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Crédito> Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
A casa dos nossos pais e avós, a escola que frequentamos, os vizinhos e amigos que cresceram junto conosco, as tradicionais festas realizadas nas ruas. Todas essas lembranças são capazes de nos transportar para um lugar de afeto e acolhimento guardados no passado, mesmo quando as paisagens urbanas da memória foram alteradas ou nem existem mais. Talvez por essa razão, há comunidades que resistem às mudanças e lutam para continuar existindo apesar da pressão que vem do poder público e do mercado imobiliário. A Vila Esperança é um exemplo disso.
Considerada uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis) desde 1994, segundo lei sancionada pelo então prefeito Jarbas Vasconcelos (MDB), a comunidade encravada no bairro do Monteiro, área nobre da zona norte do Recife, corre o risco de desaparecer para que a ponte Engenheiro Jaime Gusmão seja construída. De acordo com a Autarquia de Urbanização do Recife (URB), a viabilidade da obra depende da desapropriação e demolição de 53 imóveis da Vila Esperança.
Assustados e temendo pela perda de suas casas, os moradores da localidade agora lutam para que o prefeito João Campos (PSB) anule o decreto nº 34.603 publicado em maio de 2021, que determina a desapropriação total da área prevista para receber a implantação da ponte-viaduto, que será construída sobre um trecho do Rio Capibaribe e ligará os bairros da Iputinga, na zona oeste, e Monteiro.
Transversal à Avenida Dezessete de Agosto e atrás da Escola de Referência Silva Jardim, há uma rua tranquila, com crianças, idosos e animais de estimação nas calçadas. Cercada por prédios de alto padrão, recém-construídos ou ainda em construção, em uma das áreas mais nobres da cidade, está a Vila Esperança/Cabocó, ou só Vila Esperança, como é conhecida.
Era uma quinta-feira, o sol havia aparecido depois de muitos dias de chuva na manhã em que a moradora Maria Helena Vicente se disponibilizou a me receber na comunidade e me guiar em uma visita por algumas casas da Vila Esperança. Mesmo sendo um dia de semana, não foi difícil encontrar pessoas dispostas a conversar.
O primeiro morador que conheci foi Wellington Lira, um autônomo de 57 anos, que conhece a história do seu território como ninguém. “Aqui tem um silêncio que é muito gostoso, não é? A minha infância foi toda aqui, tem toda uma história, a gente tá falando, e eu estou vendo um filme passar”, disse Wellington enquanto olhava para frente, como se realmente estivesse realmente assistindo um filme, e continuou contando como a antiga Rua Ilha do Temporal se tornou Vila Esperança.
“Na verdade, aqui era a rua Ilha do Temporal, onde hoje é a Vila Esperança. Nós tínhamos um sítio, um vasto sítio com um gramado maravilhoso, onde as pessoas vinham fazer seus piqueniques. Nós também tínhamos uma espécie de vala que passava aí pelas construções antigas. Essas casas são centenárias, são casas ainda construídas pelos escravos no tempo dos holandeses. Nós morávamos aqui na condição de inquilinos de uma pessoa que dizia se chamar Temporal. Daí veio o nome da rua, do proprietário Nelson Temporal e ele vinha aqui todos os meses para arrecadar o aluguel. De repente, essa pessoa sumiu e nós não pagamos mais aluguéis aqui. Aí foi que se formou a Vila Esperança, nos anos 1980. E nós nos transformamos numa única comunidade e continuamos crescendo”.
De acordo com o morador, na década de 80 do século passado, já se falava da construção de uma ponte naquela área, mas esta é a primeira vez que ele se sente realmente ameaçado pela obra. “A grande maioria não quer sair daqui, afinal, vão sair daqui para onde? pra comprar o quê? Sair daqui e ir para qualquer lugar? Porque você não vai conseguir uma moradia com o dinheiro que você vai receber da prefeitura para morar em Casa Forte ou no Poço da Panela. Nós estamos sendo arrancados. Algumas pessoas já negociaram pois não têm o conhecimento que elas podem ficar aqui porque têm o direito garantido por um instrumento chamado Zeis”, afirmou o autônomo.
Wellington lembrou da primeira etapa da obra, que teve início em 2012 e foi paralisada. Na ocasião, 24 famílias que viviam às margens do Rio Capibaribe foram retiradas das propriedades. Dessas, 16 moram em um conjunto habitacional construído pela Prefeitura, na Vila Esperança, e as demais recebem um auxílio moradia, que antes tinha o valor de R$ 200, mas, devido a um projeto de lei sancionado no último dia 9 de junho, passou a ser de R$ 300.
