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Crédito: Secom/Sergipe
Setenta e quaatro entidades que representam marisqueiras, pescadores artesanais, quilombolas, extrativistas, camponeses e outros povos e comunidades tradicionais do estado de Sergipe, publicaram hoje, dia 27 de maio, uma carta aberta expondo o aumento da fome e da insegurança alimentar que vivem desde 2019, quando o derramamento de óleo no litoral iniciou o processo de degradação das condições de vida, agravado com a pandemia. O objetivo do documento é demonstrar que em, 27 comunidades de dez municípios sergipanos, há 2.374 famílias necessitam de alimentos, o que totaliza quase 10 mil pessoas.
A carta foi enviada para veículos de comunicação e para a sociedade civil sergipana. A Marco Zero foi convidada e aceitou participar do esforço para tornar visível a situação de fome dessas famílias.
Nós, povos e comunidades tradicionais viemos por meio desta Carta de Reivindicações relatar a
gravíssima situação pela qual passam nossas comunidades e famílias: estamos passando fome, em
muitas de nossas casas não há o que comer, nos falta alimento no prato e não temos tido condição
de trabalhar, em um cenário de isolamento social e prestes a completar dois anos do derramamento
de petróleo, a maior tragédia-crime da história deste país.
Nossos territórios habitados por pescadores e pescadoras artesanais, marisqueiras, quilombolas,
extrativistas, camponeses e uma diversidade de trabalhadores e trabalhadoras de muitos e diversos
ramos; são historicamente impactados por empreendimentos. Tais como: a indústria do petróleo,
usinas eólicas, termoelétricas, especulação imobiliária, turismo predatório e a carcinicultura.
Cotidiana e historicamente nossos direitos humanos são violados e nossa natureza é destruída.
Dessa forma, tem sido cotidiana e histórica nossa resistência às tentativas de nos exterminar.
Esse quadro foi profundamente agravado a partir de setembro de 2019, quando fomos impactados
pelo maior derramamento de petróleo do Atlântico Sul, o maior crime ambiental da história do país.
Esse episódio impactou estruturalmente as comunidades, pois impediram que nós pudéssemos
consumir e comercializar nossos produtos: peixes, mariscos, ostras, caranguejos, bem como, os
outros crustáceos que conseguíamos extrair do mangue; o artesanato, as geléias, as polpas, etc.. Os
impactos provocados tiveram efeitos imediatos em nossas vidas: (1) os produtos da pesca e da
mariscagem foram danificados; (2) sem a comercialização de nosso pescado ficamos
impossibilitados de comprar gêneros básicos para a alimentação, constituindo assim, um quadro
grave de fome nos nossos territórios; (3) nós mulheres tivemos a perda de nossa autonomia
financeira; (4) percebemos um grande aumento de casos de adoecimento mental em nossas
comunidades; (5) muitos e muitas de nós ficamos adoecidos. Quem foi o responsável pelo
derramamento do petróleo? Quais são os danos 2 causados a nossa saúde e a de quem teve contato
direto com esse material tóxico? E ao meio ambiente? Estes danos são reversíveis? Durarão por
quanto tempo? O pescado consumido nos contaminou? Por que não houve acionamento do Plano de
Contingência? Qual o interesse da base governista no Congresso Nacional em não aprovar a
renovação da CPI do derramamento de petróleo, encerrada sem um relatório final? Estas perguntas
ainda ecoam sem respostas.
Pior, não houve uma política de reparação ampla e justa, capaz de minimizar momentaneamente os
efeitos do derramamento. A Medida Provisória 908/2019 só considerou como beneficiários aqueles
e aquelas que possuem Registro Geral da Pesca (RGP), porém este número não retrata o universo de
pescadores, pescadoras e marisqueiras. Desde 2012 nossos pedidos estão travados. A lista dos
beneficiários para recebimento do auxílio não tinha critérios definidos e, em Sergipe, apenas 7.282
pescadores o receberam.
Antes de nos recuperarmos dessa situação e sem recebermos respostas, nem qualquer reparação
pelos danos sofridos, fomos surpreendidos pela chegada da pandemia da Covid-19 em março de 2020.
Como principal indicação para evitar a contaminação pelo coronavírus, recomendou-se que
ficássemos em casa e que evitássemos aglomerações, o que provocou o fechamento das feiras livres.
Novamente perdemos a condição de comercializar nossos produtos e de trabalhar dignamente e as
dificuldades trazidas pelo derramamento do petróleo foram agravadas. Durante o primeiro pico da pandemia (meio do ano de 2020), a equipe técnica do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras constatou, após pesquisar 57 comunidades em 12 municípios do litoral (costa sergipana e municípios do norte da Bahia), que 58% dessas estavam com dificuldade de comercializar os produtos vindos da pesca e mariscagem. Destacamos esse dado
porque é referente ao mês de setembro, ou seja, ali fazia um ano do derramamento de petróleo.
Além disso, naquele momento as feiras já haviam sido liberadas, o que significa que a situação
chegou a ser muito pior entre março e maio de 2020.
No atual momento, a pandemia da Covid-19 ainda sofre graves rebatimentos da sua segunda onda e
mais do que nunca escancara a situação de agravamento da fome no Brasil. Uma pesquisa realizada
pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede
PENSSAN) entre outubro e dezembro de 2020 demonstrou que mais de 116 milhões de pessoas
conviveram com algum grau de insegurança alimentar no período. Isso significa que mais da
metade dos domicílios 3 brasileiros sofreram algum tipo de privação. Segundo o estudo, o índice
exato de famílias nessa situação chegou a 55,2%. Nas nossas comunidades esta situação não tem
sido diferente, cotidianamente temos visto famílias em situação de fome, inclusive nossas crianças e
adolescentes.
Isso ficou evidenciado em um diagnóstico participativo que nós, lideranças de Povos e
Comunidades Tradicionais, realizamos entre o mês de março e abril de 2021: em 27 comunidades,
pertencentes a 10 municípios em Sergipe (Brejo Grande, Pacatuba, Pirambu, Aracaju, São Cristóvão,
Itaporanga D’Ajuda, Estância, Santa Luzia do Itanhy e Indiaroba) e Bahia (Jandaíra), identificamos
2.374 famílias necessitadas de alimentos. Considerando que a média do número de integrantes da
família no Nordeste brasileiro é de 4 pessoas, temos cerca de 10.000 pessoas passando fome! Hoje
este número é maior e se ampliarmos os territórios em um novo diagnóstico teremos ainda mais
gente nossa sem a garantia de ter comida no prato na próxima refeição! Nós que historicamente
somos responsáveis por colocar cerca de 70% do pescado e 70% dos alimentos proveniente da
agricultura nos pratos de vocês, estamos sem ter o que comer!
Assim, exigimos dos órgãos competentes:
Sergipe, 24 de maio de 2021
Assinam esta Carta:
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