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Compra da Mata do Engenho Uchôa põe técnicos da CPRH e ambientalistas contra Governo do Estado

Raíssa Ebrahim / 11/11/2022
interior de mata fechada, com plantas de vários tipos, em torno de uma fonte de água que aparenta estar bastante suja.

Crédito: Ascom/Semas-PE

Um dos principais projetos ambientais da gestão do governador Paulo Câmara (PSB) está prestes a ser finalizado, nos últimos meses de mandato, sob críticas políticas, técnicas e jurídicas por parte de ambientalistas e servidores estaduais. A Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas-PE) quer adquirir 170 hectares da Mata do Engenho Uchôa, na zona oeste do Recife, usando R$ 100 milhões dos R$ 180 milhões disponíveis no fundo de compensação ambiental do estado, que deveriam ser destinados para ações nas 90 Unidades de Conservação existentes em Pernambuco. O Engenho Uchôa é uma Unidade de Conservação (UC) que pertence a proprietários privados.

Segundo os críticos, esse processo, que envolve a aquisição de outras áreas, também esbarraria num impedimento legal e poderia abrir um precedente no estado. Pelo fato de a Mata do Uchôa ser classificada como um Refúgio de Vida Silvestre (RVF) que não é de domínio público, a compra com recursos de compensação ambiental não obedeceria ao que diz o Sistema Estadual de Unidades de Conservação da Natureza (Seuc). Entenda ao longo da matéria.

De forma resumida, a compensação ambiental é um valor pago por empresários cujos empreendimentos causaram impactos não mitigáveis nas áreas onde estão instalados.

O maior foco de resistência à operação planejada desde 2020 pelo governo estadual, mas que começou a ganhar corpo só agora, está nos funcionários da própria Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH), como deixa evidente a reação da entidade sindical que os representa.

“A aquisição dessas propriedades comprometeria o saldo atual dos recursos da compensação ambiental”, manifestou-se o Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Agricultura e Meio Ambiente do Estado de Pernambuco (Sintape) em ofício ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE). O projeto de aquisição da Semas tem como destaque Uchôa, que demandaria um volume maior de recursos (R$ 100 milhões). Mas também envolve a Estação Ecológica (ESEC) Bita e Utinga e a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Eco Fazenda Morim.

“Salientamos que o comprometimento dos recursos de compensação ambiental inviabilizarão ações estratégicas de gestão nas demais 87 Unidades de Conservação do Estado”, alerta o documento.

A analista em gestão ambiental da CPRH Cinthia Lima chama a atenção para a legislação. O artigo 51 do já mencionado Seuc diz que a aplicação dos recursos de compensação nas UCs existentes ou a serem criadas deve ocorrer, considerando as especificidades locais, dentre algumas ações elencadas. A primeira dessas ações seria a regularização fundiária e demarcação das terras.

Porém, o artigo seguinte, o 52, que trata especificamente de “Reserva Particular do Patrimônio Natural, Monumento Natural, Refúgio de Vida Silvestre [como é o caso da Mata do Uchôa], Área de Relevante Interesse Ecológico, Área de Proteção Ambiental e Reserva de Floresta Urbana”, quando o local de intervenção não seja de posse e domínio do poder público (que também é o caso de Uchôa), diz que os recursos têm possibilidades de aplicações mais restritas e não incluem regularização fundiária e demarcação das terras.

Uchôa ajudou a formar movimento ambiental

O uso do fundo para a aquisição da mata agrada a um dos mais antigos movimentos pernambucanos criados em defesa de um ecossistema.

A criação daquilo que seria o Parque Natural Rousinete Falcão é uma reivindicação de 43 anos do Movimento em Defesa da Mata do Engenho Uchôa. A defesa pela preservação dessa área de remanescente de mata atlântica, localizada na bacia do rio Tejipió, é uma das questões ambientalistas mais antigas de Pernambuco. No entorno, vivem aproximadamente 400 mil pessoas de 11 bairros.

O movimento publicou um manifesto sobre o assunto, enfatizando que Uchôa “é caracterizada por ser o último trecho contínuo de vegetação de mangue e de mata atlântica, sendo considerada um expressivo ecossistema em termos de diversidade ecológica do país”, reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como Reserva da Biosfera Mundial. A articulação do movimento conseguiu barrar, nos últimos anos, invasões, incêndios e instalação de empreendimentos e loteamentos habitacionais.

