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Menos de uma semana depois de a Câmara dos Deputados aprovar Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que susta decisão do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) sobre acesso ao aborto para vítimas de violência sexual, vereadores da Câmara do Recife aprovaram, nesta segunda-feira (10) — em votação folgada e com aceno da base do prefeito João Campos (PSB) à direita —, Projeto de Lei que institui a Semana da Síndrome Pós-Aborto.
Para especialistas ouvidas pela Marco Zero, os dois projetos representam um retrocesso aos direitos já garantidos das mulheres, meninas e pessoas que gestam.
No Brasil, o aborto é garantido pelo Código Penal de 1940 em três situação: estupro, risco de morte materna e feto anecéfalo. A resolução do Conanda (nº 258/2024) que o “PDL da Pedofilia” (como está sendo chamado pelos movimentos feministas) pretende suspender trata dos protocolos de atendimento humanizado, sigiloso e célere a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual que buscam o aborto legal em unidades de saúde. A votação seguiu para o Senado.
Já a Semana da Síndrome Pós-Aborto (PL 104/2025), de autoria do vereador do Recife Gilson Machado Filho (PL), aprovada por 19 votos a favor e três contrários, trata de uma suposta síndrome que não tem qualquer comprovação científica nem faz parte da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID).
Com faixas e cartazes com frases como “criança não é mãe”, movimentos sociais e feministas do Recife protestaram também contra a Semana da Síndrome Pós-Aborto durante ato nacional contra o “PDL da Pedofilia” na Av Conde da Boa Vista, centro da capital. A mobilização contra o PDL aconteceu em pelo menos 10 cidades brasileiras nesta terça (11).
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
Na avaliação de Alice Amorim, assessora de programas do Grupo Curumim, os projetos federal e municipal são muito parecidos ao tentarem criar dificuldades de acesso ao aborto legal, principalmente para um determinado grupo: “Meninas de 10 a 14 anos são as maiores vítimas de violência sexual no Brasil, sobretudo meninas negras”.
Se o PDL for aprovado, significa que, na prática, a vítima vai precisar registrar boletim de ocorrência e ter autorização dos pais para abortar (mesmo em caso de estupro) e o profissional de saúde poderá recusar o atendimento alegando “desconfiança” da vítima. Além disso, o sigilo e a escuta respeitosa deixam de ser garantias.
Em 2023, somente em Pernambuco, 793 meninas de 10 a 14 anos tornaram-se mães. “Milhares são forçadas cotidianamente à maternidade por medo, falta de informação, omissão do Estado e por projetos que negam seu direito à infância e à dignidade”, denuncia a Frente Pernambuco pela Legalização e Descriminalização do Aborto.
Os dados mostram que o casamento infantil e a gravidez precoce, muitas vezes em decorrência de violência, ainda são uma realidade no país: 33 mil crianças e adolescentes até 14 anos viviam em união conjugal em 2022, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sendo que quase 80% eram meninas.
“Não é possível mais de 200 mil meninas darem à luz nesse país porque não acessam o direito que elas têm ao aborto legal”, disse a educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia Natália Cordeiro durante o protesto. “Estamos aqui hoje para cobrar e pressionar tanto para que o Senado barre o PDL da Pedofilia quanto para pressionar João Campos a barrar o PL da Síndrome Pós-Aborto”, afirmou.
A coordenadora de Articulação Política, Relações Internacionais e Comunicação da ONG Gestos, Juliana Cesar, lembra que “a resolução do Conanda nada mais faz do que reafirmar o que já está estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro em relação ao acesso ao aborto legal”. “Mas ele está sendo tão violado que tornou-se importante para o Conselho Nacional de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes estabelecer uma resolução reafirmando todas essas normativas para tentar minimizar essas violações”, explica.
“É o mesmo tipo de iniciativa legislativa que busca equiparar o aborto após estupro a um homicídio. E a gente viu essa questão de criminalizar uma criança de 10 anos que buscava o serviço após ser violada pelo próprio tio”, compara, lembrando o caso da menina do Espírito Santo atacada em frente ao Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, em 2020.
Presente no ato nesta terça (11), a vereadora Jô Cavalcanti (Psol) chamou a atenção para o fato de a própria bancada ligada ao prefeito ter votado a favor do projeto de Gilson Machado Filho e disse que as vereadoras feministas não têm conseguido diálogo com João Campos. Para ela, o gesto foi um aceno à direita de olho nas eleições de 2026. O projeto agora tem 15 dias para chegar à mesa do Executivo.
Para a vereadora Jô Cavalcanti (Psol), aprovação da base de João Campos ao PL da síndrome foi um aceno à direita de olho nas eleições de 2026. Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
“O prefeito faz propaganda de paridade de gênero, mas está prestes a aprovar a semana de uma síndrome que não existe e que, na verdade, quer constranger os profissionais de saúde, assistência social e educação no atendimento e encaminhamento das mulheres que têm o direito ao aborto previsto na lei”, critica Natália, do SOS Corpo.
O texto de Gilson Machado Filho havia sido aprovado em primeira discussão no dia 2 de setembro, por 16 votos a 5. Em resposta ao projeto original, as vereadoras Cida Pedrosa (PCdoB), Jô Cavalcanti (Psol), Liana Cirne (PT) e Kari Santos (PT) apresentaram uma substitutivo no dia 9 de setembro, propondo a criação da Semana Municipal de Humanização do Luto Parental. A iniciativa buscava promover o acolhimento de pessoas e famílias que vivenciam perdas gestacionais e neonatais, de forma humanizada e baseada em evidências científicas.
O Controle Social do Comitê Estadual de Estudos da Mortalidade Materna de Pernambuco (CEMM-PE) e o Cisam emitiram dois pareceres técnicos contrários ao PL da Síndrome. A Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara deu parecer favorável ao substitutivo, reconhecendo o caráter inclusivo e de cuidado da proposta.
No entanto, em votação nesta segunda (10), o texto foi rejeitado por 20 votos contrários e 3 favoráveis, os mesmos três votos que se mantiveram contrários ao projeto original. Isto é, de Jô, Liana e Kari. Cida estava ausente por questões de saúde.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornais de bairro do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com