Maria Corina Santana, é uma das moradoras do conjunto habitacional, para ela, a moradia garantiu uma maior qualidade de vida para a família. Porém, ela ainda não possui a titularidade do imóvel, onde vive há mais de 10 anos, e isso é motivo de preocupação. “Com a construção dessa ponte eu tenho muito medo de ser atingida também, porque vai ficar muito perto daqui, muito em cima da minha casa. Fora que vai mexer em toda comunidade, não é? Como é que vai sair um monte de gente e eu vou ficar aqui? Ninguém disse nada ainda, mas é claro que vai afetar o habitacional também”, declarou. Ainda de acordo com Maria Corina, a prefeitura havia prometido construir outro habitacional para acolher as demais famílias desapropriadas pelas obras de 2012, mas até hoje ele não foi entregue.
“Ano passado nós fomos surpreendidos com a retomada da construção da ponta, e só ficamos sabendo quando funcionários da prefeitura chegaram com um spray marcando as nossas casas, sem nenhuma comunicação prévia aos moradores”, afirmou Wellington ao declarar que teme que aconteça com ele o que aconteceu com as outras famílias que até hoje esperam pelo prometido habitacional.
A obra da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão começou em 2021 e tem previsão para ser concluída em dois anos ao custo de R$ 38 milhões, de acordo com a URB. Para Wellington Farias, a desapropriação das 53 casas da Vila Esperança é, na verdade, um processo de gentrificação, pois a obra poderia ser executada de uma forma mais simples, como explica o morador: “não tem que tirar essas casas. Você pode construir essa ponte, esse anel viário, em uma outra área, em uma outra rua. Ela [a ponte] pode sair na rua Pinto de Campos [também no bairro do Monteiro], por exemplo, e mexer apenas com três imóveis”.
Patrícia Fernandes saía de casa para um compromisso, mas quando nos encontrou em uma das esquinas da Vila Esperança fez questão de desabafar e contar a sua angústia. “Eu fico doente com o que está acontecendo, porque aqui é um lugar bom, um lugar seguro. Uma comunidade de pessoas que têm compaixão com o outro, que são família um do outro. Aí querem tirar a gente para colocar em um lugar estranho, vai saber se a gente vai ter esse mesmo acolhimento em outro lugar, fora a violência, não é? Porque aqui ninguém mexe com ninguém, temos muita consideração e respeito, existe uma grande amizade”, afirmou a moradora.
No momento em que conversávamos, Patrícia confortava sua vizinha, Regina Célia, que estava de luto pela morte de um parente, deixando evidente que sua insatisfação não é apenas por sair de uma área bem localizada e segura,. O que ela teme é perder os laços afetivos que criou e cativou durante toda sua vida: “E os sentimentos, minha gente? Os nossos filhos nasceram e se criaram aqui, entende? É horrível só em pensar, porque tá todo mundo junto há muitos anos, todo mundo junto. São muitos anos de convivência, de amizade, de afeto, de cara a cara, a gente sente a dor do outro”.
“Tem que ter mobilidade na cidade, tem que ter melhoria na cidade, mas o povo fica aonde? Embaixo dos projetos, é? Você vai tirar um monte de famílias que têm sua estabilidade, sua vida feita, seu futuro, seu presente e seu passado para passar uma ponte sem pensar no outro? Eu acho inadmissível”, enfatizou Patrícia.Para ela, que vive na comunidade há 30 anos, a falta de diálogo da prefeitura com os moradores e os valores que estão sendo apresentados nas propostas de compra das casas revelam a falta de empatia e o descaso do poder público.
“Eles [prefeitura] tão pagando muito pouco, eu acho muito pouco, porque a gente pode tá morando num quadrado, mas é o nosso lar, nossa história. O dinheiro que eles estão oferecendo só dá pra comprar uma casa em uma barreira. E aí, sabe o que vai acontecer? A gente vai morrer, como aconteceu com um monte de famílias que morreram com os deslizamentos causados pelas chuvas, por culpa da irresponsabilidade deles”, afirma, sintetizando os problemas causados pela falta de política habitacional da capital pernambucana.
Mesmo que os proprietários não possuam o título de posse das casas da Vila Esperança, por se tratar de uma Zeis, a área ocupada é destinada para a implantação de projetos de habitação de interesse social. A principal característica de uma Zona Especial de Interesse Social são as normas que reconhecem a forma de apropriação do espaço público pelos ocupantes a fim de proibir a expulsão da população de seus territórios e evitar a especulação imobiliária.
Questionamos a URB sobre o fato da construção da ponte afetar a Zeis Vila Esperança, uma área de função social assegurada. Em nota, o órgão municipal afirmou que: “já foram realizadas reuniões com os moradores e representantes da comunidade eleitos no Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis) para a apresentação do projeto. Além disso, representantes da Autarquia participaram de duas audiências públicas durante as quais deram mais esclarecimentos sobre a questão, bem como foi feita a apresentação por completo do projeto, no Pátio da Escola Silva Jardim. Desde o início do processo, todas as deliberações estão sendo conduzidas pela URB em comum acordo com os proprietários dos imóveis”.
