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No meio de uma obra de contenção de encosta ainda inacabada, é possível ver uma casa coberta por uma lona preta. O imóvel, no morro do Pilar, em Jardim Monteverde, estava com as paredes encharcadas após as chuvas do início de fevereiro. Seu estado de degradação é notório, mas roupas no varal acusam que pessoas vivem ali.
Jardim Monteverde, entre Recife e Jaboatão dos Guararapes, foi a localidade onde mais morreu gente nas chuvas de maio de 2022.
“Eu estou vivendo numa situação que só Deus!” O desabafo é de Maria José da Silva, de 36 anos, a moradora da casa em ruínas, onde também vivem o marido e o filho. Com muita ansiedade e medo, os três esperam por uma solução habitacional há mais de dois anos, quando tiveram a casa interditada pela Coordenadoria de Defesa Civil do Estado de Pernambuco (Codecipe). Como Maria e sua família, outras 206 mil pessoas vivem em áreas de risco na Região Metropolitana do Recife.
Voltar para um lugar condenado não foi uma decisão fácil, porém Maria José afirma não ter mais condições de pagar um aluguel com o auxílio-moradia cedido pela Prefeitura do Recife, no valor de R$ 300.
“Eu estou desempregada e voltei para cá porque eu não estou conseguindo pagar outra casa de aluguel. Fazia mais de ano que eu tinha saído daqui, mas o aluguel da casa que eu estava ia aumentar para quatrocentos reais, fora a conta de energia, a feira, então não tinha como eu pagar”, explica.
A diferença é que, dessa vez, o terreno do imóvel está entre dois muros de arrimo construídos no segundo semestre de 2024 pela Prefeitura do Recife. Com isso, Maria José achou que estaria mais segura, ou que, pelo menos, o imóvel não apresentaria mais riscos de desabamento. Logo ela percebeu que havia se enganado.
“A minha casa está oca, eu estou dentro dela, mas está o maior perigo, a parede pode cair em cima de mim a qualquer momento. Ela ficou toda encharcada depois dessas chuvas fortes de fevereiro. Estou querendo alugar outra casa, mas não tenho dinheiro”, diz a moradora, que, mais uma vez, não sabe o que é dormir em dias de chuva. Maria José afirma ainda que algumas áreas da geomanta apresentam pequenas rachaduras e isso é mais um motivo de preocupação.
Maria José da Silva, de 36 anos, voltou para casa em área de risco no Jardim Monteverde
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero“Eu preciso de uma solução, eu queria que a prefeitura viesse aqui para resolver essa situação porque eu não aguento mais, eu não durmo quando chove, fico esperando que o pior aconteça”, diz aflita a dona de casa.
Apenas uma parte da encosta do Pilar, onde está localizada a casa dela, possui obras de contenção e ainda é possível encontrar casas com risco de desabamento em uma área que fica próximo a outras moradias ainda ocupadas.
De acordo com os moradores, a área do morro que conta com a cobertura é o local onde uma adolescente morreu soterrada. “Aqui as prefeituras e o governo só fazem muro onde morreu gente, tem que morrer alguém para poder acontecer as obras, infelizmente é assim”, lamenta a presidente da Associação de Moradores de Jardim Monteverde, Dalva Damares, de 69 anos.
Questionada pela Marco Zero, a Prefeitura do Recife afirmou que a obra de contenção do Morro do Pilar foi iniciada em dezembro de 2022 e deve ser concluída no início do segundo semestre deste ano. A obra recebeu o investimento do R$ 1,6 milhão. Ainda de acordo com a gestão, “até o momento, não há registro de problemas estruturais na parte já finalizada”.
De acordo com a coordenadora do programa de Direito à Cidade do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), Manoela Jordão, as obras de contenção e mitigação para os efeitos das fortes chuvas falham por não estarem articuladas a uma política pública de habitação que atenda os moradores de áreas de risco, como Maria José.