Lembrando que a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ambiental do Brasil foi em relação à Mata do Engenho Uchôa, o arquiteto e ambientalista Alexandre Ramos, que faz parte do movimento em defesa da mata, comenta que “essa é uma luta histórica da formação dos movimentos ambientalistas do Brasil”. Ele vê a aquisição para criação do parque como “uma oportunidade incrível de fortalecer e referendar uma luta histórica e que se confunde com a luta contra a especulação imobiliária na cidade”.

Alexandre defende que a mata, categorizada como um Refúgio da Vida Silvestre, “não suporta ser propriedade privada”, pois o interesse dos proprietários é implantar estruturas que dêem lucro”. Na avaliação dele, ou se muda a categoria reduzindo a proteção integral, o que demandaria uma lei, ou então se faz a aquisição para torná-la de domínio público. O conselho gestor da mata tem representantes da academia, de organizações sociais, órgãos públicos e também moradores.

Duas faces do problema

Na avaliação do ambientalista Ricardo Braga, que já presidiu a CPRH e foi secretário-executivo de meio ambiente, é preciso olhar para a questão sob duas óticas. Uma é o contingenciamento de recursos que vem acontecendo há anos, nas várias esferas, e que prejudica a gestão das Unidades de Conservação como um todo, e também o que ele avalia como uma “dificuldade interna” da Câmara Técnica de Compensação Ambiental da CPRH para dar vazão aos projetos que chegam à agência.

A outra questão, comenta Ricardo, que também é ex-presidente da Associação Pernambucana de Defesa da Natureza (Aspan) – primeira entidade ambientalista de Pernambuco –, é que usar mais da metade do montante do fundo de compensação ambiental em apenas uma UC compromete as várias outras demandas existentes no Estado e que não estão sendo atendidas.

“Acho que não é adequado desembolsar R$ 100 milhões de uma compensação ambiental, que foram duramente conseguidos ao longo de anos, para isso. Por outro lado, também não acho adequado que a câmara da CPRH não distribua esses recursos para o que efetivamente é necessário no Sistema Estadual de Recursos de de Meio Ambiente”, resume.

O fundo de compensação ambiental é gerido pela Câmara Técnica de Compensação Ambiental, composta pelo presidente da agência e titulares de quatro diretorias. É um grupo pequeno e restrito que resolve as prioridades desse dinheiro. Os técnicos da CPRH e a Semas, por exemplo, não fazem parte da câmara, que também não tem qualquer representante da sociedade civil. As decisões tomadas a portas fechadas são divulgadas depois no site da agência.

Outras prioridades

Na opinião do professor de ecologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Felipe Melo, é inviável usar R$ 100 dos R$ 180 milhões do fundo para apenas uma Unidade de Conservação que não tem relevância biológica atualmente. “É um remanescente de mata atlântica extremamente perturbado e inserido numa localidade urbana. Tem baixíssima relevância biológica, sem espécies endêmicas nem espécies ameaçadas”, detalha.

Felipe lembra ainda que o plano de manejo da Mata do Uchôa, de 2013, precisaria ser atualizado, além da necessidade de investimento em infraestrutura, instalações, segurança e todos os demais quesitos necessários para criação de um parque. O projeto do Parque Natural Rousinete Falcão ainda não foi contratado.

“O estado tem várias unidades de conservação com muito mais relevância e que sequer têm um plano de manejo ou uma sede instalada com pessoal”, diz o professor. Como exemplos de UCs mais relevantes em termos biológicos, ele cita as Áreas de Proteção Ambiental (APAs) de Santa Cruz, em Itamaracá, no litoral norte, a Aldeia-Beberibe (onde deve ser erguida a Escola de Sargentos), na Região Metropolitana, e a de Guadalupe, em Tamandaré, no litoral sul.

Outro exemplo é Tatu Bola, no sertão, com mais de 100 mil hectares e também um Refúgio de Vida Silvestre, assim como Uchôa. É a maior UC de uso integral do estado, criada em 2015, mas que, até agora, não tem verba para implementação.

