetória de estudos, foi o sistema prisional.
Uma reflexão despontou com toda força no decorrer de sua exposição, de que o encarceramento em massa “é a negação da liberdade transformada em padrão social”. Pior: a hegemonia da prisão na sociedade norte-americana (e a ativista lembrou que a população carcerária brasileira é a terceira maior do mundo) pode chegar a ser considerada um sinal de que a democracia vai bem, numa evidente inversão dos valores que deveriam ser nutridos em uma sociedade livre. Lá nos Estados Unidos como cá no Brasil, sugere ela, a articulação entre mecanismos prisionais e práticas liberais remete à formação dos estados e permite situarmos as instituições carcerárias como desdobramentos de um passado escravocrata.
Davis trouxe, então, o exemplo de um fato recente ocorrido no Pará e aparentemente ignorado pela maioria da plateia. Policiais militares despiram um grupo de detentos em uma penitenciária estadual e os obrigaram a cantar o hino nacional, usando celulares para registrar a cena. A situação remeteu a filósofa ao conhecido caso de Attica, em 1971, quando os internos de uma prisão de Nova Iorque, ao rebelarem-se contra os maus-tratos sofridos, foram massacrados pela polícia e os sobreviventes obrigados a se arrastarem nus de volta às celas. Aliás, Davis advertiu, mais de uma vez, sobre o uso disseminado de práticas de tortura em espaços prisionais e o que elas revelam sobre nossas instituições.
Não foi a única vez que a autora demonstrou estar bastante atenta a fatos recentes ocorridos no Brasil. Depois de comparar Jair Bolsonaro a Donald Trump, relacionando ambos a outros presidentes de extrema-direita pelo mundo, criticou o desejo desses governantes de retorno a um período anterior às vitórias por justiça social. “Esse que está aqui no Brasil parece se identificar com as ditaduras militares e estados policiais, estou correta?”, interagindo com o público, para, na sequência, afirmar: “ele quer voltar a um passado no qual os direitos de negros, mulheres e indígenas eram desrespeitados”.
Por outro lado, Davis não deixou de provocar o público, confessando sentir-se inadequada no papel de representante do feminismo negro e questionando a necessidade de se buscar, aqui no Brasil, uma referência norte-americana: “Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês aprenderiam comigo”. Com Lélia, ela convocou ao desenvolvimento de novas identidades baseadas nas noções de “Ameráfrica” e “Ameríndia”, alinhadas, por exemplo, ao feminismo negro cultivado através das lideranças femininas presentes no Candomblé.
A provocação não deixou de desenhar um retorno ao início de sua conferência, momento no qual as biografias de mulheres símbolos da força do feminismo negro praticado na América Latina foram celebradas: além de Lélia Gonzalez, Carolina Maria de Jesus, Luiza Bairros, Preta Ferreira. Mais de uma vez, como que didaticamente, Davis ressaltou que essas mulheres “mudaram a nossa forma de pensar a democracia” e, mais à frente, que “uma democracia sem elas, sem mulheres negras, não é uma democracia de forma alguma”, num visível gesto de resposta ao título do seminário, apenas o primeiro ato de sua visita a terras brasileiras.
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