“Há uma fragilidade nesse processo de gestão de desastres que é o seguinte: você identifica que a pessoa está numa área de risco, então você remove essa pessoa e ela começa a receber auxílio-moradia, mas qual é a solução habitacional que será apresentada a essa pessoa? Por quantos anos essa pessoa vai depender do auxílio-moradia? Como a gestão vai conseguir fechar o ciclo da política pública de redução de riscos se vai deixar as pessoas eternamente dependentes de um auxílio-moradia? Então, na prática, se reduz o problema do risco, mas se aumenta o déficit habitacional”, explica Manoela.
A gerente de incidência em políticas públicas da Habitat Brasil, Raquel Ludermir, resume desta forma: “É a lógica de promover resiliência provocando violência”. E crava que ”não adianta falar de justiça climática sem falar de justiça habitacional. Não adianta remover as famílias e não dar alguma solução porque provavelmente essas pessoas vão voltar para outra área de risco”. Para Raquel, “se moramos numa região metropolitana que tem uma dívida enorme com o direito à moradia, precisamos resolver as duas coisas em conjunto. Não adianta tapar o sol com a peneira”.
A casa de Maria José da Silva aparece na imagem com uma lona preta entre os muros de arrimo.
“Se essas famílias não tiverem uma moradia, uma solução habitacional de fato, elas provavelmente irão para novas áreas de risco. Seja risco de desastre por situação ambiental, seja risco de despejo em outras situações ainda mais vulnerabilizadas”, explica, lembrando que as cidades precisam de adaptação, porque as chuvas virão mais fortes.
Ela defende que o caminho passa necessariamente pela construção de novas unidades habitacionais. “Que sejam em moradia adequada, numa localização adequada. Porque não adianta nada pensar numa unidade habitacional interessante longe dos meios de sobrevivência dessas pessoas e dos serviços públicos”, diz.
Raquel lembra ainda que esses desastres só acontecem pela condição de moradia e de localização dessas famílias. “É aí que entra a lógica do racismo ambiental. Por que os desastres afetam sempre as mesmas pessoas?”, questiona.
Jardim Monteverde foi o bairro que registrou o maior número de vítimas fatais durante as fortes chuvas de maio de 2022 — 47 no total, segundo os cálculos da comunidade. Até hoje, parte da população ainda aguarda por uma solução que não coloque suas vidas em risco mais uma vez.
Com a ocorrência da maior chuva já registrada no mês de fevereiro na capital pernambucana, que aconteceu entre os últimos dias 5 e 7 e matou seis pessoas, os moradores da comunidade localizada no extremo sul do Recife, na divisa com Jaboatão dos Guararapes, sentiram mais uma vez o medo de sofrer as consequências da falta de planejamento urbano e do acesso à moradia digna.
“O que nós queremos é evitar mais tragédias, porque ainda falta muito a ser feito aqui, ainda tem muitos moradores aqui que estão em áreas de risco”, alerta Dalva Damares. A líder comunitária cobrou celeridade do poder público na conclusão de obras de contenção de encostas.
Na rua da Capela, onde 17 pessoas morreram soterradas em 2022, as obras de contenção realizadas em conjunto pela prefeitura de Jaboatão dos Guararapes e pelo Governo do Estado ainda estão em andamento. Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Pernambuco (Seduh), a previsão de término é dezembro deste ano. De novembro para cá, a execução das obras andou pouco, de 32% para 45,31%.
A intervenção foi iniciada em junho de 2024. Com um investimento de R$ 53 milhões, as ações incluem remoção vegetal, terraplenagem, construção de muros de pedra argamassada e instalação de sistemas de drenagem, tudo dentro do cronograma previsto. O município entrou com os projetos e o estado com o serviço.
A promessa do prefeito reeleito Mano Medeiros (PL) e da governadora Raquel Lyra (PSDB) é que, com a conclusão, as obras tragam segurança a milhares de moradores em uma área historicamente vulnerável a deslizamentos. Pelos cálculos da Seduh, indiretamente toda a população do bairro de Dois Carneiros será beneficiada. Isso corresponde a mais de 5,8 mil famílias. Segundo a pasta, a gestão já pagou R$ 11,5 milhões em desapropriações, relativas a 132 imóveis em áreas de risco. Outros 101 imóveis já foram demolidos.
