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Candidatas de axé abrem caminhos para outra política

Débora Britto / 20/10/2020

Referência da cultura popular, principalmente das brincadeiras de coco, Mãe Beth de Oxum é iyalorixá do Ilê Axé Oxum Karê, mestra coquista e comunicadora pernambucana. Com uma trajetória de mais de 30 anos nas cenas culturais e políticas, pela primeira vez disputa um cargo eletivo. Aos 56 anos, ela é candidata a vereadora de Olinda pelo PCdoB. A sua experiência e disposição diz muito sobre as motivações que têm levado mulheres de terreiro de religiões de matriz africana a se lançarem candidatas em 2020.

“Ser mulher candidata é um desafio, ser mulher de terreiro candidata é mais difícil ainda. Porque hoje se compreendeu que homem vestido de paletó, gravata e segurando a bíblia é a figura perfeita para ir para a politica. E a gente é exatamente o contrário”, antecipa Mãe Beth sobre os desafios que tem enfrentado com criatividade e resistência.

Sua candidatura acontece em um momento de acirramento da política brasileira e se torna emblemática porque está ao lado de outras candidaturas de mulheres também de axé e que carregam os símbolos da religiosidade com orgulho, na linha de frente das campanhas eleitorais.

Há anos sondada por partidos de esquerda para sair candidata, ela nunca havia aceitado. Questionada sobre porque encarar uma eleição agora, sua resposta retoma os episódios políticos dos últimos 16 anos: a pauta da democratização da comunicação que não anda desde o primeiro governo Lula, passando pelo avanço do projeto político de ocupação das casas legislativas por evangélicos fundamentalistas até a eleição de Bolsonaro.

“A gente está vivendo um movimento surreal de extrema direita ocupando o maior posto, com milicianos dirigindo o país. A extrema direita está acabando com nosso pais, precarizando as relações de trabalho, a saúde. Temos um presidente negacionista, que nega a existência da pandemia e de um vírus letal como o coronavírus. Tem esse projeto político que a extrema direita articulou durante todos esses anos para usurpar nossa mídia. Em nome da governança foi consensuado que tanto as TVs quanto as rádios abertas desse país fossem para a bancada evangélica. E esse projeto político termina no proselitismo religioso”, explica.

Mãe Beth tem a experiência das lutas de mais de três décadas e incorporou muito disso nas propostas a vereança de Olinda. “Eu acho que é um misto de muitas coisas, a gente já não aguenta mais. O povo pobre, preto, periférico, de terreiro não aguenta mais as condições que estão sendo dadas”, resume.

Para ela, as casas legislativas não só não representam a diversidade do povo brasileiro, como poderiam aprender com os povos de terreiro e as religiões de matriz africana. “Literalmente, as câmaras legislativas não retratam a diversidade do povo brasileiro. Estão longe disso, retratam uma exclusão. Tá na hora do pau comer, tá na hora de virar o jogo, de ocupar essas casas legislativas. Quando a gente não entra, alguém entra. Eles constroem a politica, muitas vezes, para nosso extermínio, para criminalizar nossas práticas, nossa cultura”, afirma.

Intolerância religiosa se combate com diversidade

Para Mãe Beth, sua candidatura é também um enfrentamento ao projeto político conservador e que criminaliza as religiões de matriz africana, as expressões culturais populares e tradicionais pernambucanas. “Eu acho que a gente precisa de um estado laico. Isso precisa ser colocado de maneira bem objetiva, bem transparente. Não existe democracia se o estado não for laico. E o estado laico é o estado que não tem privilegio para denominação religiosa nenhuma”, defende.

Para a candidata, a falta de representação de pessoas de axé no legislativo é um dos principais fatores que contribuem para a continuidade do racismo religioso. Em Olinda, cidade que é Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco e um importante território de produção e resistência de expressões das culturas populares, vários nomes na lista de candidaturas fazem referências a pastores, irmãos, missionários. Para Mãe Beth, esse é um sintoma de algo maior.

“Temos 17 vereadores, 15 são homens. Isso retrata uma anomalia. Cadê as mulheres? Isso é sequela do patriarcado que existe na construção do Estado brasileiro e a gente não consegue superar dada essa realidade patriarcal e racista. Dos 15 homens, vários são evangélicos. Todas as casas legislativas estão assim. Isso é parte de um projeto político, um projeto de ocupar as casas legislativas e tirar o orixá da alma brasileira”, afirma.

Segundo ela, é preciso mudar não só a política, mas também a visão que a sociedade brasileira tem dos povos de axé. “O terreiro é o lugar de respeito à diversidade. Os terreiros conviveram historicamente com a criminalização promovida pelo Estado. A gente teve que colocar o santo branco em cima e o santo negro embaixo da mesa. Tem violência maior do que ser proibida de proferir a sua fé? E no entanto a gente tem uma Constituição, que tem mais de 30 anos, que diz que ninguém pode ser humilhado, vilipendiado pela sua fé e televisão aberta brasileira faz isso com os povos pretos e indígenas todos os dias. Eu acho que o Estado e a política deveria beber na fonte do terreiro para aprender a respeitar de verdade. O terreiro é, em essência, o lugar de convivência mutua e de respeito à diversidade sexual, cultural e religiosa”, defende.

