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O motorista Luciano Matias Soares, de 40 anos, que arrastou e atropelou a advogada Isabela Freitas, de 31 anos, ao final de uma manifestação pacífica contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Recife, foi condenado a seis anos de reclusão por tentativa de homicídio doloso qualificado pelo perigo comum, por ter ameaçado não só a vítima, mas a coletividade. O agressor, que é administrador, poderá recorrer em liberdade. Por reparação de danos, ele também terá que arcar com cinco salários mínimos. Da decisão judicial, cabe recurso.
O julgamento aconteceu na 4ª Vara do Tribunal do Júri da Capital na última quarta-feira (7). O caso aconteceu por volta das 12h30 do dia 2 de outubro de 2021, na avenida Martins de Barros, no bairro de Santo Antônio, centro do Recife. Integrante das comissões de Advocacia Popular e de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Pernambuco, Isabela estava no exercício de sua função ao final do ato que pedia o impeachment de Bolsonaro.
De acordo com testemunhas, Luciano, que dirigia um Jeep Renegade de placa QYJ2E95, furou o bloqueio feito pelos manifestantes, arrastou e atropelou Isabela por mais de 50 metros, passando por cima da perna esquerda dela. Depois fugiu sem prestar socorro à vítima. Na sequência, o agressor registrou um Boletim de Ocorrência na Central de Plantões da Capital por dano e depredação de patrimônio porque teve o carro amassado e o vidro quebrado.
Isabela, hoje com um bebê de colo, sofreu traumatismo craniano e enfrenta uma perda funcional de 50% da perna esquerda, da qual Luciano passou por cima com o Jeep, que pesa cerca de uma tonelada e meia. Foram duas cirurgias para implantar 15 pinos e quatro placas de titânio. A advogada ficou de cadeira de rodas e depois de muletas, que usa até hoje quando tem crises de dor. “O dia [do julgamento, quarta-feira, 7 de agosto) não começou fácil, tive que voltar ao pior dia da minha vida. O dia que eu enfrentei a morte e consegui. Olhar para o rosto de quem me causou o trauma que ainda tento superar foi bem difícil. Eu consegui vitória da morte, mas a minha vida ainda está na luta de superar o trauma e as sequelas físicas e emocionais”, declarou Isabela à reportagem.
A vítima tem forte atuação como advogada das comissões da OAB-PE. Ela foi uma das pessoas que ajudaram o homem baleado no olho pela Polícia Militar no protesto contra Bolsonaro do dia 29 de maio de 2021, no centro do Recife.
“Eu não nasci PCD (Pessoa com Deficiência), me deixaram PCD. Fora as consequências emocionais, ainda tem as físicas. Mas, no final, o dia foi justo comigo. Consegui ter justiça graças à luta que não foi só minha para essa vitória. Advogadas/os, amigas/os e companheiras/o de luta me ajudaram. Eu tive que levar meu filho para aquele tribunal e isso me abalou muito, mas, ao mesmo tempo, me deixou mais forte ainda para encarar novamente aquela pessoa. Sem a ajuda de tanta gente, eu não estaria aqui nem conseguiria essa vitória. A vitória não é minha, é de um bocado de gente e da minha família que caminha comigo na luta. Eu só consigo agradecer e agradecer”, completou Isabela.
Na sentença, o juiz Abner Apolinário da Silva declarou: “Percebe-se que as consequências do crime são graves, haja vista o ataque a uma vida humana e os traumas psicológicos causados na família, que contribuem para o recrudescimento do clima de violência que aflige a população do estado. O desrespeito à vida do semelhante, predisposição à violência e o desprezo às leis de convivência social restaram sobejamente demonstrados, de sorte a não serem desdenhados por este juízo”.
Segundo a advogada de Isabela, Anna Beatriz da Silva, a defesa do acusado usou como estratégia a tentativa de fazê-lo responder apenas por lesão corporal, o que não foi aceito pelo juiz. Ela relata ainda que, a princípio, os advogados de Luciano tentaram induzir que a vítima subiu no capô e estava batendo no carro, configurando, segundo a defesa, uma ameaça ao motorista.
“Ele ficou utilizando o carro como uma arma, acelerando para cima dos manifestantes”, contestou a criminalista. Segundo ela, os advogados do agressor também tentaram politizar o debate durante o júri. “A comissão de Advocacia Popular não organiza manifestação. Quem organiza manifestação são os movimentos, são os coletivos. A comissão acompanha, é requisitada para acompanhar, para garantir os direitos de manifestação”, enfatizou Anna, em entrevista à MZ.
O delegado responsável, Elielton Barbosa da Silva Xavier, em seu relatório final, havia indicado que o caso tratava-se de legítima defesa e que Luciano deveria ser punido pelo excesso doloso, pela lesão corporal. Mas essa tese não passou, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) teve um entendimento diferente e ofereceu a denúncia à Justiça para que o motorista Luciano respondesse por tentativa de homicídio qualificado.
Luciano, na época dos fatos, era réu primário. A Marco Zero entrou em contato com três advogados que compõem a equipe de defesa do condenado, mas não conseguiu entrevistar nenhum deles. O espaço segue aberto.
Na sentença, consta que “a defesa, por sua vez, requereu a absolvição do acusado sob a tese de inexigibilidade de conduta diversa e subsidiariamente aplicação de privilégio”. Isto é, a tese de que o réu não poderia ter agido de forma diferente, uma vez que se sentiu ameaçado pelos manifestantes e estava com medo. Como estratégia, os advogados de Luciano mostraram vídeos de protestos em Israel, nos Estados Unidos e no Brasil, com imagens de quebra-quebra e falas sobre “efeito manada”.
Na época do caso, Luciano disse, em entrevista ao portal G1: “se ela não tivesse se pendurado no capô, nada disso teria acontecido” e “se eu tivesse parado para socorrer, seria espancado, pelo calor da situação”. “Se eu tivesse vindo na velocidade, eu não tinha apenas atropelado ela, teria atropelado várias pessoas. Só passei por ela porque ela se pendurou no meu carro. Começaram a dar um monte de pancada no carro, […] então fiquei com medo. Me senti ali agredido. Fiquei com medo de ficar e acontecer uma coisa pior”, afirmou na mesma entrevista.
“Na verdade, ele foi quem gerou a ameaça”, rebate Anna. A advogada relembra ainda que o crime aconteceu no dia 2 e o motorista só levou o veículo para ser periciado no dia 5. “O que aconteceu com o carro durante esses dias, a gente não sabe. Então não foi preservada a prova, os vestígios desse crime”, argumenta, contrariando a tese de que os manifestantes quebraram o Jeep.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com