Também em novembro, Raquel anunciou que investiria num projeto de captação de água pluviais para consumo em residências, com instalação de 400 sistemas de captação e retenção. Três meses depois, o processo só foi concluído em duas residências. O sistema, chamado Plugow, além de garantir abastecimento deve ajudar, segundo o estado, a minimizar a saturação do solo ocasionada pelas chuvas.
A startup proprietária da tecnologia, a Pluvi, calcula que o Plugow pode reduzir em até 40% os impactos de deslizamentos em áreas de morro. “Se estivesse em funcionamento durante as chuvas fortes de 2022, a tragédia em Jardim Monte Verde poderia ter sido evitada”, disse o governo em nota.
Além das obras no bairro, o Governo de Pernambuco tem realizado o cadastro das famílias de Jaboatão residentes das áreas de risco através do Programa Morar Bem.
O Programa Morar Bem prevê subsídios de até R$ 20 mil pelo “Entrada Garantida”. Nessa modalidade, o preço máximo dos imóveis é de R$ 190 mil. Entre os requisitos para se cadastrar no Morar Bem, estão: morar em Pernambuco; ter renda familiar de até dois salários mínimos; não ser proprietário, promitente comprador ou possuidor a qualquer título ou concessionário de imóvel; ter aprovação da Caixa Econômica Federal da documentação do cadastrado e da operação de crédito individual; e não ter sido beneficiado por atendimento habitacional definitivo. Depois da aprovação, o subsídio poderá ser aplicado a um dos imóveis da Companhia Estadual de Habitação e Obras (Cehab), que assina projetos habitacionais em Pernambuco com apoio do Governo Federal, prefeituras e iniciativa privada.
Um dos braços do Programa Morar Bem é o Reforma no Lar. Até o momento, apenas 20 reformas foram finalizadas. Outras 34 casas estão em obras. O total previsto, porém, é bem maior: 350 residências.
O Reforma no Lar funciona assim: as famílias beneficiadas recebem uma visita de uma equipe do governo junto com a empresa designada para a reforma através de licitação pública, que fazem o cadastro do imóvel. É feito o levantamento das necessidades da unidade habitacional, de acordo com o que o dono apresenta, e em seguida é gerado o orçamento dos serviços com recursos de até R$18 mil. A empresa recebe o dinheiro diretamente do governo e fica responsável pelas melhorias sob a fiscalização dos técnicos da Seduh. A família beneficiada não recebe os valores diretamente.
A alguns metros de distância do Morro do Pilar, em uma outra área de encosta no bairro de Jardim Monteverde, os moradores ainda enfrentam as consequências das chuvas de maio de 2022.
Na rua Engenho Noruega, conhecida como morro do Cuscuz, dezenas de famílias tiveram suas casas interditadas e condenadas à demolição, porém, quase três anos depois, não há previsão de quando a demolição acontecerá nem quando serão indenizadas.
As casas estão localizadas no topo de uma encosta, algumas delas beiram os muros de arrimo e, com as chuvas de grande volume, os moradores temem que as estruturas não aguentem e desabem.
“Eu tive que deixar minha casa onde eu vivi por mais de 30 anos e agora eu pago aluguel de R$ 600 recebendo apenas 300 reais de auxílio-moradia e eles [representantes de órgãos municipais e estadual] não falam em indenização nem dão garantia de um habitacional”, queixa-se Ana Paula da Silva, de 48 anos.
Além de deixar suas casas e precisar pagar aluguel, os moradores da rua Engenho Noruega precisaram lidar com o roubo de seus pertences. Todas as casas desocupadas foram completamente saqueadas. Grades, janelas, portas e até os quadros de energia foram levados das casas.
“Minha casa tinha tudo e agora não tem mais nada. Depois do que aconteceu naquele tempo das chuvas [maio de 2022] nunca mais tive saúde, já tive dois AVCs, não consigo ficar dentro de casa, estou sempre assustada e agora pagando um aluguel sem condições também porque um auxílio de trezentos reais não dá para nada”, contou Ednalva Lopes da Silva, de 60 anos.
De acordo com os moradores, há cerca de seis meses agentes da Prefeitura do Recife estiveram no morro do Cuscuz para fazer uma vistoria no local e informaram que dariam início a demolição das casas, mas até o momento isso não aconteceu. Com as últimas chuvas de fevereiro, os moradores voltaram a se preocupar com a situação dos imóveis que estão próximos à área encosta e que podem desabar.