Crítica da atual gestão da cidade, ela é categórica ao afirmar que será oposição e pautará o combate aos diversos tipos de racismo no município a partir do legislativo. “Olinda não pode ser uma cidade de pastores, precisa ser uma cidade de artistas. Discutir o racismo é fundamental porque Olinda é uma cidade negra, mas a negritude está excluída. A negritude está nas favelas. A gente precisa dialogar sobre racismo e falar de oportunidades para o nosso povo”, afirma a ialorixá e mestra coquista.

Maria Janielly e Letícia Carvalho compõem a candidatura coletiva Revolução Preta (Psol) e disputam vaga de vereadora em Jaboatão. Foto: Divulgação

Jovens, negras e periféricas

Vestidas de branco, com torço, duas jovens mulheres negras com postura altiva constroem uma candidatura que propõe uma revolução preta em Jaboatão dos Guararapes.

A imagem que ilustra as redes da candidatura Revolução Preta (Psol), formada por Maria Janielly e Letícia Carvalho, já é uma ruptura do imaginário da política brasileira. Por isso, a candidatura vem sofrendo com o racismo institucional – a Justiça Eleitoral de Jaboatão tentou interditar a campanha argumentando que a foto da urna não estava de acordo com a legislação.

Apesar disso, as candidatas não recuaram e estão recorrendo judicialmente. Para Janielly, de 31 anos, que é mãe e iniciada no axé há seis anos, a disputa a uma das cadeiras do legislativo municipal faz parte de um compromisso maior do que as eleições, em si. Ser candidata é mais um momento da sua trajetória de lutas. “Eu sou uma mulher negra em movimento há bastante tempo”, afirma. Desde 2016 ela faz parte, junto de Letícia, do Coletivo Periféricas, além de participar de movimentos culturais locais.

“Com a conjuntura politica, depois do golpe em Dilma, depois da eleição desse desgoverno, a gente vem na preparação para que algumas pessoas se colocassem à disposição. Eu venho construindo o Psol há um ano, principalmente em Jaboatão, onde a gente construiu o diretório. O que a gente já fazia e faz o tempo todo já era do campo politico, principalmente na pandemia, quando a gente não viu nenhum poder público aqui na comunidade”, conta.

Além da construção política, sendo do axé, ela consultou seu pai de santo e o jogo também se mostrou favorável. Nada acontece sem pedir licença e sem a benção e reconhecimento de quem veio antes. O aprendizado do povo negro é um guia para as candidatas. “Eu sou de Oxum e Oxum é um ser político. A nossa tradição é nagô e entendo que o Estado é laico. Mas em Jaboatão precisamos entender que é um município fundamentalista onde o cristianismo de uma forma pejorativa dominou todos os espaços e foi tirando aos poucos tudo que tinha referencia ao nosso povo”, diz.

Reconstrução do imaginário político

Segundo Janielly, um dos objetivos é fazer uma campanha que seja educativa, que dialogue com a população sobre que elas sentem na pele, todos os dias, sendo mães, moradoras de periferias e convivendo com o descaso do poder público. “A gente sem a caneta conseguiu distribuir quase 2 mil cestas básicas no pico da pandemia, imagina com a caneta, sabendo exatamente onde o sapato aperta, sabendo que os postos de saúde não funcionam, sabendo que não temos creche. Jaboatão tem uma população de mais de 70 mil pessoas e só temos 17 creches. A gente sabe exatamente onde a ferida esta doendo”, afirma.

Além disso, é desejo delas que os corpos negros, vestidos de branco, de axe, sejam vistos nos santinhos como algo natural pela população. “Ser uma mulher de axé e estar com a cara nesse santinho é se colocar na luta. Para dizer que a gente tá aqui para falar, que as nossas vozes são importantes, entender que a religião é a base de algumas comunidades, mas que isso não faz algo que seja obrigatório. Acredito que seja mais pela construção política que a gente já tinha antes. Estar no santinho de torço é dizer que a gente é de axé, mas também somos construção política. É desconstrução do imaginário que fizeram de nós”.

Para as jovens candidatas, construir essa candidatura é abrir caminhos para mais mulheres como elas. Mas isso não retira o peso das agressões que elas vêm sofrendo.”A gente sempre teve que lidar com racismo, a lidar com a falta das coisas. Mas é diferente a forma da agressão agora, as dores são muito maiores” , diz Janielly.

O racismo se manifesta de muitas formas. Começa com as dificuldades para dar conta da família, da casa, estudos e de uma campanha sem dinheiro. “É nítido a diferença. É só você entrar nas redes sociais e tentar fazer comparação da nossa campanha e a campanha de outras pessoas. Quem são as pessoas que conseguem ir para a rua? Quem são as pessoas que já estão com material gráfico?”, questiona.

“A gente tem a força, tem a coragem, tem os planos e propostas, mas o que faz essa máquina girar é o que a gente nunca teve, que é grana”. A destinação de recursos, mesmo em partidos de esquerda, não dá conta das necessidades. Por isso, a campanha de arrecadação de recursos da candidatura tem sido importante, conta Janielly. “Estamos aqui e agora porque somos fruto de um movimento, principalmente negro. Se colocar à disposição é entender que só vai mudar alguma coisa quando a gente ocupar essas cadeiras que sempre foram ocupadas pelas mesmas pessoas”, diz. E elas garantem que não vão recuar.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.