Aos 64 anos, Raquel Dalzy é a moradora mais antiga da Vila Esperança, e a única que possui a titularidade de seu imóvel, pois, há 30 anos, resolveu entrar com o pedido de usucapião e conseguiu o direito de propriedade previsto por lei.
Professora aposentada, Raquel contou que nasceu, cresceu e criou toda a sua família na Vila Esperança e sua mãe já vivia na propriedade muito antes disso. Com uma ótima estrutura, a casa onde Raquel vive atualmente com seu marido e uma neta, é o local oficial de festa e acolhimento da sua família, mas o que era um lugar para comemorações e boas lembranças agora se transformou em motivo de aflição.
“Eu tô me abusando, não da casa, mas estou me abusando dessas idas à prefeitura. Eu queria pegar a casa e ir para outro lugar, porque eu gosto muito da minha casa. Muito, de verdade, mas eu tô muito abusada”, afirmou Raquel.
A última ida da aposentada à Prefeitura do Recife, para dialogar sobre a desapropriação, foi em novembro de 2021. Para ela, uma experiência desgastante e adoecedora, como relatou: “a prefeitura vem com muita truculência, quase impondo, ‘você tem que sair’, e eu sei que não é assim, mas a gente fica com medo. No dia que eu fui ouvir a proposta da prefeitura eu fiquei muito nervosa porque eles não dizem diretamente, mas é como se quisessem dizer, do jeito deles, que se a gente não sair o trator passa por cima. Isso acaba com meus nervos, esse negócio de ficar ou não ficar”.
A saída dos vizinhos de suas casas é outro motivo de preocupação para Raquel, que assiste com tristeza a sua rua sendo esvaziada. “Recentemente saiu o vizinho aqui da frente. Eu sei que cada um faz o que quer, claro, mas isso desmotiva e você fica desacreditada. Você fica de mãos atadas vendo que eles [prefeitura] estão chegando onde querem. As pessoas jovens, como a minha filha, não imaginam como é estar tanto tempo aqui, você vê tantas coisas e tem muita desumanidade no poder. Eu sei que o progresso tem que vir, só que devia ser uma coisa mais justa, mais humana, com mais jeito”, declarou a professora.
De acordo com a Autarquia de Urbanização do Recife (URB), 26 dos 53 moradores da Vila Esperança já concordaram com os valores das negociações e decidiram deixar suas casas.
Raquel acredita que a possibilidade de sair da sua casa para procurar um outro lugar para viver é desgastante demais para alguém na sua idade. Aos 64 anos e aposentada, ela afirma que agora só quer curtir o tempo que lhe resta e desfrutar do patrimônio que construiu durante toda sua vida, que é o seu lar.
“Eu gosto mesmo desse lugar, eu gosto de onde eu moro, eu gosto da minha casa, eu não queria ir pra canto nenhum por dinheiro nenhum. Mas se por acaso tivesse que ir, queria receber um dinheiro que fosse justo para poder comprar uma casa digna como a que eu tenho. Isso não seria bom porque eu não quero sair, mas pelo menos eu não ficaria mais me desgastando, sabe? Porque eu não pensava que meus nervos seriam tão afetados como estão sendo, eu já tive até depressão, melhorei recentemente”, revelou a moradora. Segundo Raquel, a prefeitura fez uma proposta para pagar um valor que representa metade do que sua casa vale.
Nesta segunda-feira, 13 de junho, mais uma vez os moradores da Vila Esperança realizaram um protesto na Dezessete de Agosto, próximo a Escola Silva Jardim. Na manifestação, que aconteceu por volta das 6h e bloqueou o trânsito na zona norte, os manifestantes pediam a revogação do decreto nº 34.603 e a regularização fundiária da Zeis.A manifestação durou cerca de uma hora.
Uma comissão de moradores da Zeis Vila Esperança levou o caso ao Ministério Público de Pernambuco e à Defensoria Pública a fim de ter acesso a todos os documentos do projeto executivo da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão e impedir a desapropriação e derrubada de suas casas. De acordo com os moradores, apesar de marcar reuniões e encontros, a PCR não está aberta ao diálogo, uma vez que as demandas apresentadas pela comunidade não são atendidas.
Entre as demandas solicitadas pelos moradores está a entrega do habitacional prometido pela prefeitura para abrigar as famílias que estão sendo desapropriadas. “Não faz sentido eles só entregarem o habitacional depois que a obra tiver pronta. Nós queremos o quanto antes para poder ter uma garantia, pelo menos”, afirmou Wellington Lira.
Solicitamos a URB o acesso ao projeto completo da ponte, mas ele não foi enviado. O órgão municipal preferiu responder os questionamentos sobre os detalhes da obra através de uma nota enviada por e-mail. De acordo com o informe, o projeto da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão prevê a construção de parques, ciclofaixas e uma via com quatro faixas de rolamento, duas em cada sentido.
Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.