Os moradores temem que caso seus imóveis desabem eles não consigam mais ser indenizados: “Não nos deram nenhuma garantia de que vamos para um habitacional, nem falaram em indenização. Se as casas caírem, como vamos conseguir cobrar o que é nosso por direito?”, disse a moradora Sebastiana Cordeiro.
“Nos disseram que nossas casas estavam fazendo peso no solo e que era perigoso ficar aqui, mas a gente vai para onde? Não está dando mais para viver só de auxílio. Por isso, antes de fazer qualquer outra obra para ficar bonita na foto, a prefeitura, o Governo do Estado, precisam resolver nossa situação”, completou Sebastiana.
Ednalva Lopes
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroRua Engenho Noruega, Jardim Monteverde
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroEm resposta à reportagem, a Autarquia de Urbanização do Recife (URB) afirmou que “não há falhas estruturais nos muros de arrimo da rua Engenho Noruega. No entanto, foram identificadas pequenas fissuras na tela argamassada”. De acordo com a gestão municipal, “a empresa responsável pela execução do serviço já foi acionada e realizará os reparos necessários”. Confira a resposta completa da Prefeitura do Recife ao final do texto.
Com o aumento do preço dos aluguéis e a falta de acesso a uma moradia digna ou previsão de uma indenização justa, assim como Maria José da Silva, outros moradores de Jardim Monteverde cogitam voltar a habitar áreas de risco, como afirma o morador do Morro do Cuscuz, Jonas José da Silva, de 57 anos: “Antes eu trabalhava e tinha casa para morar, não tinha esse negócio de pagar aluguel. Agora eu tenho esse problema, que eu pensava que nunca ia existir na minha vida. Mas tá aí, a casa é boa, só que roubaram tudo e não dá para continuar nela assim, mas se não fosse isso, eu estaria na minha casa”.
“Existe uma ausência de intersetorialidade na execução de políticas públicas que influencia uma grande roda viva da vulnerabilização, porque não necessariamente as secretarias que estão executando as obras de contenção de encostas e drenagem estão dialogando com a Secretaria de Habitação e essa ausência de conexão acaba gerando esse cenário onde muitas pessoas vivem a espera de uma solução habitacional. Então, a prefeitura atua como uma máquina de despejo porque implementa a infraestrutura, mas não resolve o problema habitacional. Nem todo projeto de contenção de encostas está vinculado a um programa habitacional, como o Minha Casa Minha Vida, por exemplo. Por isso que muitas famílias continuam ocupando áreas de risco”, conclui Manoela Jordão.
A Prefeitura do Recife informa que está investindo R$ 1,6 milhão na contenção definitiva da encosta da Rua Morro do Pilar, em Jardim Monte Verde. A obra foi iniciada em dezembro de 2022 e tem conclusão prevista para o início do segundo semestre deste ano. Até o momento, não há registro de problemas estruturais na parte já finalizada.
A Autarquia de Urbanização do Recife (URB), responsável pelas obras de contenção de encostas na cidade, esclarece que não há falhas estruturais nos muros de arrimo da Rua Engenho Noruega. No entanto, foram identificadas pequenas fissuras na tela argamassada. A empresa responsável pela execução do serviço já foi acionada e realizará os reparos necessários.
A população deve acompanhar os alertas da Prefeitura do Recife sobre a intensidade das chuvas e seguir as orientações da Defesa Civil. Em momentos de chuvas fortes, a orientação é que os moradores de áreas de risco procurem locais seguros ou abrigos do município em caso de necessidade. É fundamental acionar a Defesa Civil pelo telefone 0800-0813400, que é gratuito e funciona 24h por dia.
A Defesa Civil do Recife informa que 302 moradores de Jardim Monteverde foram incluídos no auxílio moradia desde junho de 2022. Após a conclusão das obras nas encostas, será possível atualizar a classificação de risco e avaliar a possibilidade de retorno das famílias.
Levantamento feito em 2022 identificou 249 imóveis classificados como R3 e 116 classificados como R4. Os números serão atualizados com a conclusão das obras de contenção de encostas.
Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com