Mata do Engenho Uchôa, na zona oeste do Recife, já foi muito modificada por ações do homem. Crédito: Ascom/Semas-PE

A posição do governo

A reportagem conversou, na semana passada, com a secretária Inamara Melo, titular da Semas. Ela lembrou que esse processo em torno da aquisição da Mata do Engenho Uchôa não começou de agora. A pasta recebeu da CPRH, em 2020, um ofício solicitando essa avaliação, e a Semas realizou, nos últimos anos, uma série de debates junto ao movimento, ouvindo sociedade civil e especialistas sobre alternativas para a área.

“Estamos falando de uma área que é um maciço verde cercado de bairros populares que carecem de uma infraestrutura de parque e essa área só resiste em função de muita luta”, coloca, frisando que é o local funciona como corredor ecológico e que as áreas de mata atlântica são uma prioridade entre o conjunto de prioridades do governo e envolvem metas ambientais.

A pauta da aquisição da mata teve aprovação na reunião do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) no dia 7 de outubro. Além disso, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) já manifestou-se favorável à proposta de modificação do Termo de Compromisso de Compensação Ambiental (TCCA). Quando um empreendimento deposita recurso no fundo de compensação, esse dinheiro deve ser aplicado preferencialmente na Unidade da Conservação impactada ou nos seus arredores. Neste caso, a verba a ser utilizada em Uchôa vem da Refinaria Abreu e Lima (Rnest). Então é necessário que haja uma repactuação. A Rnest também já disse aceitar a mudança proposta.

“Existe o entendimento nosso de que a gente não estaria gastando o dinheiro porque você, quando faz a aquisição de uma área, você não deixa de contar com aquele ativo. Então eu troco a moeda por uma área que equivale àquele valor”, defende Inamara. “Neste caso, estamos falando de um patrimônio”, acrescenta. “No momento em que eu invisto o recurso, eu mantenho aquele patrimônio com o Estado, com o poder público. Ele não deixa de ter a sua valoração, inclusive muitas vezes até ampliada”.

Nesse ponto, a secretária cita o Seuc como respaldo legal para a regularização e desapropriação fundiária em Uchôa, mas não menciona o artigo 52, que, como apontou a área técnica da CPRH, restringe o uso do dinheiro de compensações no caso de Refúgio de Vida Silvestre que não seja de domínio público.

Na avaliação de Inamara, o projeto do parque é uma demanda prioritária de regularização fundiária num lugar em que há disputa judicial com os proprietários para poder manter a Unidade de Conservação. “A gente recomenda para a CPRH que todos os processos, e na medida em que novos recursos sejam arrecadados de compensação ambiental, isso venha a ser tratado como prioridade, porque você precisa garantir a regularização fundiária”.

Ela diz que a Semas já recebeu demandas de regularização de diversas áreas do estado e defende que os recursos de compensação ambiental precisam ser aplicados, e não ficarem “imobilizados por cinco, dez anos nos cofres públicos”. “Você recebe o recurso para ser investido. Esse recurso precisa ter uma destinação”, enfatiza.

Inamara defende ainda que o estado tem procurado usar os recursos disponíveis para ações diversas, envolvendo várias UCs, com contratação de diagnóstico, plano de manejo, oficinas participativas, implantação dos conselhos gestores, programas de educação ambiental, com espetáculos teatrais, oficinas, atividades e jogos, além de ações de recuperação, reflorestamento e revitalização de nascentes.

Questionada sobre a possibilidade de esvaziar o fundo com a aquisição de UCs, a secretária responde com uma comparação: “Nós temos um déficit habitacional gigantesco. Se eu pegar uma parcela do dinheiro e fizer mil casas, é melhor do que eu não fazer nenhuma”.

Atualização em 14/11/22, às 12h38

Um dia após a publicação desta matéria, em 12 de novembro, a secretária Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, Inamara Melo (confira entrevista feita com ela semana passada no final desta publicação), emitou uma nota, escrita enquanto estava em viagem ao Egito, para a COP 27. Na nota, ela descontrói, ponto a ponto, os argumentos dos técnicos da CPRH e do Sintape. O título do documento é “Representantes do sindicto usam alegações inverídicas para justificar um posicionamento contrário à aquisição de áreas verdes”, confira:

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com